sábado, 18 de fevereiro de 2012

"Eu falo das casas e dos homens" - Poema de Adolfo Casais Monteiro


Obra de Pablo Picasso, Guernica, 1937



Eu falo das casas e dos homens


Eu falo das casas e dos homens, 
dos vivos e dos mortos: 
do que passa e não volta nunca mais... 
Não me venham dizer que estava materialmente 
previsto, 
ah, não me venham com teorias! 
Eu vejo a desolação e a fome, 
as angústias sem nome, 
os pavores marcados para sempre nas faces trágicas 
das vítimas. 

E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima, 
uma insignificante parcela da tragédia. 
Eu, se visse, não acreditava. 
Se visse, dava em louco ou profeta, 
dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada, 
- mas não acreditava! 

Olho os homens, as casas e os bichos. 
Olho num pasmo sem limites, 
e fico sem palavras, 
na dor de serem homens que fizeram tudo isto: 
esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira, 
esta lama de sangue e alma, 
de coisa a ser, 
e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança, 
se o ódio sequer servirá para alguma coisa... 

Deixai-me chorar - e chorai! 
As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos, 
de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição
e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama, 
por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio, 
por um segundo seremos os mortos e os torturados, 
os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados, 
seremos a terra podre de tanto cadáver, 
seremos o sangue das árvores, 
o ventre doloroso das casas saqueadas, 
- sim, por um momento seremos a dor de tudo isto... 

Eu não sei porque me caem as lágrimas, 
porque tremo e que arrepio corre dentro de mim, 
eu que não tenho parentes nem amigos na guerra, 
eu que sou estrangeiro diante de tudo isto, 
eu que estou na minha casa sossegada, 
eu que não tenho guerra à porta, 
- eu porque tremo e soluço? 
Quem chora em mim, dizei - quem chora em nós? 

Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros: 
as ruas são ruas com gente e automóveis, 
não há sereias a gritar pavores irreprimíveis, 
e a miséria é a mesma miséria que já havia... 
E se tudo é igual aos dias antigos, 
apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir, 
eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente, 
sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos, 
sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta, 
uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada...


Adolfo Casais Monteiro


Adolfo Casais Monteiro


Adolfo Casais Monteiro (Porto, 4 de Julho de 1908 - São Paulo, 23 de Julho de 1972) foi um poeta, ficcionista, crítico literário e ensaísta português.
Formou-se em Ciências Histórico-Filosóficas na antiga Faculdade de Letras do Porto, onde foi colega de Agostinho da Silva e Delfim Santos e teve como mestre Leonardo Coimbra, a quem viria a associar-se com Sant'Ana Dionísio, na direção de A Águia.
O seu nome encontra-se vinculado, porém, à história da revista Presença, cuja direção integrou, ao lado de José Régio e João Gaspar Simões, a partir de 1931, e em cujas edições publicou as suas primeiras coletâneas poéticas (Confusão, 1929; Poemas do Tempo Incerto, 1934; Sempre e Sem Fim, 1936). Forçado a abandonar o ensino em 1937, pelo regime político da época, colaborou em inúmeras publicações periódicas; dirigiu, com António Pedro, o Mundo Literário (1946-47); e desenvolveu, até 1954, data do seu exílio no Brasil, uma intensa atividade como editor e como tradutor (traduziu Baudelaire, Charlotte Bronte, Caldwell, Alexis Carrel, George Eliot, Hemingway, Philippe Hériat, Kierkegaard, Jules Lachelier, Robert Margerit, Stendhal, Tolstoi, Henri Troyat).
No Brasil, como professor universitário, continuou uma importante carreira como ensaísta, de que se destacam, entre outros objetos, dois polos mais significativos: por um lado, a divulgação e atento estudo da estética de Fernando Pessoa, cuja primeira edição da obra poética organizara com José Régio e João Gaspar Simões; e, por outro, a reflexão e teorização sobre o alcance do movimento da Presença. 
Na poesia, Adolfo Casais Monteiro foi, segundo Fernando J. B. Martinho (cf. Pessoa e a Moderna Poesia Portuguesa - do Orpheu a 1960 -, Lisboa, ICALP, 1983, pp. 65-67), "não só dos mais tocados pela sombra de Pessoa, como também um dos poucos que soube, na sua geração, assimilar e ampliar o vetor vanguardista do primeiro modernismo"
Essa modernidade poética, para que concorreram a influência de Pessoa - Caeiro, na defesa do versilibrismo e da libertação rítmica do verso, bem como a rutura com um lirismo tradicional, pela entrada, na poesia, de um mundo convencionalmente não poético, constitui simultaneamente uma aquisição fundamental para poetas de gerações posteriores à Presença, nomeadamente os que integrarão os núcleos de escritores com quem conviverá nas páginas de publicações diversas, como Cadernos de Poesia (1940), Aventura (1942-43), Notícias do Bloqueio (1957-1961) ou Cadernos do Meio-Dia (1958-1960).
Tal como Agostinho da Silva ou Jorge de Sena, acabaria por partir para o exílio no Brasil em 1954, dado o seu estatuto de opositor ao regime de Salazar, o qual não se adequavam à sua maneira de ser.
Dois anos depois do seu falecimento, foi instituído, com o patrocínio da Associação Portuguesa de Escritores, o Prémio Literário de Poesia Adolfo Casais Monteiro. (Fonte: wikipédia)


Pablo Picasso, Retrato de Jacqueline Roque com as mãos cruzadas, 1954


"Não, a pintura não está feita para decorar apartamentos. Ela é uma arma de ataque e defesa contra o inimigo."

Pablo Picasso, sobre "Guernica"

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