domingo, 30 de março de 2014

"Alegria e Tranquilidade" - Séneca, in 'Cartas a Lucílio'


Frederick Morgan,  After School, c.1893



Alegria e Tranquilidade


"A alegria pode sofrer interrupções no caso de pessoas ainda insuficientemente avançadas, enquanto, no caso do sábio, o bem estar é um tecido contínuo que nenhuma ocorrência, nenhum acidente pode romper; em todo o tempo, em todo o lugar o sábio goza de tranquilidade! Porquê? Porque o sábio não depende de fatores externos, não está à espera dos favores da fortuna ou dos outros homens. A sua felicidade está dentro dele; fazê-la vir de fora seria expulsá-la da alma, que é onde, de facto, a felicidade nasce! Pode uma vez por outra surgir qualquer ocorrência que lembre ao sábio a sua condição de mortal, mas ocorrências deste tipo são de somenos importância e não o atingem mais do que à flor da pele. O sábio, insisto, pode ser tocado ao de leve por um ou outro contratempo, mas para ele o sumo bem permanece inalterável. Volto a dizer que lhe podem ocorrer contratempos provindos do exterior, tal como um homem de físico robusto não está livre de um furúnculo ou de uma ferida superficial; em profundidade, porém, não há mal que o atinja. A diferença existente, insisto ainda outra vez, entre o homem que atingiu a plenitude da sabedoria e aquele que ainda lá não chegou é a mesma que se verifica entre um homem são e um convalescente de doença grave e prolongada. Para este a diminuição da intensidade da doença já quase significa saúde mas, se não se precaver, o mal rapidamente se agrava e volta à primitiva forma; o sábio, em contrapartida, nem pode retroceder, nem sequer avançar mais na via da sapiência. A saúde do corpo está à mercê do tempo e o médico, se a pode restituir, não a pode garantir perpetuamente, e tanto assim é que com frequência o mesmo doente o volta de novo a chamar; a saúde da alma, essa - obtém-se de uma vez por todas - e totalmente! Dir te ei agora o que significa uma alma sã: é cada um contentar-se consigo mesmo, ter confiança em si próprio, saber que todos os votos feitos pelos homens, todos os benefícios que trocam entre si não têm a mínima importância para a obtenção da felicidade. Uma coisa passível de acréscimo não é uma coisa perfeita; o homem que quer vir a possuir uma permanente alegria, tem de fruir apenas do que efetivamente lhe pertence. Ora todos os bens a que o comum dos mortais aspira são, de uma forma ou outra, transitórios, pois de coisa alguma a fortuna nos permite a posse para sempre. "

Séneca, in 'Cartas a Lucílio'


Lúcio Aneu Séneca, Corduba, 4 a.C.Roma, 65) foi um dos mais célebres advogados, escritores e intelectuais do Império Romano. Conhecido também como Séneca (ou Sêneca), o Moço, o Filósofo, ou ainda, o Jovem, sua obra literária e filosófica, tida como modelo do pensador estoico durante o Renascimento, inspirou o desenvolvimento da tragédia na dramaturgia europeia renascentista.


Frederick Morgan, Skipping, 1896


"Quando vejo uma criança, ela inspira-me dois sentimentos: ternura, pelo que é, e respeito pelo que pode vir a ser." 



Frederick Morgan, See Saw, 1898


"Cada um de nós, enquanto cidadão, tem um papel a desempenhar na criação de um mundo melhor para as nossas crianças." 

Nelson Mandela, Discurso (2002) 


Frederick Morgan, Dinner Time


"Do mesmo modo que no início da primavera todas as folhas têm a mesma cor e quase a mesma forma, nós também, na nossa tenra infância, somos todos semelhantes e, portanto, perfeitamente harmonizados." 

Arthur SchopenhauerAforismos sobre a Sabedoria da Vida


"A Imortalidade" - Texto de Jorge Luís Borges


Pintura de Carlos Calvet


A Imortalidade 


"Ser imortal é coisa sem importância. Exceto o homem, todas as criaturas o são, porque ignoram a morte. O divino, o terrível, o incompreensível, é considerar-se imortal. Já notei que, embora desagrade às religiões, essa convicção é raríssima. Israelitas, cristãos e muçulmanos professam a imortalidade, mas a veneração que dedicam ao primeiro século prova que apenas creem nele, e destinam todos os outros, em número infinito, para o premiar ou para o castigar. 

Mais razoável me parece o círculo descrito por certas religiões do Indostão. Nesse círculo, que não tem princípio nem fim, cada vida é uma consequência da anterior e engendra a seguinte, mas nenhuma determina o conjunto... Doutrinada por um exercício de séculos, a república dos homens imortais tinha conseguido a perfeição da tolerância e quase do desdém. Sabia que num prazo infinito ocorrem a qualquer homem todas as coisas. Pelas suas passadas ou futuras virtudes, qualquer homem é credor de toda a bondade, mas também de toda a traição pelas suas infâmias do passado ou do futuro. Assim como nos jogos de azar as cifras pares e ímpares permitem o equilíbrio, assim também se anulam e se corrigem o engenho e a estupidez. 

(...) Ninguém é alguém, um único homem imortal é todos os outros homens. Como Cornelio Agrippa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demónio e sou o mundo, o que é uma forma cansativa de dizer que não sou. 

(...) A morte (ou a sua alusão) torna os homens delicados e patéticos. Estes comovem-se pela sua condição de fantasmas. Cada ato que executam pode ser o último. Não há um rosto que não esteja por se desfigurar como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do perdido. Entre os Imortais, pelo contrário, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o claro presságio de outros que, no futuro, o repetirão até à vertigem. Não há coisa que não esteja perdida entre infatigáveis espelhos. Nada pode ocorrer uma só vez, nada é primorosamente gratuito. O elegíaco, o grave, o cerimonial, não contam para os Imortais. Homero e eu separamo-nos nas portas de Tânger. Creio que não nos despedimos."

Jorge Luis Borges, in "O Imortal"

  [Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo Buenos Aires, 24 de agosto de 1899Genebra, 14 de junho de 1986) foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino.]


Carlos Calvet

Carlos Calvet, O Lápis Revelador, 1967


 Carlos Frederico Pereira de Sequeira Bramão Calvet da Costa (Lisboa, 1928 — ) é um arquiteto, artista plástico e pintor português.
Licenciado em arquitetura pela Escola de Belas Artes do Porto, a sua atividade abarca também a pintura, fotografia e cinema.
Dedica-se à pintura desde muito cedo (c. 1944), expondo pela primeira vez em 1947, na 2ª Exposição Geral de Artes Plásticas, Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa.
A sua obra inicial revela interesse particular pelo cubismo de Braque (as suas naturezas-mortas atestam este interesse). Aproxima-se do surrealismo embora sem assumir oficialmente e ligação ao movimento; realiza cadavre-exquis com António Areal e Mário-Henrique Leiria, e curtas-metragens, uma das quais com a participação de Mário Cesarini.
A sua afirmação no meio artístico português acontece nos anos de 1960, quando realiza obras que "se situam entre um informalismo de definição orgânica, próximo da abstração gestual", em paralelo com outras mais próximas da abstração hard-edge. Em meados dessa década fixa as premissas essenciais da obra futura, abordando um tipo de figuração conotado com a arte pop "à qual se junta um paisagismo onírico e metafísico" (veja-se, por exemplo, Misterioso, Ousa, 1978).


Carlos Calvet, Misterioso, Ousa, 1978, óleo sobre platex, 84 x 122 cm


Povoadas por formas geométricas, por "estranhas arquiteturas e perspetivas, escalas e enquadramentos insólitos", a que se associam "objetos do quotidiano cuja significação transcende a habitual", as suas obras tanto podem transmitir-nos momentos de ironia como alusões a ameaças apocalípticas e maus presságios... E as frequentes referências esotéricas conferem a muitas pinturas um caráter obscuro, hermético.


Carlos Calvet, A Força do Destino, 1996, Óleo S/Tela, 73x100cm


Carlos Calvet, Rebelião, 2008


Carlos Calvet, A Ira, 2008


quarta-feira, 26 de março de 2014

"A música o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas" - Texto de Fernando Pessoa


 Éguas de manada, 1929, óleo sobre tela, 106 x 126 cm
 
 
 
A música, o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas


« – A música, o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas. Mas por música não deve entender-se só aquela que se toca, se não também aquela que fica eternamente por tocar. Por luar, ainda, não se deve supor que se fala só do que vem da lua e faz as árvores grandes perfis; há outro luar, que o mesmo sol não exclui, e obscurece em pleno dia o que as coisas fingem ser. Só os sonhos são sempre o que são. É o lado de nós em que nascemos e em que somos sempre naturais e nossos. – Mas, se o mundo é ação, como é que o sonho faz parte do mundo? – É que o sonho, minha senhora, é uma ação que se tornou ideia; e que por isso conserva a força do mundo e lhe repudia a matéria, que é o estar no espaço. Não é verdade que somos livres no sonho? – Sim, mas é triste o acordar... – O bom sonhador não acorda. Eu nunca acordei. Deus mesmo duvido que não durma. Já uma vez ele mo disse.»

Fernando Pessoa, in A Hora do Diabo


Simão César Dórdio Gomes, Dois banhistas à beira do Douro, 1928



Simão César Dórdio Gomes, Autorretrato da Natureza Morta, 1924
 
 
Biografia
 
Simão César Dórdio Gomes nasceu em Arraiolos a 26 de Julho de 1890 e morreu no Porto em 1976. Com 12 anos apenas matriculou-se na Academia de Belas Artes de Lisboa, que frequentou entre 1902 e 1910. Aí teve como mestres mais marcantes Luciano Freire, em Desenho, e Veloso Salgado, em Pintura. Embora este último o tenha de algum modo influenciado, as suas primeiras obras revelam sobretudo o fascínio que sobre ele exercia Columbano, com os seus tons sombrios. 
Em 1910 ganhou em concurso uma bolsa do legado Valmor, que lhe permitiria continuar os estudos em Paris, para onde seguiu na companhia do seu amigo e colega o escultor Francisco Franco. Aí frequentou a Academia Julian e as aulas de Jean-Paul Laurens, mas em 1911 a estadia foi interrompida por questões que envolveram os bolseiros (Francisco Franco, Santa-Rita, José Campas e o próprio Dordio) e o ministro de Portugal em Paris, João Chagas. 
Apesar dos contactos que teve em Paris e da companhia de outros artistas, como Santa-Rita ou Eduardo Viana, que tão grande importância teriam no movimento modernista português, neste período pouca alteração sofreu a pintura de Dordio Gomes que, de regresso a Portugal, se radicou de novo em Arraiolos durante 10 anos, seguindo a senda regionalista tradicional, que aprendera na escola. 
Em 1921 foi-lhe renovada a bolsa e partiu novamente para Paris, onde permaneceu ate 1926. Este 2º período viria a ser decisivo na obra de Dordio Gomes. Apesar de frequentar a Escola Nacional de Belas Artes de Paris e o atelier de Ferdinand Cormon, o contacto com as novas correntes e movimentos internacionais, bem como a frequência da tertúlia de artistas portugueses que viviam em Paris na altura, como Diogo de Macedo, Abel Manta, Manuel Jardim, Heitor Cramês, entre outros, permitiram-lhe dar à sua obra um cunho moderno. 
Deixando de lado Columbano e o naturalismo tradicional, sofreu uma nítida influência de Cezanne, na cor e forma, fazendo até uma breve e incipiente incursão pelo cubismo, que nunca assimilou totalmente; datam desta época as suas obras mais conhecidas: as Casas de Malakoff e o Autorretrato da natureza morta. Durante esta estadia teve ainda oportunidade de visitar outros países, como a Bélgica, a Suíça e a Holanda, e ainda de passar oito meses em Itália, país que viria a ter grande importância na obra futura deste artista, pelo interesse que lhe despertou a pintura a fresco, através do conhecimento direto que teve da obra dos grandes mestres italianos. 
De regresso a Portugal, deteve-se seis anos no Alentejo, entrando a sua obra na 3ª fase, de volta à temática regionalista, mas com um tratamento completamente diferente das suas primeiras pinturas, continuando a fazer-se sentir a influência de Cezanne no arrojo da forma e na exuberância da cor, que chega a ser violenta. São deste período inúmeras obras com motivos da paisagem alentejana, onde sobressaem os sobreiros e os cavalos em liberdade e ainda a decoração do salão nobre dos Paços do Concelho de Arraiolos com 11 painéis dedicados aos trabalhos e à vida da terra alentejana, que ele criticou, mais tarde, na sua autobiografia pela “urdidura álacre e dissonante, destituída de verdadeiro senso estético ou decorativo”, mas que revelam a originalidade do pintor no tratamento dos temas regionais. 
Em 1933 concorreu ao lugar de professor de pintura da Escola Superior de Belas Artes do Porto, sendo admitido em 1934 e aí se mantendo ate ao jubileu em 1960. O entusiasmo e abertura que sempre pôs na sua atividade docente foram determinantes para a renovação do ensino nesta Escola, permitindo a formação de uma geração de artistas modernos que se distinguiram nas décadas seguintes.
Com a vinda para o Norte, começou uma nova fase da obra de Dordio Gomes. A paleta viva e quente, própria para as terras alentejanas, com a sua luminosidade agressiva e contrastante, foi substituída por outra mais suave e que transmite a luz difusa da atmosfera do Porto. O rio Douro com a sua paisagem e os seus trabalhos característicos foi o tema preferencial desta época. Mas foi também o período em que se dedicou à pintura a fresco, velho sonho desde a viagem a Itália, executando decorações em vários interiores do Porto: antigo café Rialto em 1944, Baptistério da Igreja de Nª Srª da Conceição em 1947, Livraria Tavares Martins em 1948, Igreja de Nª Srª do Perpétuo Socorro em 1952, Igreja dos Redentoristas em 1953, Escola Superior de Belas Artes do Porto em 1954, Câmara Municipal do Porto em 1957.
Ao longo da sua vida, Dordio Gomes participou em inúmeras exposições, quer dentro dos esquemas tradicionais, por exemplo das exposições anuais da Sociedade Nacional de Belas Artes (entre 1913 e 1919 sem interrupção e depois até 1942 espaçadamente), quer integrado nos modernistas, a cuja primeira geração pertenceu. Foi assim que fez parte dos 5 Independentes (com Diogo de Macedo, Henrique e Francisco Franco e Alfredo Migueis) que expuseram em 1923 na Sociedade Nacional Belas Artes, grupo de pintores e escultores residentes em França na altura, e que, declarando-se “independentes de tudo e de todos” vieram abanar um pouco o meio artístico, constituindo esta exposição a “primeira manifestação modernista dos anos 20” (J. A. França).
Em 1930 foi um dos expositores do I Salão dos Independentes, onde se reuniu grande parte dos artistas modernos de então. Participou também nas Exposições de Arte Moderna organizadas pelo Secretariado de Propaganda Nacional / Secretariado Nacional de Informação em Lisboa e no Porto, sendo-lhe atribuído em 1938 o prémio Columbano e, em 1945, o prémio António Carneiro. Em Lisboa ainda, é de salientar a sua presença nas Exposições de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, onde recebeu o 1º prémio de pintura, em 1957 e fez parte do júri, em 1961. No Porto participou em várias exposições coletivas e nas Exposições Magnas da Escola Superior de Belas Artes do Porto, como professor, entre 1954 e 1960, sendo alvo de uma homenagem nesta última, por ocasião do seu jubileu, em que foi agraciado com a insígnia de Cavaleiro da Ordem de Santiago de Espada. 
Concorreu a inúmeras exposições no estrangeiro, de que salientamos a Exposição Internacional do Rio de Janeiro, em 1922, e a Exposição Internacional de Paris, em 1937, tendo recebido em ambas a medalha de ouro, a XXV Bienal de Veneza, em 1950, as Bienais de S. Paulo, em 1951, 1953 e 1955 e a Exposição Internacional de Bruxelas, em 1958. A sua primeira exposição individual foi apresentada na Sociedade Nacional de Belas Artes em 1923, com as obras do 2º período alentejano. Em 1946, foi a vez do Porto, na Livraria Portugália; em 1956 o Museu de Évora organizou uma Retrospetiva da Pintura de Dordio Gomes; em 1965 outra Retrospetiva, desta vez na companhia de Abel Manta, foi levada a cabo pela Sociedade Nacional de Belas Artes; em 1975 foi novamente o Porto, na Galeria do Jornal de Notícias. Já depois da sua morte, ocorrida em 22 de Julho de 1976, a Escola Superior de Belas Artes do Porto organizou em 1978 uma homenagem a mestre Dordio Gomes. (Daqui)
 
 
 
Simão César Dórdio Gomes. "Fado do ciúme" - Amália Rodrigues


terça-feira, 25 de março de 2014

"Quando não te vejo perco o siso" - Soneto de Luís de Camões


Italo Nunes-Vais (Italian,1860-1932), Dance of the Butterflies


Quando não te vejo perco o siso 


Formosura do Céu a nós descida, 
Que nenhum coração deixas isento, 
Satisfazendo a todo pensamento, 
Sem que sejas de algum bem entendida; 

Qual língua pode haver tão atrevida, 
Que tenha de louvar-te atrevimento, 
Pois a parte melhor do entendimento, 
No menos que em ti há se vê perdida? 

Se em teu valor contemplo a menor parte, 
Vendo que abre na terra um paraíso, 
Logo o engenho me falta, o espírito míngua. 

Mas o que mais me impede inda louvar-te, 
É que quando te vejo perco a língua, 
E quando não te vejo perco o siso. 


in "Sonetos"


Italo Nunes-Vais,  Tête-à-tête
 

"Quem siso quer ter não tenha amores."



domingo, 23 de março de 2014

"Só se pode ser feliz simplificando" - Texto de Florbela Espanca


Obra de José Manuel Merello


Só se pode ser feliz simplificando


Só se pode ser feliz simplificando, simplificando sempre, arrancando, diminuindo, esmagando, reduzindo; e a inteligência cria em volta de nós um mar imenso de ondas, de espumas, de destroços, no meio do qual somos depois o náufrago que se revolta, que se debate em vão, que não quer desaparecer sem estreitar de encontro ao peito qualquer coisa que anda longe: raio de sol em reflexo de estrelas. E todos os astros moram lá no alto.


Florbela Espanca , in "Diário do Último Ano"


  Obra de José Manuel Merello



Joe Cocker - You Can Leave Your Hat On (Official Video) HD



"Amei-te sem saberes" - Poema de Mia Couto


José Manuel Merello, (Madrid, n. 1960), Mulher Azul


Amei-te sem saberes


No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptível crescer
como carne da lua
nos noturnos lábios entreabertos

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio


Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho' 




"A boa disposição é o grande lubrificante da roda da vida. Torna o trabalho mais leve, reduz as dificuldades e mitiga os infortúnios. A boa disposição dá um poder criador que os pessimistas não conseguem ter. Uma disposição alegre, esperançosa e otimista torna a vida mais suave, alivia a sua inevitável monotonia e amortece os solavancos da estrada da vida."


Alfred Montapert (1906-1997), in 'A Suprema Filosofia do Homem'
(Autor do livro "A Filosofia Suprema do Homem: As Leis da Vida" – 1970.)


sexta-feira, 21 de março de 2014

"À fragilidade da vida" - Poema de Francisco de Vasconcelos


Bartolomé Esteban Murillo (1617–1682), A Girl and her Duenna, 1670
 
 

À fragilidade da vida


Esse baixel nas praias derrotado
Foi nas ondas Narciso presumido;
Esse farol nos céus escurecido
Foi do monte libré, gala do prado.

Esse nácar em cinzas desatado
Foi vistoso pavão de Abril florido;
Esse Estio em vesúvios incendido
Foi Zéfiro suave, em doce agrado.

Se a nau, o Sol, a rosa, a Primavera
Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel
Sentem nos auges de um alento vago,

Olha, cego mortal, e considera
Que és rosa, Primavera, Sol, baixel,
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago.


Francisco de Vasconcelos
 

Francisco de Vasconcelos foi um poeta barroco, um dos mais importantes poetas barrocos portugueses, nascido em 1665, no Funchal, e falecido em 1723, na mesma cidade.
Do conjunto da sua obra são de destacar Feudo do Parnaso (1729) e Hecatombe Métrico (1729). Alguns dos seus textos encontram-se incluídos na importante coletânea Fénix Renascida (1716).



Bartolomé Esteban Murillo


Bartolomé Esteban Murillo (Sevilha, 31 de dezembro de 1618 — Cádiz, 3 de abril de 1682) foi um pintor barroco espanhol.



Bartolomé Murillo: Autorretrato, 1668/1670 (detail)



Bartolomé Murillo: Boys Eating Fruit (Grape and Melon Eaters), 1645-46



Bartolomé Murillo: Sagrada Familia del pajarito, 1649-1650,
óleo sobre lienzo, 144 x 188 cm, Madrid, Museo del Prado




Bartolomé Murillo: Madonna in the Clouds, 1656-1660.
Oil on canvas. Rijksmuseum, Amsterdam.



Bartolomé Murillo: The Little Fruit Seller (1670), Alte Pinakothek
 


Bartolomé Murillo: Tres muchachos (Dos golfillos y un negrito), hacia 1670,
Londres, Dulwich Picture Gallery.



Bartolomé Murillo: Niño riendo asomado a la ventana, 1675, 
óleo sobre lienzo, Londres, National Gallery.
 

 

Bartolomé Murillo: Imaculada Conceição, 1678. Museu do Prado, Madrid



Pintura Barroca


A pintura barroca é uma pintura realista, concentrada nos retratos no interior das casas, nas paisagens, nas naturezas mortas e nas cenas populares (barroco holandês). No norte da Europa, Rembrandt e Vermeer ampliaram os limites do realismo.

Por outro lado, a expansão e o fortalecimento do protestantismo fizeram com que os católicos utilizassem a pintura como um instrumento de divulgação da sua doutrina. Na Itália e na Espanha, a Igreja Católica, em clima de militância e Contra-Reforma, pressionava os artistas para que buscassem o realismo mais convincente possível.


Características da pintura barroca

  • Composição simétrica, em diagonal - que se revela num estilo grandioso, monumental, retorcido, substituindo a unidade geométrica e o equilíbrio da arte renascentista.
  • Acentuado contraste de claro-escuro (expressão dos sentimentos) - era um recurso que visava a intensificar a sensação de profundidade.
  • Realista, abrangendo todas as camadas sociais.
  • Escolha de cenas no seu momento de maior intensidade dramática.
  • A luz não aparece por um meio natural, mas sim projetada para guiar o olhar do observador até o acontecimento principal da obra, como acontece na obra "Vocação de São Mateus", de Caravaggio.


 
"Vocação de São Mateus", de Caravaggio.


A Vocação de São Mateus ou Invocação de São Mateus é uma pintura realizada pelo o pintor barroco italiano Caravaggio concluída em 1599-1600 para a Capela Contarelli em San Luigi dei Francesi, onde ainda se conserva em Roma. Mais de uma década antes, o cardeal Matteo Contarelli tinha deixado fundos e as instruções específicas para a decoração de uma capela com base em temas de seu santo padroeiro.

A pintura retrata a história do Evangelho de Mateus (Mateus 9:9 - conhecida como Chamado de Mateus): Partindo Jesus dali, viu sentado na coletoria um homem chamado Mateus, e disse-lhe: "Segue-me". E ele, levantando-se, o seguiu.

As três telas adjacentes de Caravaggio na capela Contarelli representam uma mudança decisiva do maneirismo idealizante de que d'Arpino foi o último grande praticante, e a arte nova, mais naturalista representado por Caravaggio e Annibale Carracci. Foi uma das primeiras pinturas religiosas, expostas ao público, na que se dava uma representação realista.


terça-feira, 18 de março de 2014

"Hora absurda" - Poema de Fernando Pessoa


Juan Gris (Spanish painter, 1887–1927), El Libro Rojo, 1925
 


Hora absurda


O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida pela maré cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... a Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
De Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele lugar-Outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lado aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Porque me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda
Há rastos de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar.. Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Porque não há-de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Porque não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque —
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há-de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã — como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave. como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema — Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

4-7-1913

Fernando Pessoa
,
Poesias. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 21.
[1ª publ. in Exílio, nº 1. Lisboa: Abr. 1916.]

 
Este estupendo poema de Fernando Pessoa: "Hora absurda" foi escrito em 1913, quando o poeta tinha apenas 25 anos. São versos muito longos, distribuídos em 25 quadras rimadas no padrão abab. Aí, Pessoa esbanja em ritmos, aliterações, metáforas delirantes. Até pelo ambiente marítimo, "Hora absurda" lembra um pouco "O barco bêbado", de Arthur Rimbaud. Os versos iniciais são estonteantes: "O teu sorriso é uma nau com todas as velas pandas... / Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso..." Usadas sem parcimónia, as reticências, parecem retardar mais ainda o ritmo sonolento e melancólico dos versos. E o que dizer destas duas linhas? "A doida partiu todos os candelabros glabros, / Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas..." in "Poesias".


Juan Gris, Retrato de Pablo Picasso, (1912)

Juan Gris, pseudónimo de Juan José Victoriano González (Madrid, 23 de março de 1887 - Boulogne-Sur-Seine, 11 de maio de 1927), foi um dos mais famosos e versáteis pintores e escultores cubistas espanhóis. Apesar de ter falecido jovem, Juan Gris representa o expoente máximo do cubismo sintético.

O cubismo sintético


O cubismo sintético
(1913 - 1914) é a última fase do cubismo.Também conhecido como cubismo de colagens.
Qualquer aspeto decorativo e/ou acessório ao objeto representado era extraído. A representação de objetos do quotidiano também ajuda à compreensão das obras, pois do hábito, reconhecem-se mais facilmente através de um ou outro pormenor, como por exemplo um cachimbo que remete a representação de um fumante. Os planos são mais redutores e esquemáticos em relação ao cubismo analítico, isto é, sobrepoem-se e a sua relativa transparência dá um novo aspeto à obra. A cor volta aqui a tomar importância depois de ter sido desvalorizada na fase analítica.
O cubismo sintético buscou recuperar um pouco a imagem real do objeto tornando as cores mais fortes e as formas mais decorativas.
Desta fase decorrem dois movimentos que adotam esta nova interpretação e utilização da cor e quebram o imobilismo que até então era patente nas obras cubistas já apontando para o futurismo, podendo de certa forma considerar estas obras futuro-cubistas: o Orfismo e a Secção de Ouro.
É interessante notar que o texto considerado uma espécie de manifesto do Cubismo seja, na realidade, um texto chamado de "A anti-tradição futurista", escrito pelo poeta Guillaume Apollinaire, e que houve na Rússia um grupo de poetas chamados de cubo-futuristas, do qual era membro mais eminente Vladimir Maiakóvski.
A própria poesia, em seus aspetos mas inovadores, de Apollinaire, um dos mais influentes nomes das vanguardas literárias, nasce desta estética, assim como o texto referido iria definir o caráter estético da poesia futurista de aí em diante.