domingo, 5 de fevereiro de 2012

"Talvez quem vê bem não sirva para sentir" - Poema de Alberto Caeiro


Émile Vernon (British, 1872–1919), A Sweet Glance


Talvez quem vê bem não sirva para sentir 


Talvez quem vê bem não sirva para sentir
E não agrada por estar muito antes das maneiras.
É preciso ter modos para todas as coisas,
E cada coisa tem o seu modo, e o amor também.
Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas
Não deve ter a cegueira que faz fazer sentir.
Amei, e não fui amado, o que só vi no fim,
Porque não se é amado como se nasce mas como acontece.
Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes,
E eu continuo como era dantes, sozinho no campo.
Como se tivesse estado de cabeça baixa,
Penso isto, e fico de cabeça alta
E o dourado sol seca a vontade de lágrimas que não posso deixar de ter.
Como o campo é vasto e o amor interior...!
Olho, e esqueço, como seca onde foi água e nas árvores desfolha.

Eu não sei falar porque estou a sentir.
Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa,
E a minha voz fala dela como se ela é que falasse.
Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo ao sol claro,
E a boca quando fala diz coisas que não só as palavras.
Sorri, e os dentes são limpos como pedras do rio. 

8-11-1929

Alberto Caeiro, in O Pastor Amoroso
(Heterónimo de Fernando Pessoa)


Coldplay - Charlie Brown


"Perante nós mesmo todos fingimos ser mais ingénuos do que somos: é deste modo que descansamos dos nossos semelhantes."

(Friedrich Nietzsche)


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