domingo, 24 de agosto de 2014

"Leia, ouça, veja, mas sobretudo, pense" - Texto de Agostinho da Silva


The Wandering Forest by Christian Schloe


Leia, ouça, veja, mas sobretudo, pense


Se grandes invenções ou descobertas, como o fogo, a roda ou a alavanca, se fizeram antes que o homem fosse, historicamente, capaz de escrever, também se põe como fora de dúvida que mais rapidamente se avançou quando foi possível fixar inteligência em escrita, quando o saber se pôde transmitir com maior fidelidade do que oralmente, quando biblioteca, em qualquer forma, foi testamento do passado e base de arranque para o futuro. A livro se veio juntar arquivo, para o que mais ligeiro se afigurava; e fora de bibliotecas ou arquivos ficaram os milhões de páginas de discorrer ou emoção humana que mais ligeiras pareceram ainda, ou menos duradouras. Escrevendo ou lendo nos unimos para além do tempo e do espaço, e os limitados braços se põem a abraçar o mundo; a riqueza de outros nos enriquece a nós. Leia
 

A Light in the Dark by Christian Schloe


Milhões de homens, porém, no mundo atual estão incapacitados de escrever e de ler, muito menos porque faltam métodos e meios do que incitamento que os levante acima do seu tão difícil quotidiano e vontade de quem mais pode de que seus reais irmãos mais dependam de si próprios do que de exteriores e quase sempre enganadoras salvações. Mais se comunica falando do que de qualquer outra forma; o que nos dizem muitas vezes nos parece de nenhuma importância, mas talvez tenha havido uma falha na atitude de escutar do que no conteúdo do que se disse; porventura a palavra-chave estava aí, mas estávamos distraídos, ou ansiosos por nós próprios falarmos; e no vento fugiu, a outros ouvidos ou a nenhuns. Ouça
 
 
Sonata by Christian Schloe


No tempo em que a antropologia ainda julgava que o homem descendia do macaco notou-se, para os distinguir, que um, mesmo no estádio mais primitivo, desenhava; o outro, mesmo que antropoide superior, nem olhava o desenho. Imagem nos veio acompanhando pela História fora, desde as pinturas ou gravuras rupestres, cujo verdadeiro significado ainda está por encontrar, até cinema ou televisão, sobre cujo significado igualmente muitas vezes nos podemos interrogar e que se tem de arrancar o mais depressa possível ao domínio do lucro, da publicidade ou das propagandas ideológicas para que possam cumprir, como nas formas mais antigas, a sua missão de iluminar, inspirar e consagrar o mundo. Imagem o cerca. Veja
 
 
Dream On by Christian Schloe 
 
 
Mas o que vê e ouve ou lê nada mais lhe traz senão matéria-prima de pensamento, já livre de muita impureza de minério bruto, porquanto antes do seu outros pensamentos o pensaram; mas, por o pensarem, alguma outra impureza lhe terão juntado. Nunca se precipite, pois, a aderir; não se deixe levar por nenhum sentimento, exceto o do amor de entender, de ver o mais possível claro dentro e fora de si; critique tudo o que receba e não deixe que nada se deposite no seu espírito senão pela peneira da crítica, pelo critério da coerência, pela concordância dos factos; acredite fundamentalmente na dúvida construtiva e daí parta para certezas que nunca deixe de ver como provisórias, exceto uma, a de que é capaz de compreender tudo o que for compreensível; ao resto porá de lado até que o seja, até que possa pôr nos pratos da sua balancinha de razão. A tudo pese. Pense.

 
Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'
 

Wind, Clouds and Tea by Christian Schloe 
 
 
 
 
 
Gato


Chama-se Luís o gato do terceiro
e é companheiro de um mestre filósofo.
Em madrugadas altas há por vezes sobressalto,
quando o bichano acorda mal disposto.
O professor, sábio também
em jogos de paciência, acalma
o animal e já o mima. Trata-se,
vendo bem, de outra ciência,
tão difícil de conseguir como
um estudo de Pessoa. Chama-se Agostinho
da Silva, o do terceiro, e tem um gato
com quem, à vontade, discreteia.
Luís, discípulo, ronrona baixinho.
Tudo vai bem, assim, no sete desta rua.


Eduardo Guerra Carneiro,
 Contra a Corrente, 1988
(Daqui)


Agostinho da Silva
 (Vida e Obra)

Agostinho da Silva 
 

Professor e investigador português, George Agostinho Batista da Silva nasceu a 13 de fevereiro de 1906, no Porto, e morreu a 3 de abril de 1994, em Lisboa, tendo vivido grande parte da sua juventude em Barca de Alva, no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, junto ao rio Douro.

Após terminar, aos 22 anos, a licenciatura e o doutoramento em Filologia Clássica da Faculdade de Letras do Porto, com a nota máxima de 20 valores, uma bolsa de estudo conduziu-o até à Sorbonne, em França.

Depois de regressar a Portugal, o filósofo portuense fundou, em 1931, em Lisboa, o Centro de Estudos de Filologia, encargo que lhe foi atribuído pela Junta Nacional de Educação, e que seria posteriormente transformado no Centro de Linguística da Universidade Clássica de Lisboa.

Quatro anos depois, em 1935, Agostinho da Silva foi demitido da sua condição de professor do ensino oficial por se ter recusado a cumprir a chamada "Lei Cabral", isto é, a assinar uma declaração em que garantisse não pertencer a qualquer organização secreta. Apesar de não pertencer a nenhuma organização desse género, Agostinho da Silva recusou-se a assinar tal documento por ir contra as suas convicções pessoais. 
 
De 1935 até 1944 residiu em Madrid e em Lisboa, onde viveu à custa do ensino particular e de explicações, tendo-se relacionado, por esta altura, com o grupo Seara Nova e com o escritor António Sérgio.

Em 1944, foi excomungado pela Igreja, facto que o levou a abandonar Portugal para se fixar no Brasil, país onde desempenhou funções e ocupou cargos importantes no domínio da investigação histórica, mantendo sempre ligações de docente com universidades brasileiras e com os Colégios Libres do Uruguai e Argentina.

Como representante do Brasil, cuja cidadania adquiriu em 1958, viajou pelo mundo inteiro (Japão, Macau, Timor Leste), onde fundou, por exemplo, o Instituto de Língua e Cultura Portuguesa, em Tóquio, e os Centros de Estudos Ruy Cinatti e de Estudos Brasileiros, ambos em Díli.

Em 1969, Agostinho da Silva, portuense com naturalidade brasileira há cerca de 10 anos, decidiu voltar a Portugal, sendo reintegrado no Ensino Superior, na qualidade de aposentado como Professor Titular das Universidades Federais do Brasil. 
 
Com direito a uma pensão de aposentação, decidiu, em 1976, criar o Fundo D. Dinis para atribuição do prémio com o mesmo nome, prémio D. Dinis.

Para além de professor, filósofo e investigador, George Agostinho Batista da Silva notabilizou-se também como escritor, em cujo currículo constam mais de 60 obras, muitas delas publicadas durante a sua permanência no Brasil, como, por exemplo, Sentido Histórico das Civilizações Clássicas (1929), A Religião Grega (1930), Miguel Eyquem, senhor de Montaigne (1933), A Vida de Francisco de Assis (1938), A Vida de Moisés (1938), Sete Cartas a um Jovem Filósofo (1945), Herta. Teresinha. Joan (1953), Reflexão à margem da literatura portuguesa (1957), Uns Poemas de Agostinho (1989), Do Agostinho em torno de Pessoa (1990) e Ir à Índia sem Abandonar Portugal (1994).

Tido como um dos grandes filósofos portugueses, Agostinho da Silva tornar-se-ia, nos últimos anos da sua vida, ainda mais conhecido graças à sua participação no programa "Conversas Vadias" emitido pela RTP1.

Agostinho da Silva. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-24].


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