segunda-feira, 30 de setembro de 2013

"Desejar Aplausos" - Texto de Miguel Torga


Gregory Deane, Traces of Time, Mixed Media on Canvas Painting 60" x 50"



Desejar Aplausos


"Desejar aplausos em arte é mais uma necessidade do que uma vaidade. É sentir que se é necessário, que nos querem. Não há nada mais esterilizante do que estar o dia inteiro no consultório à espera de doentes que nos passam à porta e vão à consulta do vizinho. Escrever para a posteridade não consola nem estimula ninguém. A legítima oração de todo o artista, quer queiram, quer não, tem de ser esta: dai-nos, Senhor, um pouco de glória em vida."
 
Miguel Torga, in "Diário (1947)"


Gregory Deane, Eclipse Time, Mixed Media on Canvas Painting 58" x 58"
 
 
Gregory Deane, The Formation, Mixed Media Painting 48" x 48" 


Gregory Deane, Lava Embers, Mixed Media Painting 48" x 48" 


Gregory Deane, Thwack, Mixed Media on Canvas Painting 50" x 50"


Gregory Deane, Fundere, Mixed Media on Canvas Painting 36" x 50"
 

Gregory Deane, India, Mixed Media on Canvas Painting 48" x 72"


Gregory Deane, "Assurine", Mixed Media on Canvas Painting 48" x 48"

 
 “My art, at its best, is a continuous process of self-discovery…sometimes headlong, sometime introspective…but always dynamic. I work to create paintings that are pleasing to the eye… Paintings that are filled with energy and generosity… Paintings that are instinctive and fluid…not contrived. I paint because I do what I enjoy doing!”

Gregory Deane


Gregory Deane, Autumn Trails, Mixed Media on Canvas Painting 52" x 44"

"O mercado pode tornar-se uma ditadura" - Texto de José Saramago


Russ Vogt (American, 20th century), "Autumn Forest", 1999


O mercado pode tornar-se uma ditadura


"A diferença (entre a ditadura e o capitalismo) é que não é a ditadura como nós conhecemos. É o que eu chamo de «capitalismo autoritário». A ditadura tinha cara, e nós dizíamos é aquela, ou aqueles militares, o Hitler, o Franco, o Pinochet, mas agora não tem cara. E como não tem cara não sabemos contra quem lutar. Não há contra quem lutar. O mercado não tem cara, só tem nome. Está em toda a parte e não podemos identificá-lo, dizer «és tu». Mesmo as pessoas que lutaram contra a ditadura, entrando na democracia acham que não têm mais que lutar. E os problemas estão todos aí. O mercado pode tornar-se uma ditadura."


José Saramago, in 'O Globo (1999)'


Russ Vogt, "Untitled"


"Eu sou tão pessimista que acho que a humanidade não tem remédio. Vamos de desastre em desastre e não aprendemos com os erros".

(José Saramago)


José de Sousa Saramago (Golegã, Azinhaga, 16 de Novembro de 1922 — Tías, Lanzarote, 18 de Junho de 2010) foi um escritor, argumentista, teatrólogo, ensaísta, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português. 
Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa.


 Russ Vogt,  "Farm Land"


 Russ Vogt, "Birch 916"


Russ Vogt, "Land in Motion II"


 Russ Vogt, "Red Trees"


 Russ Vogt, "Woodland View" 


 
Russ Vogt, Green by the Lake


Russ Vogt was born in Richmond, Minnesota. He received his Bachelor of Elective Studies degree from St. Cloud State University, Minnesota, and his Master of Fine Arts degree from the University of Illinois in Chicago.His work has been shown throughout the United States and can be found in several corporate and public collections. Inspired by the woods surrounding his home, 
Vogt paints dense landscapes filled with trees but liberated with intense colors characteristic of stained glass. The artist’s use of color and composition are nontraditional, suggesting the early work of French painter Henri Matisse. Vogt’s flamboyant, loosely painted work is meant to celebrate the pleasures of the eye. He and his wife currently reside in Minnesota. More recently, Vogt has made a name for himself with large-scale outdoor sculptures in totem form, which wonderfully complement his works on canvas as they are equally as colorful and bold: 
“Since living in a rural environment, I’ve had an interest in largescale outdoor ceramic sculpture. My perspectives on color, gesture, scale, essence and vitality have ultimately led me to build my pole sculptures. These forms are covered with handmade, brightly colored tile; they can take the shape of animals, figures, pillars, walls, reliefs, and birdbaths. The components are large-scale extruded, wheel-thrown, and hand built earthenware forms. The tube-like components are stacked spontaneously on an underlying steel pipe structure. These poles can be seen as individuals, configured as fences, clustered together, mounted on concrete walls, or on the sides of buildings. The technique of hollow form construction using steel, reinforced concrete and high-fired, vitrified ceramic makes them perfect for indoor or outdoor use.” 


Russ Vogt, Howling at the Moon, 
 Handmade Ceramic Tiles on Concrete on Stainless Steel, 41 x 52 x 20"


 Russ Vogt, Uber Wolf, Ceramic, 41 x 62 x 28


Russ Vogt, Small Totem, Ceramic, Steel, Concrete, 25 x 8.5 x 9"


quinta-feira, 26 de setembro de 2013

"A esmola do pobre" - Poema de Júlio Dinis


Monumento a Júlio Dinis, no Porto, sua cidade natal.


[O Monumento é constituído por busto em bronze, da autoria do Mestre João da Silva (1880 – 1960), que assenta sobre plinto em granito. O conjunto é complementado com elegante figura feminina que presta homenagem através de deposição de grinalda de flores junto ao busto do poeta. O conjunto resultou de uma homenagem da Faculdade de Medicina do Porto e oferta do monumento à Câmara Municipal da mesma cidade. Foi inaugurado em 1 de Junho de 1926.]




A esmola do pobre 


Nos toscos degraus da porta
De igreja rústica e antiga,
Velha trémula e mendiga
Implorava compaixão.
Quase um século contado
De atribulada existência,
Ei-la enferma e na indigência,
Que à piedade estende a mão.

Duas crianças brincavam
À distância, na alameda;
Uma trajada de seda,
Da outra humilde era o trajar.
Uma era rica, outra pobre,
Ambas loiras e formosas,
Nas faces a cor das rosas,
Nos olhos o azul do ar.

A rica, ao deixar os jogos,
Vencida pelo cansaço,
Viu a mendiga – e ao regaço
Uma esmola lhe lançou.
Ela recebe-a; e a criança,
Que a socorre compassiva,
Em prece fervente e viva,
Aos anjos encomendou.

De um ligeiro sentimento
De vaidade possuída,
À criança mal vestida
Disse a do rico trajar:
- «O prazer de dar esmolas
A ti e aos teus não é dado;
Pobre como és, coitado,
Aos pobres o que hás de dar?»

Então a criança pobre,
Sem más sombras de desgosto,
Tendo o sorriso no rosto,
Da igreja se aproximou;
E após, serena, em silêncio,
Ao chegar junto da velha,
Descobrindo-se, ajoelha,
E a magra mão lhe beijou.

E a mendiga alvoroçada,
Ao colo os braços lhe lança,
E beija a pobre criança,
Chorando de comoção!
É assim que a caridade
Do pobre ao pobre consola;
Nem só da mão sai a esmola,
Sai também do coração.


Júlio Dinis


 

Escritor português, Júlio Dinis é o pseudónimo literário mais conhecido de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, entre os vários que o autor adotou ao longo da sua carreira literária.
Nasceu a 14 de novembro de 1839, no Porto, e morreu a 12 de setembro de 1871, na mesma cidade. Licenciou-se em Medicina, mas dedicou-se sobretudo à literatura, podendo ser considerado como um escritor de transição, situado entre o fim do Romantismo e o início do Realismo. 
É autor de poesias, peças de teatro, textos de teorização literária, mas destaca-se sobretudo como romancista, deixando em pouco mais de trinta e dois anos de vida uma produção original e inovadora, que contribuiu grandemente para a criação do romance moderno em Portugal.
Órfão de mãe aos seis anos, estudou na Academia Politécnica a partir de 1853, onde se relacionou com o poeta portuense Soares de Passos, e ingressou na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, em 1855, ano em que dois irmãos seus morrem, vítimas da tuberculose. Por essa altura, entrou para um grupo de teatro, o "Cenáculo", e escreveu as suas primeiras peças de teatro, que viriam a ser postumamente reunidas nos três volumes do Teatro Inédito, em 1946-1947. 
Em 1860, ano da morte de Soares de Passos, abandonou o "Cenáculo" e estreou-se na revista "A Grinalda" com poesias românticas que viriam a fazer parte das Poesias (1870). 
Em 1861, concluiu o curso de Medicina. Nos dois anos seguintes, publicou em folhetim no Jornal do Porto alguns dos contos que seriam postumamente compilados em Serões da Província, assinando ora Júlio Dinis, ora Diana de Aveleda. 
Em 1863, passou uma temporada em casa de familiares, em Ovar, para se tratar da tuberculose, declarada um ano antes. Aí, descobre os encantos da vida rural, que estará presente em grande parte das suas obras - Júlio Dinis foi principalmente um escritor de espaços, oferecendo-nos quadros onde revela uma preocupação pela veracidade nas descrições das aldeias, dos ambientes e caracteres, e na evolução da intriga. 
Em 1865, ingressou na Escola Médico-Cirúrgica, onde se formara, como demonstrador. 
O seu primeiro romance, As Pupilas do Senhor Reitor, é publicado em folhetins no Jornal do Porto, em 1866, e em volume um ano depois. Seguem-se-lhe, em 1868, Uma Família Inglesa (retrato da vida citadina, dando especial relevo à pequena burguesia nascente) e A Morgadinha dos Canaviais, no mesmo ano em que As Pupilas do Senhor Reitor, adaptadas ao teatro, são representadas no Teatro da Trindade.
Em 1869, parte para a Madeira, em busca de uma melhoria do seu estado de saúde, regressando, um ano depois, ao Porto, onde publica os Serões da Província. No mesmo ano, concluiu o seu quarto romance, Os Fidalgos da Casa Mourisca, cujas provas tipográficas já não acabará de rever. 
Em 1871, no mesmo ano em que as Pupilas do Senhor Reitor são representadas no Rio de Janeiro, assinalando já a celebridade do escritor além fronteiras, morre prematuramente, vítima da tuberculose.
Em 1874, surge o volume póstumo das Poesias e, em 1910, a compilação de textos narrativos e teóricos Inéditos e Esparsos.
Júlio Dinis - cujo conhecimento da língua e da cultura inglesas (a sua mãe era de ascendência irlandesa) lhe possibilitou a leitura de novelistas como Jane Austen, Richardson, Thackeray e Dickens, cujas obras são marcadas pelo realismo psicológico - deixou uma produção romanesca eivada de componentes realistas e românticos. Assim, se a sua conceção do romance, exposta em Inéditos e Esparsos, baseada na lentidão da narrativa, na averiguação da verdade, no tratamento de temas familiares e quotidianos, o aproxima da estética realista, a idealização do campo, da mulher, da família, a tendência para a solução harmoniosa dos conflitos, o pendor moralizador dos desfechos das intrigas, o otimismo do seu ideal social, em que felicidade amorosa e harmonização social são indissociáveis, têm ressonâncias românticas. 

Júlio Dinis. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. [Consult. 2013-09-26].


Pedro Abrunhosa - "Toma Conta de Mim" [2013]
Música e Letra - Pedro Abrunhosa

"O Livro da Vida" - Poema de António Feijó

 
Ford Madox Brown, 'Hampstead from my Window', 1857


O Livro da Vida 


Absorto, o Sábio antigo, estranho a tudo, lia... 
— Lia o «Livro da Vida» — herança inesperada, 
Que ao nascer encontrou, quando os olhos abria 
Ao primeiro clarão da primeira alvorada. 

Perto dele caminha, em ruidoso tumulto, 
Todo o humano tropel num clamor ululando, 
Sem que de sobre o Livro erga o seu magro vulto, 
Lentamente, e uma a uma, as suas folhas voltando. 

Passa o Estio, a cantar; acumulam-se Invernos; 
E ele sempre, — inclinada a dorida cabeça,— 
A ler e a meditar postulados eternos, 
Sem um fanal que o seu espírito esclareça! 

Cada página abrange um estádio da Vida, 
Cujo eterno segredo e alcance transcendente 
Ele tenta arrancar da folha percorrida, 
Como de mina obscura a pedra refulgente. 

Mas o tempo caminha; os anos vão correndo; 
Passam as gerações; tudo é pó, tudo é vão... 
E ele sem descansar, sempre o seu Livro lendo! 
E sempre a mesma névoa, a mesma escuridão. 

Nesse eterno cismar, nada vê, nada escuta: 
Nem o tempo a dobrar os seus anos mais belos, 
Nem o humano sofrer, que outras almas enluta, 
Nem a neve do Inverno a pratear-lhe os cabelos! 

Só depois de voltada a folha derradeira, 
Já próximo do fim, sobre o livro, alquebrado, 
É que o Sábio entreviu, como numa clareira, 
A luz que iluminou todo o caminho andado.. 

Juventude, manhãs de Abril, bocas floridas, 
Amor, vozes do Lar, estos do Sentimento, 
— Tudo viu num relance em imagens perdidas, 
Muito longe, e a carpir, como em noturno vento. 

Mas então, lamentando o seu estéril zelo, 
Quando viu, a essa luz que um instante brilhou, 
Como o Livro era bom, como era bom relê-lo, 
Sobre ele, para sempre, os seus olhos cerrou... 


António Feijó, in 'Sol de Inverno'


Ford Madox Brown, 1844, The Bromley Family


"O mal é ninguém ter ainda percebido que o problema para mim consiste apenas em saber de que lado estão os valores da vida. Se os meus valores estivessem trocados, e eu o percebesse, seria eu o primeiro a destrocá-los. Mas não vejo que estejam. E não mudo."
 
 Miguel Torga, in Diário (1948)




"Destrocar" ou "Trocar"?

Quando o nosso objetivo é converter uma nota em moedas, o que devemos dizer?
a) "Trocas-me esta nota?"
b) "Destrocas-me esta nota?"


A forma correta é a da alínea a). Devemos usar o verbo trocar porque destrocar significa "desfazer uma troca".

Assim, podemos dizer:

- Trocas-me esta nota de cinco euros por moedas de um euro?
- Fui à loja outra vez para destrocar o mp3. (= ou seja, anular a troca anterior)
- Vou ao banco destrocar as libras que me sobraram.

Note-se que em contextos informais e mais populares é comum usar-se a forma destrocar, mas deve evitar-se em situações mais formais.

http://www.flip.pt/Duvidas-Linguisticas/Duvida-Linguistica.aspx?DID=2515
http://www.ciberduvidas.com/pergunta.php?id=2747


quarta-feira, 25 de setembro de 2013

"A Vida Oblíqua" - Texto de Clarice Lispector


Joaquín Sorolla, The Horse’s Bath, 1909



A Vida Oblíqua


Só agora pressenti o oblíquo da vida. Antes só via através de cortes retos e paralelos. Não percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida é outra. Que viver não é só desenrolar sentimentos grossos — é algo mais sortilégico e mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim com que a existência feneça no que tem de oblíquo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e não existe nisso contradição. 

A vida oblíqua é muito íntima. Não digo mais sobre essa intimidade para não ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblíquo na sua independência desenvolta. 

E conheço também um modo de vida que é suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contínua, de uma habilidade de esquivança que vem de longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excêntrica. Tem um lado da vida que é como no inverno tomar café num terraço dentro da friagem e aconchegada na lã. 

Conheço um modo de vida que é sombra leve desfraldada ao vento e balançando leve no chão: vida que é sombra flutuante, levitação e sonhos no dia aberto: vivo a riqueza da terra. 

Sim. A vida é muito oriental. Só algumas pessoas escolhidas pela fatalidade do acaso provaram da liberdade esquiva e delicada da vida. É como saber arrumar flores num jarro: uma sabedoria quase inútil. Essa liberdade fugitiva de vida não deve ser jamais esquecida: deve estar presente como um eflúvio. 

Viver essa vida é mais um lembrar-se indireto dela do que um viver direto. Parece uma convalescença macia de algo que no entanto poderia ter sido absolutamente terrível. Convalescença de um prazer frígido. Só para os iniciados a vida então se torna fragilmente verdadeira. E está-se no instante-já: come-se a fruta na sua vigência. Será que não sei mais do que estou falando e que tudo me escapou sem eu sentir? Sei sim — mas com muito cuidado porque senão por um triz não sei mais. Alimento-me delicadamente do cotidiano trivial e tomo café no terraço no limiar deste crepúsculo que parece doentio apenas porque é doce e sensível. 

A vida oblíqua? Bem sei que há um desencontro leve entre as coisas, elas quase se chocam, há desencontro entre os seres que se perdem uns aos outros entre palavras que quase não dizem mais nada. Mas quase nos entendemos nesse leve desencontro, nesse quase que é a única forma de suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco face a face com ela nos assustaria, espaventaria os seus delicados fios de teia de aranha. Nós somos de soslaio para não comprometer o que pressentimos de infinitamente outro nessa vida de que te falo. 

E eu vivo de lado — lugar onde a luz central não me cresta. E falo bem baixo para que os ouvidos sejam obrigados a ficar atentos e a me ouvir. 

Mas conheço também outra vida ainda. Conheço e quero-a e devoro-a truculentamente. É uma vida de violência mágica. E misteriosa e enfeitiçante. Nela as cobras se enlaçam enquanto as estrelas tremem. Gotas de água pingam na obscuridade fosforescente da gruta. Nesse escuro as flores se entrelaçam em jardim feérico e úmido. E eu sou a feiticeira dessa bacanal muda. Sinto-me derrotada pela minha própria corruptibilidade. E vejo que sou intrinsecamente má. É apenas por pura bondade que sou boa. Derrotada por mim mesma. Que me levo aos caminhos da salamandra, gênio que governa o fogo e nele vive. E dou-me como oferenda aos mortos. Faço encarnações no solstício, espectro de dragão exorcizado. 

Mas não sei como captar o que acontece já senão vivendo cada coisa que agora e já me ocorra e não importa o quê. Deixo o cavalo livre correr fogoso de pura alegria nobre. Eu, que corro nervosa e só a realidade me delimita. E quando o dia chega ao fim ouço os grilos e torno-me toda cheia e ininteligível. Depois a madrugada vem com seu bojo pleno de milhares de passarinhos barulhando. E cada coisa que me ocorra eu a vivo aqui anotando-a. Pois quero sentir nas minhas mãos perquiridoras o nervo vivo e fremente do hoje. 

Clarice Lispector, in 'Água Viva'


James Arthur - Impossible 


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

"Porque os outros se mascaram mas tu não" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


Cecily Brown, Untitled (Blood Thicker Than Mud), 2012



Porque


Porque os outros se mascaram mas tu não 
Porque os outros usam a virtude 
Para comprar o que não tem perdão. 
Porque os outros têm medo mas tu não. 

Porque os outros são os túmulos caiados 
Onde germina calada a podridão. 
Porque os outros se calam mas tu não. 

Porque os outros se compram e se vendem 
E os seus gestos dão sempre dividendo. 
Porque os outros são hábeis mas tu não. 

Porque os outros vão à sombra dos abrigos 
E tu vais de mãos dadas com os perigos. 
Porque os outros calculam mas tu não. 


in Mar Novo (1958)




"A democracia surgiu quando, devido ao facto de que todos são iguais em certo sentido, acreditou-se que todos fossem absolutamente iguais entre si."


Aristóteles, Grécia Antiga, -384 // -322
Filósofo/Cientista


"Os convencidos da vida" - Texto de Alexandre O'Neill


Painel exterior do Tribunal de Ovar, de Jorge Barradas, 1965


Os convencidos da vida


Todos os dias os encontro. Evito-os. Às vezes sou obrigado a escutá-los, a dialogar com eles. Já não me confrangem. Contam-me vitórias. Querem vencer, querem, convencidos, convencer. Vençam lá, à vontade. Sobretudo, vençam sem me chatear. 
Mas também os aturo por escrito. No livro, no jornal. Romancistas, poetas, ensaístas, críticos (de cinema, meu Deus, de cinema!). Será que voltaram os polígrafos? Voltaram, pois, e em força. 
Convencidos da vida há-os, afinal, por toda a parte, em todos (e por todos) os meios. Eles estão convictos da sua excelência, da excelência das suas obras e manobras (as obras justificam as manobras), de que podem ser, se ainda não são, os melhores, os mais em vista. 
Praticam, uns com os outros, nada de genuinamente indecente: apenas um espelhismo lisonjeador. Além de espectadores, o convencido precisa de irmãos-em-convencimento. Isolado, através de quem poderia continuar a convencer-se, a propagar-se?

(...) No corre-que-corre, o convencido da vida não é um vaidoso à toa. Ele é o vaidoso que quer extrair da sua vaidade, que nunca é gratuita, todo o rendimento possível. Nos negócios, na política, no jornalismo, nas letras, nas artes. É tão capaz de aceitar uma condecoração como de rejeitá-la. Depende do que, na circunstância, ele julgar que lhe será mais útil. 
Para quem o sabe observar, para quem tem a pachorra de lhe seguir a trajectória, o convencido da vida farta-se de cometer «gaffes». Não importa: o caminho é em frente e para cima. A pior das «gaffes», além daquelas, apenas formais, que decorrem da sua ignorância de certos sinais ou etiquetas de casta, de classe, e que o inculcam como um arrivista, um «parvenu», a pior das «gaffes» é o convencido da vida julgar-se mais hábil manobrador do que qualquer outro. 
Daí que não seja tão raro como isso ver um convencido da vida fazer plof e descer, liquidado, para as profundas. Se tiver raça, pôr-se-á, imediatamente, a «refaire surface». Cá chegado, ei-lo a retomar, metamorfoseado ou não, o seu propósito de se convencer da vida - da sua, claro - para de novo ser, com toda a plenitude, o convencido da vida que, afinal... sempre foi.


Alexandre O'Neill, in "Uma Coisa em Forma de Assim"


Revista ABC, número 360, ano VII, 9 de Junho de 1927.
Capa de Jorge Barradas (1894-1971)


Pintor português, Jorge Nicholson Moore Barradas nasceu em 1894, em Lisboa. Os seus primeiros trabalhos, incursões no campo da caricatura e da ilustração, recolheram da crítica da época os melhores elogios. Enquanto ilustrador, colaborou em importantes jornais e revistas, como a Ideia Nacional, Seara Nova e Ilustração Portuguesa.
A experiência no campo das artes gráficas influenciou as suas primeiras obras, caracterizadas por um equilíbrio de cor, texturas e luz, associado a uma simplicidade do tratamento das formas.
Jorge Barradas estabeleceu a ligação entre a inspiração naturalista e a tendência fauve em representações da cidade de Lisboa e das suas gentes. Os seus quadros mais famosos retratam as lavadeiras e as vendedoras ambulantes de Lisboa, na azáfama do dia a dia. Na sua obra pictórica, executada sobre suportes de grande formato, a linearidade e simplificação dos corpos humanos convive com jogos de contraste de cor e luz, caracterizadores do Fauvismo. Em meados dos anos 40, estende a sua atividade artística à cerâmica, produzindo peças de cariz decorativo.
Ainda nessa década, contribui para a decoração do café "A Brasileira" e do "Bristol Clube" em Lisboa. Faleceu na capital no ano de 1971.

Jorge Barradas. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. 


Revista ABC, número 315, ano III, 29 de Julho de 1926.
Capa de Jorge Barradas (1894-1971)


Revista ABC, número 334, ano VII, 9 de Dezembro de 1926.
Capa de Jorge Barradas (1894-1971)


Revista ABC, número 362, ano VII, 23 de Junho de 1927.
Capa de Jorge Barradas (1894-1971)

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

"No País dos Sacanas" - Poema de Jorge de Sena


Carlos Botelho (1899 1982), Vista de Lisboa, 1981Serigrafia



No País dos Sacanas


Que adianta dizer-se que é um país de sacanas? 
Todos os são, mesmo os melhores, às suas horas, 
e todos estão contentes de se saberem sacanas. 

Não há mesmo melhor do que uma sacanice 
para poder funcionar fraternalmente 
a humidade de próstata ou das glândulas lacrimais, 
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias 
em que tanto se dividem e afinal se irmanam. 

Dizer-se que é de heróis e santos o país, 
a ver se se convencem e puxam para cima as calças? 
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos, 
ingénuos e sacaneados é que foram disso? 

Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora. 
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice, 
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender 
que a nobreza, a dignidade, a independência, a 
justiça, a bondade, etc., etc., sejam 
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados 
a um ponto que os mais não são capazes de atingir. 

No país dos sacanas, ser sacana e meio? 
Não, que toda a gente já é pelo menos dois. 
Como ser-se então nesse país? Não ser-se? 
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia. 
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma.



Carlos Botelho, Lisboa, 1962, óleo sobre tela, 54 x 76,5 cm


"Encontrou-se, em boa política, o segredo de fazer morrer de fome aqueles que, 
cultivando a terra, fazem viver os outros."



Alejandro Sanz - Não Me Compares ft. Ivete Sangalo



"Duas pombas escuras" - Poema de Federico García Lorca

 
Albert Guillaume (1873-1942), The Match-Maker, 1904


Duas pombas escuras


Pelos ramos do loureiro
vi duas pombas escuras.
Uma delas era o sol,
a outra era a lua.
Vizinhitas, lhes disse eu,
- onde é minha sepultura?
Em minha cauda, o sol disse;
na minha garganta, a lua.
E eu, que ia caminhando
com terra pela cintura,
vi duas águias de neve
e uma rapariga nua.
Uma delas era a outra
e a rapariga nenhuma.
Águiazinhas, lhes disse eu,
- onde é minha sepultura?
Em minha cauda, o sol disse;
na minha garganta, a lua.
Pelos ramos do loureiro
eu vi duas pombas nuas.
Uma delas era a outra
e as duas eram nenhuma.
 

(1898-1936)
Tradução de José Bento




«A literatura é uma forma de conhecimento. O que saberíamos do amor se não tivéssemos lido o Otelo, de Shakespeare, Ana Karenina, Madame Bovary?» - Antonio Tabucchi


Miley Cyrus - Wrecking Ball 
A cantora e atriz decidiu romper de vez com a imagem de princesa bem-comportada da Disney 


No ano em que fez 20 anos, deixando oficialmente de pertencer ao reino dos teens, a cantora e atriz Miley Cyrus decidiu romper de vez com a imagem de princesa bem-comportada da Disney. Depois do sururu gerado pela sua atuação "picante" na cerimónia de entrega de prémios da MTV, há duas semanas, voltaram a acender-se bolinhas vermelhas nos ecrãs, na segunda-feira, 9, com a estreia do videoclip de um novo single, Wrecking Ball, em que Miley aparece nua.
Os seus fãs mais puritanos (ou os pais destes...) ficaram chocados com a nova imagem da artista e, considerando que as suas simulações sexuais em palco eram agora um mau exemplo para a juventude, a Vogue americana cancelou uma produção de capa em que a retratava como um ícone do estilo pop. 

O novo agente de Miley Cyrus desvaloriza a polémica, entendendo que a mudança de visual e de atitude faz parte de "uma evolução natural". Já em 2011 a artista tinha tornado públicas as suas divergências com a Sony (com a qual viria a rescindir o contrato, assinando com a RCA) por pretender editar "um trabalho mais sexy e maduro". A verdade é que "ela cresceu e os seus fãs cresceram com ela", lembra Larry Rudolph, que representa, também, Britney Spears: a outra menina bonita da Disney que, há 12 anos, chocou o mundo ao simular cenas sexuais com uma cobra gigante, no palco dos prémios MTV... Show must go on. Hannah Montana morreu, viva a nova rainha. 

Hannah Montana: Entre 2006 e 2010, vestiu a pele desta personagem da Disney, garantindo 4 milhões de espetadores por episódio. 

Menina-mulher: Em 2011, começou a transformar a imagem, assumindo um look mais adulto e glamouroso. 

Rebelde: Em 2012, cortou os longos cabelos e cultivou um ar de "menina má." 

Bomba sexual: Em 2013, aparece nua num videoclip e simula cenas sexuais em palco. (Daqui)


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

"Não julgues segundo a soma" - Texto de Antoine de Saint-Exupéry


William J. Glackens (American realist painter, 1870-1938), La Villette, 1895 
 


Não julgues segundo a soma


Não hás de julgar segundo a soma. Vens-me dizer que não há nada a esperar daqueles acolá. São grosseria, gosto do lucro, egoísmo, ausência de coragem, fealdade. Mas se me podes falar assim das pedras, as quais são rudeza, peso morno e espessura, já o não podes daquilo que tiras das pedras: estátua ou templo. Quase nunca vi o ser comportar-se como o teriam feito prever as suas partes. Se pegares em vizinhos à parte, virás a concluir que cada um deles odeia a guerra e não está disposto a abandonar o lar, porque ama os filhos e a esposa e as refeições de aniversário; nem a derramar o sangue, porque é bom, dá de comer ao cão e faz carícias ao burro, nem a roubar outrem, pois tu bem vês que ele apenas preza a sua própria casa e puxa o lustro às suas madeiras e manda pintar as paredes e perfuma o jardim de flores. E dir-me-ás: «Eles representam no mundo o amor à paz...» No entanto, o império deles não passa de uma grande terrina onde se vai cozendo a guerra. E a bondade deles e a doçura deles pelo animal ferido e a emoção deles à vista de flores não passam de ingrediente de uma magia que prepara o tilintar das armas, da mesma maneira que aquela mistura de neve, de madeira envernizada e de cera quente prepara as grandes palpitações do coração, embora a captura não seja, como nunca é, da essência do laço.


Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), in "Cidadela"
 

 
William Glackens, Theater Scene, 1903, oil on canvas, 32.4 x 39.4 cm
 
 
William Glackens, Under the Trees, Luxembourg Gardens, 1906,
Munson Williams Proctor Institute, Utica, New York, USA