segunda-feira, 30 de abril de 2012

"Fazer 30 anos" - Texto de Affonso Romano de Sant'Anna





Fazer 30 anos 


QUATRO pessoas, num mesmo dia, me dizem que vão fazer 30 anos. E me anunciam isto com uma certa gravidade. Nenhuma está dizendo: vou tomar um sorvete na esquina, ou: vou ali comprar um jornal. Na verdade estão proclamando: vou fazer 30 anos e, por favor, prestem atenção, quero cumplicidade, porque estou no limiar de alguma coisa grave.

Antes dos 30 as coisas são diferentes. Claro que há algumas datas significativas, mas fazer 7, 14, 18 ou 21 é ir numa escalada montanha acima, enquanto fazer 30 anos é chegar no primeiro grande patamar de onde se pode mais agudamente descortinar.

Fazer 40, 50 ou 60 é um outro ritual, uma outra crónica, e um dia eu chego lá. Mas fazer 30 anos é mais que um rito de passagem, é um rito de iniciação, um ato realmente inaugural. Talvez haja quem faça 30 anos aos 25, outros aos 45, e alguns, nunca. Sei que tem gente que não fará jamais 30 anos. Não há como obrigá-los. Não sabem o que perdem os que não querem celebrar os 30 anos. Fazer 30 anos é coisa fina, é começar a provar do néctar dos deuses e descobrir que sabor tem a eternidade. O paladar, o tato, o olfato, a visão e todos os sentidos estão começando a tirar prazeres indizíveis das coisas. Fazer 30 anos, bem poderia dizer Clarice Lispector, é cair em área sagrada.

Até os 30, me dizia um amigo, a gente vai emitindo promissórias. A partir daí é hora de começar a pagar. Mas também se poderia dizer: até essa idade fez-se o aprendizado básico. Cumpriu-se o longo ciclo escolar, que parecia interminável, já se foi do primário ao doutorado. A profissão já deve ter sido escolhida. Já se teve a primeira mesa de trabalho, escritório ou negócio. Já se casou a primeira vez, já se teve o primeiro filho. A vida já se inaugurou em fraldas, fotos, festas, viagens, todo tipo de viagens, até das drogas já retornou quem tinha que retornar.

Quando alguém faz 30 anos, não creiam que seja uma coisa fácil. Não é simplesmente, como num jogo de amarelinha, pular da casa dos 29 para a dos 30 saltitantemente. Fazer 30 anos é cair numa epifania. Fazer 30 anos é como ir à Europa pela primeira vez. Fazer 30 anos é como o mineiro vê pela primeira vez o mar.

Um dia eu fiz 30 anos. Estava ali no estrangeiro, estranho em toda a estranheza do ser, à beira-mar, na Califórnia. Era um homem e seus trinta anos. Mais que isto: um homem e seus trinta amos. Um homem e seus trinta corpos, como os anéis de um tronco, cheio de eus e nós, arborizado, arborizando, ao sol e a sós.

Na verdade, fazer 30 anos não é para qualquer um. Fazer 30 anos é, de repente, descobrir-se no tempo. Antes, vive-se no espaço. Viver no espaço é mais fácil e deslizante. É mais corporal e objetivo. Pode-se patinar e esquiar amplamente.

Mas fazer 30 anos é como sair do espaço e penetrar no tempo. E penetrar no tempo é mister de grande responsabilidade. É descobrir outra dimensão além dos dedos da mão. É como se algo mais denso se tivesse criado sob a couraça da casca. Algo, no entanto, mais ténue que uma membrana. Algo como um centro, às vezes móvel, é verdade, mas um centro de dor colorido. Algo mais que uma nebulosa, algo assim pulsante que se entreabrisse em sementes.

Aos 30 já se aprendeu os limites da ilha, já se sabe de onde sopram os tufões e, como o náufrago que se salva, é hora de se autocartografar. Já se sabe que um tempo em nós destila, que no tempo nos deslocamos, que no tempo a gente se dilui e se dilema. Fazer 30 anos é como uma pedra que já não precisa exibir preciosidade, porque já não cabe em preços. É como a ave que canta, não para se denunciar, senão para amanhecer.

Fazer 30 anos é passar da reta à curva. Fazer 30 anos é passar da quantidade à qualidade. Fazer 30 anos é passar do espaço ao tempo. É quando se operam maravilhas como a um cego em Jericó

Fazer 30 anos é mais do que chegar ao primeiro grande patamar. É mais que poder olhar pra trás. Chegar aos 30 é hora de se abismar. Por isto é necessário ter asas, e sobre o abismo voar. 


Affonso Romano de Sant'Anna, "A Mulher Madura"
Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1986, pág. 36.


Tchaikovsky: "Melodie"
Eugene Ugorski (violin) & Konstantin Lifschitz (piano) play Tchaikovsky:  
"Melodie" from Souvenir d'un lieu cher, Op. 42 - Miami International Piano Festival, 2009. 




[Piotr Ilitch Tchaikovsky (Kamsko-Wotkinski Sawod, atual Tchaikovsky, 7 de maio de 1840 – São Petersburgo, 6 de novembro de 1893) foi um compositor romântico russo. 
Embora não faça parte do chamado Grupo dos Cinco (Mussorgsky, César Cui, Rimsky-Korsakov, Balakirev e Borodin) de compositores nacionalistas daquele país, sua música se tornou conhecida e admirada por seu caráter distintamente russo, bem como por suas ricas harmonias e vivas melodias. Suas obras, no entanto, foram muito mais ocidentalizadas do que aquelas de seus compatriotas, uma vez que ele utilizava elementos internacionais ao lado de melodias populares nacionalistas russas. Tchaikovsky, assim como Mozart, é um dos poucos compositores aclamados que se sentia igualmente confortável escrevendo óperas, sinfonias, concertos e obras para piano.]

domingo, 29 de abril de 2012

"Antes que elas cresçam" - Texto de Affonso Romano de Sant'Anna


Georg Papperitz (1846 – 1918, German), Innocence



Antes que elas cresçam 


Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.
É que as crianças crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.
Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente.
Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.
Onde e como andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal?
Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins, cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno cio, lindas potrancas.
Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração: incómodas mochilas da moda nos ombros ou, então com a suéter amarrada na cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas não tem jeito, é o emblema da geração.
Pois ali estamos, depois do primeiro e do segundo casamento, com essa barba de jovem executivo ou intelectual em ascensão, as mães, às vezes, já com a primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E elas crescem meio amestradas, vendo como redigimos nossas teses e nos doutoramos nos nossos erros.
Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.
Longe já vai o momento em que o primeiro menstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das discotecas e festas, quando surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do balé, da cultura francesa e inglesa. Saíram do banco de trás e passaram para o volante de suas próprias vidas. Só nos resta dizer “bonne route, bonne route”, como naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha oferece o primeiro jantar no apartamento dela.
Deveríamos ter ido mais vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, posteres e agendas coloridas de pilô. Não, não as levamos suficientemente ao maldito “drive-in”, ao Tablado para ver “Pluft”, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.
Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo o nosso afeto. 
No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de sorvetes e sanduíches infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de campo com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse exílio dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos. Agora é hora de os pais na montanha terem a solidão que queriam, mas, de repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes.
O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer connosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.
Por isso, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.





Chee-Yun Kim - Somewhere In Time

"Amor - O Interminável Aprendizado" - Texto de Affonso Romano de Sant'Anna


Pintura de Willem Haenraets



Amor - O Interminável Aprendizado


"Na história universal do amor, amou-se sempre diferentemente, embora parecesse ser sempre o mesmo amor de antigamente."

Criança, ele pensava: amor, coisa que os adultos sabem. Via-os aos pares namorando nos portões enluarados se entrebuscando numa aflição feliz de mãos na folhagem das anáguas. Via-os noivos se comprometendo à luz da sala ante a família, ante as mobílias; via-os casados, um ancorado no corpo do outro, e pensava: amor, coisa-para-depois, um depois-adulto-aprendizado.
Se enganava.
Se enganava porque o aprendizado de amor não tem começo nem é privilégio aos adultos reservado. Sim, o amor é um interminável aprendizado.
Por isto se enganava enquanto olhava com os colegas, de dentro dos arbustos do jardim, os casais que nos portões se amavam. Sim, se pesquisavam numa prospecção de veios e grutas, num desdobramento de noturnos mapas seguindo o astrolábio dos luares, mas nem por isto se encontravam. E quando algum amante desaparecia ou se afastava, não era porque estava saciado. Isto aprenderia depois. É que fora buscar outro amor, a busca recomeçara, pois a fome de amor não sabia nunca, como ali já não se saciara.
De fato, reparando nos vizinhos, podia observar. Mesmo os casados, atrás da aparente tranquilidade, continuavam inquietos. Alguns eram mais indiscretos. A vizinha casada deu para namorar. Aquele que era um crente fiel, sempre na igreja, um dia jogou tudo para cima e amigou-se com uma jovem. E a mulher que morava em frente da farmácia, tão doméstica e feliz, de repente fugiu com um boémio, largando marido e filhos.
Então, constatou, de novo se enganara. Os adultos, mesmo os casados, embora pareçam um porto onde as naus já atracaram, os adultos, mesmo os casados, que parecem arbustos cujas raízes já se entrançaram, eles também não sabem, estão no meio da viagem, e só eles sabem quantas tempestades enfrentaram e quantas vezes naufragaram.
Depois de folhear um, dez, centenas de corpos avulsos tentando o amor verbalizar, entrou numa biblioteca. Ali estavam as grandes paixões. Os poetas e novelistas deveriam saber das coisas. Julietas se debruçavam apunhaladas sobre o corpo morto dos Romeus, Tristãos e Isoldas tomavam o filtro do amor e ficavam condenados à traição daqueles que mais amavam e sem poderem realizar o amor.
O amor se procurava. E se encontrando, desesperava, se afastava, desencontrava.
Então, pensou: há o amor, há o desejo e há a paixão.
O desejo é assim: quer imediata e pronta realização. É indistinto. Por alguém que, de repente, se ilumina nas taças de uma festa, por alguém que de repente dobra a perna de uma maneira irresistivelmente feminina.
Já a paixão é outra coisa. O desejo não é nada pessoal. A paixão é um vendaval. Funde um no outro, é egoísta e, em muitos casos, fatal.
O amor soma desejo e paixão, é a arte das artes, é arte final.
Mas reparou: amor às vezes coincide com a paixão, às vezes não.
Amor às vezes coincide com o desejo, às vezes não.
Amor às vezes coincide com o casamento, às vezes não.
E mais complicado ainda: amor às vezes coincide com o amor, às vezes não.
Absurdo. 
Como pode o amor não coincidir consigo mesmo?
Adolescente amava de um jeito. Adulto amava melhormente de outro. Quando viesse a velhice, como amaria finalmente? Há um amor dos vinte, um amor dos cinquenta e outro dos oitenta? Coisa de demente.
Não era só a estória e as estórias do seu amor. Na história universal do amor, amou-se sempre diferentemente, embora parecesse ser sempre o mesmo amor de antigamente.
Estava sempre perplexo. Olhava para os outros, olhava para si mesmo ensimesmado.
Não havia jeito. O amor era o mesmo e sempre diferenciado.
O amor se aprendia sempre, mas do amor não terminava nunca o aprendizado.
Optou por aceitar a sua ignorância.
Em matéria de amor, escolar, era um repetente conformado.
E na escola do amor declarou-se eternamente matriculado.


Texto extraído do livro "21 Histórias de amor", Francisco Alves Editora – Rio de Janeiro, 2002, pág.11.
 
 

Willem Haenraets 

  • "[...]Passam os séculos, os homens, as repúblicas, as paixões; a história faz-se dia por dia, folha a folha; as obras humanas alteram-se, corrompem-se, modificam-se, transformam-se. Toda a superfície civilizada da terra é um vasto renascer de coisas e ideias.” - Machado de Assis, Excerto de 'O Alienista"
 

  Willem Haenraets 

  • "Sede como os pássaros que, ao pousarem um instante sobre ramos muito leves, sentem-nos ceder, mas cantam! Eles sabem que possuem asas." - Victor Hugo 
 

  Willem Haenraets

  • "Poeta, não é somente o que escreve. É aquele que sente a poesia, se extasia sensível ao achado de uma rima à autenticidade de um verso." - Cora Coralina 
 



Pinturas de Willem Haenraets


"Epitáfio para o Século XX" - Poema de Affonso Romano de Sant'Anna





Epitáfio para o Século XX 

1

Aqui jaz um século 
onde houve duas ou três guerras 
mundiais, e milhares 
de outras pequenas, 
e igualmente bestiais.

2

Aqui jaz um século 
onde se acreditou, 
que estar à esquerda 
ou à direita, 
eram questões centrais. 

3

Aqui jaz um século, 
que quase se esvaiu 
na nuvem atómica. 
Salvaram-no o acaso 
e os pacifistas, 
com sua homeopática 
atitude 
-nux-vómica. 

4

Aqui jaz um século 
que um muro dividiu. 
Um século de betão 
armado, canceroso, 
drogado, empestado, 
que enfim sobreviveu 
às bactérias que pariu. 

5

Aqui jaz um século 
que se abismou 
com as estrelas 
nas telas, 
e que o suicídio 
de supernovas 
contemplou. 
Um século filmado, 
que o vento levou. 

6

Aqui jaz um século 
semiótico e despótico, 
que se pensou dialéctico 
e foi patético e aidético. 
Um século que decretou 
a morte de Deus, 
a morte da história, 
a morte do homem, 
em que se pisou na Lua 
e se morreu de fome. 

7

Aqui jaz um século 
que opondo classe a classe 
quase se desclassificou. 
Século cheio de anátemas 
e antenas, sibérias e gestapos 
e ideologias safenas; 
século tecnicolor, 
que tudo transplantou 
e o branco, do negro, 
a custo aproximou. 

8

Aqui jaz um século 
que se deitou no divã. 
Século narciso e esquizo, 
que não pode computar os 
seus neologismos. 
Século vanguardista, 
marxista, guerrilheiro, 
terrorista, freudiano, 
proustiano, joyciano, 
borges-kafkiano. 
Século de utopias e hippies 
que caberiam num chip. 

9

Aqui jaz um século 
que se chamou moderno, 
e olhando presunçoso, 
o passado e o futuro 
julgou-se eterno; 
século que de si 
fez alarde 
e, no entanto 
- já vai tarde. 

10

Foi duro atravessá-lo.
Muitas vezes morri, outras
quis regressar ao 18
ou 16, pular ao 21,
sair daqui
para o lugar nenhum.

11

Tende piedade de nós, ó vós
que em outros tempos nos julgais
da confortável galáxia
em que irónico estais.
Tende piedade de nós
-modernos medievais-
tende piedade como Villon
e Brecht por minha voz
de novo imploram. Piedade
dos que viveram neste século
per seculae seculorum.


 

Obras de Gustav Klimt
Gustav Klimt


"Educar é semear com sabedoria e colher com paciência". 

(Augusto Cury)


Gustav Klimt


"Não há saber mais ou saber menos. Há saberes diferentes". 



Gustav Klimt, Judith-I


"Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre". 

(Paulo Freire) 


Gustav Klimt


"Não se pode falar de educação sem amor". 

(Paulo Freire)


Gustav Klimt


"O vento é o mesmo, mas sua resposta é diferente em cada folha".

(Cecília Meireles) 


Gustav Klimt


“O homem que não lê não tem mais mérito que o homem que não sabe ler.”

(Mark Twain)


Gustav Klimt


"Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina." 

(Cora Coralina)


Gustav Klimt


"A tarefa essencial do professor é despertar a alegria de trabalhar e de conhecer". 

(Albert Einstein)


Gustav Klimt


"Amigo, antes da morte vir, nasce de vez para a vida." 

(Manuel da Fonseca) 


Gustav Klimt


"Investir em conhecimentos rende sempre melhores juros."

(Benjamin Franklin)


"A implosão da mentira" - Poema de Affonso Romano de Sant'Anna


Obra de Cristina Bertuzzi, pintora italiana



A implosão da mentira 

Fragmento 1 


Mentiram-me. Mentiram-me ontem 
e hoje mentem novamente. Mentem 
de corpo e alma, completamente. 
E mentem de maneira tão pungente 
que acho que mentem sinceramente. 

Mentem, sobretudo, impune/mente. 
Não mentem tristes. Alegremente 
mentem. Mentem tão nacional/mente 
que acham que mentindo história afora 
vão enganar a morte eterna/mente. 

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases 
falam. E desfilam de tal modo nuas 
que mesmo um cego pode ver 
a verdade em trapos pelas ruas. 

Sei que a verdade é difícil 
e para alguns é cara e escura. 
Mas não se chega à verdade 
pela mentira, nem à democracia 
pela ditadura.


Pintura de Cristina Bertuzzi


Fragmento 2 

Evidente/mente a crer 
nos que me mentem 
uma flor nasceu em Hiroshima 
e em Auschwitz havia um circo 
permanente. 

Mentem. Mentem caricatural- 
mente. 
Mentem como a careca 
mente ao pente, 
mentem como a dentadura 
mente ao dente, 
mentem como a carroça 
à besta em frente, 
mentem como a doença 
ao doente, 
mentem clara/mente 
como o espelho transparente. 

Mentem deslavadamente, 
como nenhuma lavadeira mente 
ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem 
com a cara limpa e nas mãos 
o sangue quente. Mentem 
ardente/mente como um doente 
em seus instantes de febre. Mentem 
fabulosa/mente como o caçador que quer passar 
gato por lebre. E nessa trilha de mentiras 
a caça é que caça o caçador 
com a armadilha. 

E assim cada qual 
mente industrial?mente, 
mente partidária?mente, 
mente incivil?mente, 
mente tropical?mente, 
mente incontinente?mente, 
mente hereditária?mente, 
mente, mente, mente. 

E de tanto mentir tão brava/mente 
constroem um país 
de mentira 
—diária/mente.


Pintura de Cristina Bertuzzi


Fragmento 3 

Mentem no passado. E no presente 
passam a mentira a limpo. E no futuro 
mentem novamente. 

Mentem fazendo o sol girar 
em torno à terra medieval/mente. 

Por isto, desta vez, não é Galileu 
quem mente,
mas o tribunal que o julga 
herege/mente. 

Mentem como se Colombo partindo 
do Ocidente para o Oriente 
pudesse descobrir de mentira 
um continente. 

Mentem desde Cabral, em calmaria, 
viajando pelo avesso, iludindo a corrente 
em curso, transformando a história do país 
num acidente de percurso. 


Pintura de Cristina Bertuzzi 


Fragmento 4 

Tanta mentira assim industriada 
me faz partir para o deserto 
penitente/mente, ou me exilar 
com Mozart musical/mente em harpas 
e oboés, como um solista vegetal 
que absorve a vida indiferente. 

Penso nos animais que nunca mentem. 
mesmo se têm um caçador à sua frente. 
Penso nos pássaros 
cuja verdade do canto nos toca 
matinalmente. 

Penso nas flores 
cuja verdade das cores escorre no mel 
silvestremente. 

Penso no sol que morre diariamente 
jorrando luz, embora 
tenha a noite pela frente. 


Pintura de Cristina Bertuzzi


Fragmento 5 

Página branca onde escrevo. Único espaço 
de verdade que me resta. Onde transcrevo 
o arroubo, a esperança, e onde tarde 
ou cedo deposito meu espanto e medo. 

Para tanta mentira só mesmo um poema 
explosivo-conotativo 
onde o advérbio e o adjetivo não mentem 
ao substantivo 
e a rima rebenta a frase 
numa explosão da verdade. 

E a mentira repulsiva 
se não explode pra fora 
pra dentro explode 
implosiva. 



[Este poema foi publicado em diversos jornais em 1980 e também em várias antologias, como "A Poesia Possível", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1987. Apesar do tempo decorrido, face aos acontecimentos políticos que vimos assistindo nesses últimos tempos, ele permanece atualíssimo.]


Pintura de Cristina Bertuzzi



Affonso Romano de Sant'Anna


Affonso Romano de Sant'Anna (Belo Horizonte, 27 de março de 1937) é um caso raro de artista e intelectual que une a palavra à ação. Com uma produção diversificada e consistente, pensa o Brasil e a cultura do seu tempo, e se destaca como teórico, como poeta, como cronista, como professor, como administrador cultural e como jornalista.

Com mais de 40 livros publicados, professor em diversas universidades brasileiras - UFMG, PUC/RJ, URFJ, UFF, no exterior lecionou nas universidades da California (UCLA), Koln (Alemanha), Aix-en-Provence (França). Seu talento foi confirmado pelo estímulo recebido de várias fundações internacionais como a Ford Foundation, Guggenheim, Gulbenkian e o DAAD da Alemanha, que lhe concederam bolsas de estudo e pesquisa em diversos países.

Nascido em Belo Horizonte, desde os anos 60 teve participação ativa nos movimentos que transformaram a poesia brasileira, interagindo com os grupos de vanguarda e construindo sua própria linguagem e trajetória. Data desta época sua participação nos movimentos políticos e sociais que marcaram o país. Embora jovem, seu nome já aparece nas principais publicações culturais do país. Por isto, como poeta e cronista foi considerado pela revista “Imprensa”, em 1990, como um dos dez jornalistas que mais influenciam a opinião de seu país.

Nos anos 70, dirigindo o Departamento de Letras e Artes, PUC/RJ, estruturou a pós graduação em literatura brasileira do Brasil, considerada uma das melhores do país. Trouxe ao Brasil conferencistas estrangeiros como Michel Foucault e apesar das dificuldades impostas pela ditadura realizou uma série de encontros nacionais de professores, escritores e críticos literários além de promover a “ Expoesia” - evento que reuniu 600 poetas num balanço da poesia brasileira. 

Durante sua gestão, pela primeira vez no país a chamada literatura infanto-juvenil passou a ser estudada na universidade e a ser tema de teses de pós-graduação. Foram também abertos cursos de Criação Literária com a presença de importantes escritores nacionais.
Foi autor, dentro da universidade, de trabalhos pioneiros sobre música popular, como o livro "Música popular e moderna poesia brasileira".

Como jornalista trabalhou nos principais jornais e revistas do país: Jornal do Brasil (pesquisa e copydesk), Senhor (colaborador), Veja (critico), Isto É (Cronista), colaborador do jornal O Estado de São Paulo. Foi cronista da Manchete e do Jornal do Brasil e está n'O Globo desde 1988.

Considerado pelo crítico Wilson Martins como o sucessor de Carlos Drummond de Andrade, no sentido de desenvolver uma “linhagem poética” que vem de Gonçalves Dias, Bilac, Bandeira e Drummond, realmente substituiu este último como cronista no “Jornal do Brasil”, em 1984. E foi sobre Carlos Drummond de Andrade a sua tese de doutoramento (UFMJ), intitulada: "Drummond, o gauche no tempo", que mereceu quatro prémios nacionais.

Nos duros tempos da última ditadura militar, Affonso Romano de Sant'Anna publicou corajosos poemas nos principais jornais do país, não nos suplementos literários, mas nas páginas de política. Poemas como “Que país é este?” (traduzido para o espanhol, inglês, francês e alemão), foram transformados em “posters”, aos milhares, e colocados em escritórios, sindicatos, universidades e bares.
Nessa época produziu uma série de poemas para a televisão (Globo). Esses poemas eram transmitidos no horário nobre, no noticiário noturno e atingiam uma audiência de 60 milhões de pessoas.

Como presidente da Biblioteca Nacional — a oitava biblioteca do mundo, com oito milhões de volumes — realizou entre 1990 e 1996 a modernização tecnológica da instituição, informatizando-a, ampliando seus edifícios e lançando programas de alcance nacional e internacional.
Criou o Sistema Nacional de Bibliotecas, que reúne 3.000 instituições e o PROLER (Programa de Promoção da Leitura), que contou com mais de 30 mil voluntários e estabeleceu-se em 300 municípios em 1991 lançou o programa “Uma biblioteca em cada município”.
Criou na Biblioteca Nacional os programas de tradução de autores brasileiros, de bolsa para escritores jovens e encontros internacionais com agentes literários.
Seu trabalho à frente da Biblioteca Nacional possibilitou que o Brasil fosse o país-tema da Feira de Frankfurt ( 1994), o país-tema, na Feira de Bogotá (1995) e no Salão do Livro (Paris, 1998).

Lançou a revista “Poesia Sempre”, de circulação internacional, tendo organizado números especiais sobre a América Latina, Portugal, Espanha, Itália, França, Alemanha.
Foi Secretário Geral da Associação das Bibliotecas Nacionais Ibero-Americanas (1995-1996), que reúne 22 instituições desenvolvendo amplo programa de integração cultural no continente.
Foi Presidente do Conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe-CERLALC), 1993-1995. 

Como poeta participou do “International Writing Program” (1968-1969) em Iowa, USA, dedicado a jovens escritores de todo o mundo.
Tem participado de dezenas de encontros internacionais de poesia. Esteve no Festival Internacional de Poesia Pela Paz, na Coréia (2005), realizou uma série de leituras de poemas no Chile, por ocasião do centenário de Neruda (2004), esteve na Irlanda, no Festival Gerald Hopkins (1996), na Casa de Bertold Brecht, em Berlim (1994), no Encontro de Poetas de Língua Latina (1987), no México, no Encontro de Escritores Latino-americanos em Israel (1986).
Mereceu vários prémios nacionais destacando-se o da Associação Paulista de Críticos de Arte pelo "conjunto de obra".

Foi júri de uma série de prémios internacionais como o Prémio Camões (Portugal/Brasil), Prémio Rainha Sofia (Espanha), Prémio Peres Bonald (Venezuela), Prémio Pégaso/Mobil Oil (Colômbia/USA).
Diversos textos seus foram convertidos em teatro, balé e música e tem diversos CDs de literatura gravados com sua voz e na voz de atores diversos.
Sua obra tem sido objeto de teses de mestrado e doutorado no Brasil e no exterior.
Recebeu algumas das principais comendas brasileiras como Ordem Rio Branco, Medalha Tiradentes, Medalha da Inconfidência, Medalha Santos Dummont.
É casado com a escritora Marina Colasanti.

Obras:

Poesia
"Canto e Palavra"- 1965 - Imprensa Oficial de Minas Gerais
"Poesia sobre Poesia"- 1975 - Imago/RJ
"A Grande Fala do Índio Guarani"- 1978 - Summus Editorial/SP
"Que País é Este?"- 1980 - Civilização Brasileira - 1984 - Rocco/RJ 
"A Catedral de Colônia e Outros Poemas"- 1987 - Rocco/RJ 
"A Poesia Possível" (poesia reunida) - 1987 - Rocco/RJ
"O Lado Esquerdo do Meu Peito"- 1991 - Rocco/RJ 
"Epitáfio para o século XX" (antologia) - 1997 - Ediouro/SP
"Melhores poemas de Affonso Romano de Sant'Anna - Global/SP
"A grande fala e Catedral de Colônia" (ed. comemorativa) -1998 - Rocco, Rio
"O intervalo amoroso" (antologia). - 1999 - L&PM/Porto Alegre
"Textamentos" - 1999 - Rocco/RJ
"Vestígios" - 2005 - Rocco/RJ
"A cegueira e o saber" - 2006 - Rocco/RJ


Pintura de Cristina Bertuzzi 


"Às vezes, você perde vários poemas, porque sente uma frase, sente algo murmurado no seu espírito e não presta atenção porque está ocupado com os ruídos da vida. É necessário apurar o seu ouvido, ter a humildade de anotar a coisa mesmo quando ela não é muito boa. Pode, de repente, um texto meio nebuloso, meio esquisito, meio simplório demais, dar raiz a um poema posteriormente interessante." - Affonso Romano de Sant'Anna


Pintura de Cristina Bertuzzi


"Um público comprometido com a leitura é crítico, rebelde, inquieto, pouco manipulável e não crê em lemas que alguns fazem passar por ideias." - Mário Vargas Llosa


Pintura de Cristina Bertuzzi


''Não estou doente. Estou partida. Mas me sinto feliz por continuar viva enquanto puder pintar." - Frida Kahlo
 

Pintura de Cristina Bertuzzi


"Nós estamos no meio de uma corrida entre a habilidade humana quanto aos meios e tolice humana quanto aos fins." - Bertrand Russell


Pintura de Cristina Bertuzzi 


"A humanidade tem dupla moral: uma que prega mas não pratica, outra que prati­ca mas não prega." - Bertrand Russell



Entrevista com Affonso Romano de Sant'Anna

O escritor Affonso Romano de Sant'Anna relembra o início da carreira, fala sobre seu mais recente livro, "O enigma vazio", e a literatura contemporânea.

sábado, 28 de abril de 2012

"Janelas de Estremoz" - Poema de Sebastião da Gama


Café Águias de Ouro, Estremoz (Arte Nova )



Janelas de Estremoz


Janela fechada,
cortina corrida...
Nem flor a perfuma,
nem moça a enfeita.
- Ninguém se lhe assoma.
Janela tão triste,
nem ao Sol aberta...

Em toda a cidade
se repete a história
mil vezes; mil vezes,
se olhares a janela
ou desta ou daquela 
casinha caiada,
a vês divorciada
do Sol e de tudo
que graça lhe dera.

Há vinte janelas
na casa da esquina?
- Na rua de cá
dez estão fechadas;
outras dez, fechadas
na rua de lá.
Ah! tão retraídas!
Ah! tão agressivas!

Que pessoas vivas
foi que as condenaram?

Ó janelas mudas,
pobres prisioneiras!,
que pessoas vivas,
por que expiação,
vivem na prisão
em que vos meteram?

- sem sol que as aquente...
sem flor que as alegre...

Janela cerrada,
cortina descida...
Mocinha escondida
por trás da janela
- quanto mais não vale
a rosa encarnada
que a rosa amarela!...





Café Águias de Ouro, Estremoz - Janelas no segundo piso.


O Café Águias de Ouro ou Café Águias D'Ouro situa-se na freguesia da Santo André, no Concelho de Estremoz, Distrito de Évora, Portugal.
Foi classificado como IIP - Imóvel de Interesse Público em 2002.
O edifício foi edificado em 1908 e inaugurado em 4 de Abril de 1909. O arquitecto do projecto foi Jorge Santos Costa. 
Imóvel de planta rectangular de três pisos, sendo de realçar as enormes janelas e varandas dos pisos superiores, de estilo Arte Nova, construídas com complexas guardas de ferro com motivos geométricos e vitrais executados a verde, castanho e azul.
É um sobrevivente dos antigos cafés de tertúlia portugueses de finais do século XIX, inícios do século XX, daí a importância sociológica do imóvel.


Edificio Arte Nova, Rua da Galeria de Paris (Porto, Portugal)


Edificio Arte Nova, Rua Cândido Reis (Porto, Potugal).



NOVA YORK, NOVA YORK - FRANK SINATRA




Instante


Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes
Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio.


Sophia de Mello Breyner Andresen