terça-feira, 12 de agosto de 2014

"Leitura" - Poema de Edmundo Bettencourt


José Navarro Llorens (pintor espanhol, 1867-1923), Ameaça de naufrágio, 1894,
 óleo sobre tela (Carmen Museu Thyssen, Málaga)
 

Leitura

Havia luz em uns instantes surgidos
na minha vida,
que a mesma vida apagava.
E a pobre realidade
era uma cinza...
...já nada me recordava 
se, de entre ela, uma faúlha
não me queimasse os sentidos.

O fogo das queimaduras
é dor que nunca me passa!
E é esta que me ressurge
um pouco dessa luz-alma
de tantos momentos idos...

A inquieta luz, sempre de agora,
que ao mundo nada desvenda,
a mim diz certa verdade,
a chã naturalidade
nas coisas vãs da legenda.

Talvez ninguém me acredite,
e se ria,
quando grave eu me recite.

Mas recitar-me, cantar,
mesmo cansada a memória,
teria de acontecer:
é comigo,
bem viva enquanto eu viver,
a minha inútil história.”


Edmundo de Bettencourt




Poemas de Edmundo de Bettencourt

A edição rapidamente esgotada, em 1963, dos Poemas de Edmundo de Bettencourt (obra completa do autor, 1930-1962), causou polémica junto da crítica, não tanto - como deveria ter sido - pela revelação de um percurso poético original e independente, mantido em silêncio durante trinta e três anos, mas sobretudo pelas palavras corajosas com que Herberto Helder apresentava o autor. Nesse conhecido e rebatido prefácio, o jovem autor de O Amor em Visita põe em relevo o carácter subversivo e precocemente surrealista da escrita de Edmundo de Bettencourt relativamente a dois movimentos, o presencista e o neorrealista, ambos, e por diferentes modos, responsáveis pelo adiamento da modernidade e dos princípio revolucionários já contidos em Orpheu
Para Herberto Helder a libertação da herança de Presença, neste autor que integrou a direção da revista coimbrã, ainda visível em O Momento e a Legenda, manifesta-se na recusa de um certo "narrativismo presencista", em benefício de um nexo "mais de sugestão do que de narração" (cf. HELDER, Herberto - "Relance sobre a Poesia de Edmundo de Bettencourt", prefácio a Poemas de Edmundo de Bettencourt, Lisboa, Portugália, 1963, p. XX), onde "o encontro coma imagem" permite a apreensão de novas dimensões da realidade, pela capacidade de "fusão de antinomias", através de um processo pelo qual "o tema desaparece, ou fragmenta-se, ou somente se insinua, ambíguo ou pré-textual, apenas." (id. ib., p. XXI). Com pontos de contacto com o imagismo anglo-americano, o surrealismo francês ou a "lição rimbaldiana", Herberto Helder assinala, assim, nas composições de Bettencourt, o "insólito das imagens e metáforas, o clima sufocante, a obliquidade da emoção, a medida onírica, o delírio gelado e noturno" e a conquista de uma modernidade firmada em termos de criação que dota o poema de "existência própria, independentee suficiente como um corpo". Numa fase posterior, ainda segundo o mesmo crítico, Bettencourt terá evoluído para uma fase caracterizada por uma maior vigilância e objetividade, mas onde a "economia irónica" não despreza, contudo, "o exercício libertário da imaginação".

Poemas de Edmundo de Bettencourt. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-08-11].


Galeria de José Navarro Llorens
José Navarro Llorens, In the Garden


José Navarro Llorens, The bathing boy


José Navarro Llorens, Children on the Beach, 1912-1915


José Navarro Llorens, Orienalist landscape


José Navarro Llorens,  A rainy day, 1899


José Navarro Llorens, A Bustling Street, 1910


José Navarro Llorens, Self-Portrait


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