sábado, 3 de dezembro de 2011

"Adiamento" - Poema de Álvaro de Campos


Winslow Homer (American, 1836 - 1910), Salt Kettle, Bermuda, 1899,  



Adiamento


Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... 
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, 
E assim será possível; mas hoje não... 
Não, hoje nada; hoje não posso. 
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva, 
O sono da minha vida real, intercalado, 
O cansaço antecipado e infinito, 
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico... 
Esta espécie de alma... 
Só depois de amanhã... 
Hoje quero preparar-me, 
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte... 
Ele é que é decisivo. 
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos... 
Amanhã é o dia dos planos. 
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; 
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã... 
Tenho vontade de chorar, 
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... 

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. 
Só depois de amanhã... 
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana. 
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância... 
Depois de amanhã serei outro, 
A minha vida triunfar-se-á, 
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático 
Serão convocadas por um edital... 
Mas por um edital de amanhã... 
Hoje quero dormir, redigirei amanhã... 
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância? 
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã, 
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo... 
Antes, não... 
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. 
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser. 
Só depois de amanhã... 
Tenho sono como o frio de um cão vadio. 
Tenho muito sono. 
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... 
Sim, talvez só depois de amanhã... 

O porvir... 
Sim, o porvir... 
 
14-4-1928

Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa 


 
Winslow Homer, Eagle Head, Manchester, Massachusetts, 1870


"Os cães são a nossa ligação ao paraíso. Não conhecem o mal, a inveja ou a insatisfação"

(Milan Kundera)


[Milan Kundera  (nasceu dia 1 de abril de 1929, em Brno, Checoslováquia); é um escritor de origem checa. Vive na França desde 1975, sendo cidadão francês desde 1980. Seus romances geralmente tratam de escolhas e decepções. Em seus livros é recorrente a crítica ao regime comunista e à posterior ocupação russa de seu país, em 1968, quando foi exilado e teve sua obra proibida na então Checoslováquia. 
Entre outros prémios, Milan Kundera recebeu, pelo conjunto da sua obra, o "Common Wealth Award" de Literatura (1981) e o "Prémio Jerusalém" (1985). 
Sua obra principal, "A Insustentável Leveza do Serganhou em 1988 uma adaptação para o cinema, sob a direção de Philip Kaufman e com Daniel Day-Lewis, Juliette Binoche e Lena Olin no elenco.
Recebeu 2 indicações ao Oscar e reconhecimento mundial. Desde então Milan Kundera nunca mais autorizou a adaptação cinematográfica dos seus romances.]


Paulo Gonzo e Lucia Moniz - "Leve Beijo Triste"


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