quinta-feira, 4 de agosto de 2011

"Desesperança" - Poema de Alexandre Herculano


Gerrit Dou, "Hermit", Old man wearing glasses, meditating on a crucifix, 1664



Desesperança 


Meia-noite bateu, volvendo ao nada
Um dia mais, e caminhando eu sigo!
Vejo-te bem, ó campa misteriosa...
Eu vou, eu vou! Breve serei contigo!

Qual tufão, que ao passar agita o pego,
Meu plácido existir turvou a sorte:
Hálito impuro de pulmões ralados
Me diz que neles se assentou a morte:

Enquanto mil e mil no largo mundo
Dormem em paz sorrindo, eu velo e penso,
E julgo ouvir as preces por finados,
E ver a tumba e o fumegar do incenso.

Se dormito um momento, acordo em sustos;
Pulos me dá o coração no peito,
E abraço e beijo de uma vida extinta
O último sócio, o doloroso leito.

De um abismo insondado às agras bordas
Insanável doença me há guiado,
E disse-me: «No fundo o esquecimento:
Desce; mas desce com andar pausado.»

E eu lento vou descendo, e sondo as trevas:
Busco parar; parar um só instante!
Mas a cruel, travando-me da dextra,
Me faz cair mais fundo, e grita: «Avante!»

Porque escutar o trânsito das horas?
Alguma delas trar-me-á conforto?
Não! Esses golpes, que no bronze ferem,
São pura mim como dobrar por morto.

«Morto!, morto!» me clama a consciência:
Diz-mo este respirar rouco e profundo.
Ai!, porque fremes, coração de fogo,
Dentro de um seio corrompido e imundo?

Beber um ar diáfano e suave,
Que renovou da tarde o brando vento,
E convertê-lo, no aspirar contínuo,
Em bafo apodrecido e peçonhento!

Estender para o amigo a mão mirrada,
E ele negar a mão ao pobre amigo;
Querer uni-lo ao seio descarnudo,
E ele fugir, temendo o seu perigo!

E ver após um dia ainda cem dias,
Nus d'esperança, férteis de amargura;
Socorrer-me ao porvir, e achá-lo um ermo,
E só, bem lá no extremo, a sepultura!

Agora!... quando a vida me sorria:
Agora!... que meu estro se acendera;
Que eu me enlaçava a um mundo d'esperanças,
Como se enlaça pelo choupo a hera,

Deixar tudo, e partir, sozinho e mudo;
Varrer-me o nome escuro esquecimento:
Não ter um eco de louvor, que afague
Do desgraçado o humilde monumento!

Ó tu, sede de um nome glorioso,
Que tão fagueiros sonhos me tecias,
Fugiste, e só me resta a pobre herança
De ver a luz do Sol mais alguns dias.

Vestem-se os campos do verdor primeiro:
Já das aves canções no bosque ecoam:
Não para mim, que só escuto atento
Funéreos dobres que no templo soam!

Eu que existo, e que penso, e falo, e vivo,
Irei tão cedo repousar na terra?!
Oh, meu Deus, oh, meu Deus!, um ano ao menos;
Um louro só... e meu sepulcro cerra!

E tão bom respirar, e a luz brilhante
Do sol oriental saudar no outeiro!
Ai, na manhã saudá-la posso ainda;
Mas será este Inverno o derradeiro!

Quando de pomos o vergel for cheio;
Quando ondear o trigo na planura;
Quando pender com áureo fruto a vide,
Eu também penderei na sepultura.

Dos que me cercam no turbado aspecto,
Na voz que prende desusado enleio,
No pranto a furto, no fingido riso
Fatal sentença de morrer eu leio.

Vistes vós criminoso, que hão lançado
Seus juízes nos trances da agonia,
Em oratório estreito, onde não entra
Suavíssima luz do claro dia;

Diante a cruz, ao lado o sacerdote,
O cadafalso, o crime, o algoz na mente,
O povo tumultuando, o extremo arranco,
E Céu, e Inferno, e as maldições da gente?

Se adormece, lá surge um pesadelo,
Com os martírios da sua alma acorde;
Desperta logo, e à terra se arremessa,
E os punhos cerra, e delirante os morde.

Sobre as lájeas do duro pavimento
De vergões e de sangue o rosto cobre.
Ergue-se e escuta com cabelos hirtos
Do sino ao longe o compassado dobre.

Sem esperança!...
Não! Do cadafalso
Sobe as escudas o perdão às vezes;
Porém a mim... não me dirão: «És salvo!»
E o meu suplício durará por meses.

Dizer posso: «Existi: que a dor conheço!»
Do gozo a taça só provei por horas:
E serei teu, calado cemitério,
Que engenho, glória, amor, tudo devoras.

Se o furacão rugiu, e o débil tronco
De árvore tenra espedaçou passando,
Quem se doeu de a ver jazendo em terra?
Tal é o meu destino miserando!

Númen de santo amor, mulher querida,
Anjo do Céu, encanto da existência.
Ora por mim a Deus, que há-de escutar-te.
Por ri me salve a mão da Providência.

Vem: aperta-me a dextra... Oh, foge, foge!
Um beijo ardente aos lábios teus voara:
E neste beijo venenoso a morte
Talvez este infeliz só te entregara!

Se eu pudesse viver... como teus dias
Cercaria de amor suave e puro!
Como te fora plácido o presente;
Quanto risonho o aspecto do futuro!

Porém, medonho espectro ante meus olhos,
Como sombra infernal perpétuo ondeia,
Bradando-me que vai partir-se o fio
Com que da minha vida se urde a teia.

Entregue à sedução enquanto eu durmo,
No turbilhão do mundo hei-de deixar-te!
Quem velará por ti, pomba inocente?
Quem do perjúrio poderá salvar-te?

Quando eu cerrar os olhos moribundos
Tu verterás por mim pranto saudoso;
Mas quem me diz que não virá o riso
Banhar teu rosto triste e lacrimoso?

Ai, o extinto só herda o esquecimento!
Um novo amor te agitará o peito:
E a dura lájea cobrirá meus ossos
Frios, despidos sobre térreo leito!...

Ó Deus, porque este cálix de agonia
Até as bordas de amargor me encheste?
Se eu devia acabar na juventude,
Porque ao mundo e a seus sonhos me prendeste?

Virgem do meu amor, porque perdê-la?
Porque entre nós a campa há-de assentar-se?
Tua suprema paz com gozo ou dores
Do mortal, que em ti crê, pode turbar-se?

Não haver quem me salve! e vir um dia
Em que de minha o nome ainda lhe desse!
Então, Senhor, o umbral da eternidade,
Talvez sem um queixume, transpusesse.

Mas, qual flor em botão pendida e murcha,
Sem de fragrâncias perfumar a brisa,
Eu poeta, eu amante, ir esconder-me
Sob uma lousa desprezada e lisa!

Porquê? Qual foi meu crime, ó Deus terrível?
Em te adorar que fui, senão insano?...
O teu fatal poder hoje maldigo!
O que te chama pai, mente: és tirano.

E se aos pés de teu trono os ais não chegam;
Se os gemidos da terra os ares somem;
Se a Providência é crença vã, mentida,
Porque geraste a inteligência do homem?

Porque da virgem no sorrir puseste
Santo presságio de suprema dita,
E apontaste ao poeta a imensidade
Na ânsia de glória que em sua alma habita?

A imensidade!... E que me importa herdá-la,
Se na Terra passei sem ser sentido?
Que vale eterno vaguear no espaço,
Se nosso nome se afundou no olvido? 


in A Harpa do Crente, 1838 


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