domingo, 1 de janeiro de 2012

"A Adoração dos Magos" - Poema de Fátima Maldonado




A Adoração dos Magos


Aquela noite a três
foi como desenhar a maçarico
numa chapa de ferro
um vento fóssil, um vítreo monograma,
o rasto ao exceder o voo de uma carriça
cativo flutua no vidro de uma jarra.
Suspensos percorriam na polpa da vertigem
léguas sobre o abismo.
Pendentes do zinco da manhã
à espera do início
do seguinte espectáculo
dispersaram o sémen
nas chaminés da noite leprosa.
Nos terraços da luta percorreram
as danças mais funestas da ternura.
Num combinar astuto de referências
abriram-se os portais
e despediram galopes penitentes
os animais libertos
das tecidas mansões.
O unicórnio branco depôs sua cabeça
nos braços da senhora,
compadecida dama,
e lhe tocou fiando suas lãs
entre as unhas crivadas por metralha.
Sinto-lhes o assédio,
em cada joelho poisam
um queixo armadilhado,
a barba já cresceu desde o jantar.
«É a adoração dos magos» - murmuras tu –
fincando na ravina os dedos imanados
enquanto o tronco investe
a pele percorrida por venosas nascentes.
Olho por sobre um ombro
e surpreendo a treva
ofendida esgueirar-se
entre os dedos da porta.
O noctívago galgo
devora a escuridão às cegas no recinto.
Em breve a luz envolve
de opalinas unções as cabeleiras.
Iminentes desenham-se as saídas,
o croissant no prato, o garoto no copo,
o revestir a pele doutros fatos
a tragédia jazente nos horários.
Aquela noite a três foi sem remédio.


Fátima Maldonado
Os Presságios
Lisboa, Editorial Presença, 1983

[Fátima Maldonado nasceu em 1941. Jornalista e crítica literária, fez a sua estreia como poeta em 1980 com Cidades Indefesas. Na sua poesia, encontramos uma temática explicitamente erótica e uma condição feminina claramente assumida que se conjugam com o mundo quotidiano e a evocação da infância e da adolescência. Obras: Cidades Indefesas (1980), Os Presságios (1983), Selo Selvagem (1985), A Urna no Deserto (1989).]


Israel Kamakawiwo'ole - "What A Wonderful World"


"As minhas depressões talvez sejam as minhas metamorfoses: é a maneira que eu tenho de passar de lagarta a crisálida. São etapas de libertação."

António Alçada Baptista,
O Riso de Deus

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