terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

"Ode ao gato" - Poema de Pablo Neruda




Ode ao gato

 
Os animais foram
inacabados,
longos de cauda, tristes
de cabeça.
pouco a pouco foram-se
formando,
tornando-se paisagem,
adquirindo sinais, graça, voo.
O gato,
só o gato
apareceu completo e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.

O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente gostaria de ter asas,
o cão é um leão confuso,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser somente gato
e todo o gato é gato
desde o bigode ao rabo,
desde pressentimento a ratazana viva,
desde a noite escura até aos seus olhos de ouro.

Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa única
como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
é firme e subtil como
a linha da proa de uma nave.
Seus olhos amarelos
deixaram uma única
ranhura
para lançar as moedas da noite.

Oh pequeno
imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu,
das telhas eróticas,
o vento do amor
na tempestade
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no chão,
cheirando,
desconfiando
de tudo o que é terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.

Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
das habitações
insígnia
de um
veludo já desaparecido,
certamente não há
enigma nesse teu modo,
não és talvez mistério,
todo o mundo te conhece e tu pertences
ao habitante menos misterioso,
talvez todos o creiam,
todos se creiam donos,
proprietários, tios,
de gatos, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos
do seu gato.

Eu não.
Eu não concordo.
Eu não conheço o gato.
Eu tudo sei, a vida e seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica,
o gineceu com seus extravios,
o por e o menos da matemática,
as depressões vulcânicas do mundo,
a pele irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
têm seus olhos números de ouro.


Pablo Neruda,
Navegaciones y Regresos, 1959




Onírica

 
Os gatos moles de sono 
rolam laranjas de lã.


Mário Quintana




 Zoologia: O Gato 

 
Um gato, em casa sozinho, sobe 
à janela para que, da rua, o 
vejam. 

O sol bate nos vidros e 
aquece o gato que, imóvel, 
parece um objeto. 

Fica assim para que o 
invejem — indiferente 
mesmo que o chamem. 

Por não sei que privilégio, 
os gatos conhecem 
a eternidade.


Nuno Júdice, in Assinar a pele 
(antologia de poesia contemporânea sobre gatos)
Ed. Assírio Alvim




Prosa e Poesia

 
Um cão, eu sempre disse, é prosa; 
Um gato é um poema.

 
Jean Burden




O Gato Curioso 

 
Era uma vez 
um gato siamês. 

Por ser muito engraçadinho, 
é chamado de Gatinho. 

Além de carinhoso, 
ele é muito curioso. 

Nada se pode fazer 
que ele não deseje ver. 

Se alguém mexe na estante, 
está lá no mesmo instante. 

se vão consertar a pia, 
está ele lá de vigia. 

E o resultado é que quando 
viu seu dono consertando 
a tomada da parede, 
meteu-se com tanta sede, 
a cheirar tudo que... nhoque! 
levou um baita de um choque! 

E pensar que ele aprendeu? 
Mais fácil aprendia eu! 

Mantém-se o mesmo abelhudo 
que quer dar conta de tudo.
 

Ferreira Gullar




Pensão familiar 


Jardim da pensãozinha burguesa. 
Gatos espapaçados ao sol. 
A tiririca sitia os canteiros chatos. 
O sol acaba de crestar as boninas que murcharam. 
Os girassóis 
amarelo! 
resistem. 
E as dálias, rechonchudas, plebeias, dominicais. 

Um gatinho faz pipi. 
Com gestos de garçon de restaurant-Palace 
Encobre cuidadosamente a mijadinha. 
Sai vibrando com elegância a patinha direita: 
— É a única criatura fina na pensãozinha burguesa. 


Manuel Bandeira, Estrela da Vida Inteira, Ed. Nova Fronteira



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