terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

"Acerca de Gatos"- Poemas de Eugénio de Andrade, Fernando Pessoa, Friedrich Nietzsche, José Jorge Letria, Ferreira Gullar





Acerca de Gatos 


Em Abril chegam os gatos: à frente 
o mais antigo, eu tinha 
dez anos ou nem isso, 
um pequeno tigre que nunca se habituou 
às areias do caixote, mas foi quem 
primeiro me tomou o coração de assalto. 
Veio depois, já em Coimbra, uma gata 
que não parava em casa: fornicava 
e paria no pinhal, não lhe tive 
afeição que durasse, nem ela a merecia, 
de tão puta. Só muitos anos 
depois entrou em casa, para ser 
senhora dela, o pequeno persa 
azul. A beleza vira-nos a alma 
do avesso e vai-se embora. 
Por isso, quem me lambe a ferida 
aberta que me deixou a sua morte 
é agora uma gatita rafeira e negra 
com três ou quatro borradelas de cal 
na barriga. É ao sol dos seus olhos 
que talvez aqueça as mãos, e partilhe 
a leitura do Público ao domingo.


Eugénio de Andrade 




Gato que brincas na rua


Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Tu tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim, 
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.


Fernando Pessoa




É noite...


É noite: sobre os telhados de novo 
Se perde o rosto redondo da Lua. 
Ele, o mais ciumento de todos os gatos, 
Olha enciumado para todos os amantes, 
O pálido e gordo «Homem da Lua». 
Arrasta o seu cio furtivo pelos cantos mais escuros, 
Espreguiça-se encosta-se a janelas entreabertas, 
Como um frade lascivo e anafado anda 
De noite, atrevido, por caminhos proibidos.


 Friedrich Nietzsche




Ode ao Gato 


Tu e eu temos de permeio 
a rebeldia que desassossega, 
a matéria compulsiva dos sentidos. 
Que ninguém nos dome, 
que ninguém tente 
reduzir-nos ao silêncio branco da cinza, 
pois nós temos fôlegos largos 
de vento e de névoa 
para de novo nos erguermos 
e, sobre o desconsolo dos escombros, 
formarmos o salto 
que leva à glória ou à morte, 
conforme a harmonia dos astros 
e a regra elementar do destino.


José Jorge Letria,
in "Animália Odes aos Bichos"




Lições de um gato siamês 


Só agora sei 
que existe a eternidade: 
é a duração 
finita 
da minha precariedade 

O tempo fora 
de mim 
é relativo 
mas não o tempo vivo: 
esse é eterno 
porque afetivo 
— dura eternamente 
enquanto vivo 

E como não vivo 
além do que vivo 
não é 
tempo relativo: 
dura em si mesmo 
eterno (e transitivo)


Ferreira Gullar



3 comentários:

Laura Garcez disse...

Lindo!

quadrogiz disse...

Obrigada Laura Garcez pela visita ao meu blog e pelo comentário.

Carlos Noronha disse...

Muito bom...