domingo, 30 de novembro de 2014

"Os Palhaços" - Poema de Guilherme de Azevedo


William Merritt Chase,"Keying Up" – The Court Jester,



Os Palhaços


Heróis da gargalhada, ó nobres saltimbancos,
eu gosto de vocês,
porque amo as expansões dos grandes risos francos
e os gestos de entremez,

e prezo, sobretudo, as grandes ironias
das farsas joviais.
que em visagens cruéis, imperturbáveis, frias.
à turba arremessais!

Alegres histriões dos circos e das praças,
ah, sim, gosto de vos ver
nas grandes contorções, a rir, a dizer graças
de o povo enlouquecer,

ungidos pela luta heróica, descambada,
de giz e de carmim,
nas mímicas sem par, heróis da bofetada,
titãs do trampolim!

Correi, subi, voai num turbilhão fantástico
por entre as saudações
da turba que festeja o semideus elástico
nas grandes ascensões,

e no curso veloz, vertiginoso, aéreo,
fazei por disparar
na face trivial do mundo egoísta e sério
a gargalhada alvar!

Depois, mais perto ainda, a voltear no espaço,
pregai-lhe, se podeis,
um pontapé furtivo, ó lívidos palhaços,
luzentes como reis!

Eu rio sempre, ao ver aquela majestade,
os trágicos desdéns
com que nos divertis, cobertos de alvaiade,
a troco duns vinténs!

Mas rio ainda mais dos histriões burgueses,
cobertos de ouropéis,
que tomam neste mundo, em longos entremezes,
a sério os seus papéis.

São eles, almas vãs, consciências rebocadas,
que enfim merecem mais
o comentário atroz das rijas gargalhadas
que às vezes disparais!

Portanto, é rir, é rir, hirsutos, grandes, lestos,
nas cómicas funções,
até fazer morrer, em desmanchados gestos,
de riso as multidões!

E eu, que amo as expansões dos grandes risos francos
e os gestos de entremez,
deixai-me dizer isto, ó nobres saltimbancos:
eu gosto de vocês!


Guilherme de Azevedo, in 'A Alma Nova'


William Merritt Chase, Autorretrato, 1915-1916, óleo sobre tela, 
"A arte não é um espelho que mostra a realidade 'como ela é'. A arte mostra-nos um mundo refletido por uma mente incomum que impõe um estilo no que retrata."

(Walter Kaufmann)


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

"Nós Estamos num Estado Comparável à Grécia" - Texto de Eça de Queirós, in 'Farpas (1872)'


(“A casa de Tormes”  foi o lugar de inspiração de Eça de Queirós para o livroA cidade e as serras.)



Nós Estamos num Estado Comparável à Grécia


"Nós estamos num estado comparável, correlativo à Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade política, mesmo abaixamento dos caracteres, mesma ladroagem pública, mesma agiotagem, mesma decadência de espírito, mesma administração grotesca de desleixo e de confusão. Nos livros estrangeiros, nas revistas, quando se quer falar de um país católico e que pela sua decadência progressiva poderá vir a ser riscado do mapa – citam-se ao par a Grécia e Portugal. Somente nós não temos como a Grécia uma história gloriosa, a honra de ter criado uma religião, uma literatura de modelo universal e o museu humano da beleza da arte."
 
Eça de Queirós, in 'Farpas (1872)'


A Casa de Tormes  em Stª Cruz do Douro onde  Eça de Queirós escreveu o livro a A cidade e as serras.” (Daqui)


'Vales lindíssimos, carvalheiras e soutos de castanheiros seculares, quedas de água, pomares, flores, tudo há naquele bendito monte. A quinta está situada num alto, num sítio soberbo - que abrange léguas de horizonte, e sempre interessante. (..) Logo adiante da casa, o monte desce até ao Douro, logo por trás da casa, o monte sobe até aos cimos onde há uma ermida.'

Eça de Queirós, Correspondência

Assim descreveu o mais famoso romancista português do séc. XIX a sua Quinta de Vila Nova (Tormes em "A Cidade e as Serras") hoje sede da Fundação Eça de Queirós. (Daqui) 




“Os vales fofos de verdura, os bosques quase sacros, os pomares cheirosos em flor, a frescura das águas cantantes, as ermidinhas branqueando nos altos, as rochas musgosas, o ar de uma doçura de paraíso, toda a majestade e toda a lindeza. Deixando resvalar o olhar observe os vales poderosamente cavados (...) os bandos de arvoredos, tão copados e redondos de um verde tão moço e sinta, por todo o lado, o esvoaçar leve dos pássaros.”

sábado, 22 de novembro de 2014

"Brutos penhascos, rústicas montanhas" - Poema de Abade de Jazente


Brooklyn Museum, New York



Brutos penhascos, rústicas montanhas


Brutos penhascos, rústicas montanhas,
Medonhos bosques, hórrida maleza,
Que me vedes, coberto de tristeza,
Saudoso habitador destas campanhas.

Para me suavizar mágoas tamanhas,
Alteremos um pouco a Natureza;
Civilize meu mal vossa dureza,
Barbarizai-me vós estas entranhas.

Meu pranto vos comova algum afeto
De branda compaixão; pois da impiedade
Encontra sempre em vós um duro objeto.

Pode ser, que com esta variedade,
Seja mais agradável vosso aspeto,
Sinta eu menos cruel minha saudade.


In Poesias de Paulino Cabral de Vasconcelos, Abbade de Jazente (Vol. I), 1786



 Birmingham Museum of Ar.


"A felicidade é qualquer coisa que depende mais de nós mesmos do que das contingências e das eventualidades da vida."



domingo, 16 de novembro de 2014

"Sempre amei por palavras muito mais do que devia" - Poema de Alice Vieira


Foto de Rui Videira - Vila Nova de Gaia, Porto, Portugal



Sempre amei por palavras muito mais do que devia


sempre amei por palavras muito mais
do que devia

são um perigo
as palavras

quando as soltamos já não há
regresso possível
ninguém pode não dizer o que já disse
apenas esquecer e o esquecimento acredita
é a mais lenta das feridas mortais
espalha-se insidiosamente pelo nosso corpo
e vai cortando a pele como se um barco
nos atravessasse de madrugada

e de repente acordamos um dia
desprevenidos e completamente
indefesos

um perigo
as palavras

mesmo agora
aparentemente tão tranquilas
neste claro momento em que as deixo em desalinho
sacudindo o pó dos velhos dias
sobre a cama em que te espero
 
 in O QUE DOI AS AVES
(Caminho, 2009)


Foto de Rui Videira - Porto & Vila Nova de GaiaPortugal
 
 
"A arte é o espelho da pátria. O país que não preserva os seus valores culturais jamais verá a imagem de sua própria alma."



Chopin Nocturne E Flat Major Op.9 No.2


sábado, 15 de novembro de 2014

"O mistério da palavra" - Poema de Adolfo Simões Müller


 
 
 
O mistério da palavra


Porque será que uma palavra aflora
correspondendo logo ao nosso apelo,
com a medida justa, o justo emprego,
enquanto noutras vezes se demora
(rimmel, bâton, um jeito no cabelo…)
e chega em voo cego de morcego?

Porque será que uma palavra quase
vai buscar outra dentre a multidão,
e esta segunda, uma terceira e quarta,
e assim nasce de súbito, uma frase,
um belo verso, a quadra ou a canção,
a sentença de morte, a tua carta?

Porque será que uma palavra, impávida,
resiste aos séculos e fica jovem,
ou morre (cancro, enfarte, dor reumática),
enquanto outra, novinha, surge grávida,
e aos nove meses os filhinhos chovem
que é um louvar a Deus e à gramática?

Porque será que a rima atrai a rima,
e a rima nova é como o vinho novo
que salta e espuma e baila na garganta?
E outra rima! Outras rimas! A vindima
das palavras não pára… E, no renovo,
o poema é estrela que alumia e canta!

Porquê este mistério, Poesia?
És tal e qual a eletricidade:
existe mas nem sempre a gente a vê.
Porque foges um ano e mais um dia
e voltas, alta noite, claridade?
Porquê? Porque será? Porquê? Porquê? 
 
Busto de Adolfo Simões Müller, 1991, Bronze
por Anjos Teixeira (filho)


Adolfo Simões Müller (Lisboa, 18 de Agosto de 1909 - 17 de Abril de 1989) foi um escritor e jornalista português.
Frequentou a Faculdade de Medicina mas abandonou o curso. Foi secretário de redação do jornal Novidades, fundador e diretor até 1941 do jornal infantil O Papagaio e diretor do Diabrete, e do semanário juvenil o Foguetão  (1961) e da revista de banda desenhada Cavaleiro Andante. Também colaborou na Mocidade Portuguesa Feminina: boletim mensal (1939-1947).
Foi ainda diretor do gabinete de estudos de programas da Emissora Nacional e produtor de programas para a rádio. Inclusivamente foi o autor do primeiro folhetim de rádio As Pupilas do Senhor Reitor.
Estreou-se na literatura com o volume de poemas Asas de Ícaro (1926). No entanto, foi a literatura infantil que o celebrizou, tendo escrito obras como Caixinha de Brinquedos (1937, Prémio Nacional de Literatura Infantil) e O Feiticeiro da Cabana Azul (1942, galardoado com o mesmo prémio). 
Para o público juvenil escreveu, entre outros, os livros constantes da coleção Gente Grande para Gente Pequena, onde em cada livro romanceou a vida de personalidades como Madame Curie (A Pedra Mágica e a Princesinha Doente), Robert Scott (O Capitão da Morte), Camões (As Aventuras do Trinca-Fortes), Thomas Edison (O Homem das Mil Invenções), Gago Coutinho (O Grande Almirante das Estrelas do Sul), Wagner (O Piloto do Navio Fantasma), Gutenberg (O Exército Imortal), Florence Nightingale (A Lâmpada que Não se Apaga), Infante Dom Henrique (O Príncipe do Mar), Cervantes (O Fidalgo Engenhoso), Serpa Pinto (Através do Continente Misterioso), Marco Polo (O Mercador da Aventura), Fernão de Magalhães (A Primeira Volta ao Mundo - Prémio Nacional de Literatura em 1971), Baden-Powell (A Pista do Tesouro) ou Hans Christian Andersen (O Contador de Histórias).
Entre outras obras, adaptou para a juventude Os Lusíadas (1980), A Peregrinação (1980), A Morgadinha dos Canaviais (1982) e As Pupilas do Senhor Reitor (1984)
Em 1982, recebeu o Grande Prémio da Literatura Infantil da Fundação Calouste Gulbenkian pelo conjunto da sua obra, onde também se incluem livros como Meu Portugal, Meu Gigante (1931), Jesus Pequenino (1934), A Última Varinha de Condão (1941), Historiazinha de Portugal (1944), A Última História de Xerazade (1944), Dona Maria de Trazer por Casa (1947), O Livro das Fábulas (1950) e A Viagem Maravilhosa de Comboio (1956), num total com mais de 70 obras.
Outras das suas obras são Tejo Rio Universal, Sola Sapato Rei Rainha, Douro: Rio das Mil Aventuras, Histórias do Arco da Velha, Moço Bengala e Cão ou a adaptação juvenil das Mil e Uma Noites.(Daqui)

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

"Havemos de ser outros amanhã" - Poema de Alice Vieira


Torre de Belém em Lisboa, iniciada em 1514 no reinado de Manuel I de Portugal (1495-1521), 
tendo como arquitecto Francisco de Arruda.


Havemos de ser outros amanhã


havemos de ser outros amanhã
ou daqui a momentos ou já agora
e dificilmente reconheceremos o espaço da alegria
em que noutras horas chegámos a nascer

e então meu amor
(não sei se reparaste mas é a primeira vez
que escrevo meu amor)
teremos nos olhos a cor sem cor
das roupas muito usadas
e guardaremos os despojos das noites
em que tudo sem querer nos magoava
nas gavetas daqueles velhos armários
com cheiro a cânfora e a tempo inútil
onde há muitos anos escondemos
um postal da Torre de Belém em tons de azul
e um bilhete para a matiné das seis no São Jorge
onde um homem (que muitos anos depois
segundo me contaram se suicidou)
tocava orgão nos intervalos em que
nos beijávamos às escondidas

e dessas gavetas rebenta a poeira do tempo
que matámos a frio dentro de nós
com os filhos que perdemos em camas de ninguém
e as pedras que nasceram no lugar das cinzas
e havemos de perguntar (mesmo sabendo que
já não há ninguém para nos responder)
por que foi que nos largaram no mundo
vestidos de tão frágeis certezas
por que nos abandonaram assim
no rebentar de todas as tempestades
sabendo que o futuro que nos prometiam batia
ao ritmo das horas que já tinham sido
destinadas a outros e nunca
voltariam a tempo de nos salvar

mas enquanto vai escorrendo de nós o pó
desses lugares onde ainda há vozes
que não desistiram de perguntar por nós
vamos bebendo a água inicial das nossas línguas
um ao outro devolvendo o pouco 
que conseguimos salvar de todos os dilúvios 


Alice Vieira


Alice Vieira

Alice Vieira (Lisboa, 20 de março de 1943) é uma escritora e jornalista profissional portuguesa.
 
 
Dedicou-se desde cedo ao jornalismo, tendo trabalhado nos jornais Diário de Lisboa (onde, juntamente com o seu marido, o jornalista e escritor Mário Castrim, dirigiu o suplemento "Juvenil"), Diário Popular e Diário de Notícias e colaborou durante muitos anos com a revista "Activa" e o "Jornal de Notícias". Atualmente colabora na revista Audácia, dos Missionários Combonianos.
 
Trabalhou em vários programas de televisão para crianças e é considerada uma das mais importantes autoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
 
As suas obras foram traduzidas para várias línguas, como o alemão, o búlgaro, o basco, o castelhano, o galego, o catalão, o francês, o húngaro, o holandês, o russo, o italiano, o chinês, o servo-croata. (Daqui)


Torre de Belém (Arquitetura manuelina) vista do Rio Tejo.


A Torre de Belém, um dos pontos turísticos mais famosos e visitados de Portugal. Sua construção foi iniciada em 1515 e terminou em 1519.
Classificada como Património Mundial pela UNESCO desde 1983, foi eleita como uma das Sete maravilhas de Portugal em 7 de julho de 2007.


Arquitetura manuelina


Estilo manuelino, por vezes também chamado de gótico português tardio ou flamejante, é um estilo decorativo, escultórico e de arte móvel que se desenvolveu no reinado de D. Manuel I e prosseguiu após a sua morte, ainda que já existisse desde o reinado de D. João II. É uma variação portuguesa do Gótico final, bem como da arte luso-mourisca ou arte mudéjar, marcada por uma sistematização de motivos iconográficos próprios, de grande porte, simbolizando o poder régio. Incorporou, mais tarde, ornamentações do Renascimento italiano. O termo "Manuelino" foi criado por Francisco Adolfo Varnhagen na sua Notícia Histórica e Descritiva do Mosteiro de Belém, de 1842. O Estilo desenvolveu-se numa época propícia da economia portuguesa e deixou marcas em todo o território nacional.

A característica dominante do Manuelino é a exuberância de formas e uma forte interpretação naturalista-simbólica de temas originais, eruditos ou tradicionais. A janela, tanto em edifícios religiosos como seculares, é um dos elementos arquitetónicos onde melhor se pode observar. Estes motivos aparecem em construções, pelourinhos, túmulos ou mesmo peças artísticas, como em ourivesaria, de que a Custódia de Belém é um exemplo.

Os motivos mais frequentes da arquitetura manuelina são a esfera armilar, conferida como divisa por D. João II ao seu primo e cunhado, futuro rei D. Manuel I, mais tarde, interpretada como sinal de um desígnio divino para o reinado de D. Manuel, a Cruz da Ordem de Cristo e elementos naturalistas: Corais, Algas, Alcachofras, Pinhas, animais vários e elementos fantásticos: Ouroboros, Sereias, gárgulas.

No seu conjunto, a arquitetura manuelina  pouco muda relativamente à estrutura formal do gótico alemão e plateresco. O alçado interior das igrejas mantém-se através da orientação este-oeste, da planta, dos sistemas de suporte e cobertura, do cálculo de proporções. As naves da mesma altura, influência das igrejas-salão alemãs, de cinco tramos, ausência de transepto e cabeceiras retangulares são as principais características diferenciais. Apesar de ser essencialmente ornamental, o Manuelino caracteriza-se também pela aplicação de determinadas fórmulas técnicas da altura, como as abóbadas com nervuras polinervadas a partir de mísulas.

Na componente civil destacam-se os palácios, como o Paço de D. Manuel, em Évora, e solares rurais, como o Solar de Sempre Noiva, em Arraiolos, todos de planta retangular.
Na tipologia militar é referência maior o baluarte do Restelo, a Torre de Belém. Um dos primeiros baluartes de artilharia do país, a quebrar a tradição das torres de menagem, a sua planta retangular sobrepõe-se a uma base poliédrica, que penetram Tejo adentro. A retangularidade da planta opõe-se à curvilínea da decoração esculpida. (Daqui)
 
 

domingo, 9 de novembro de 2014

"Sem causa a Infância ri" - Poema de Abade de Jazente


Amarante (Portugal) -  Rio Tâmega, Ponte e Mosteiro



Sem causa a Infância ri


Sem causa a Infância ri, sem causa chora: 
Incauta se despenha a mocidade; 
Sacode o jugo, e nela a liberdade, 
A caça, o jogo, o amor, tudo a namora. 

Das honras o varão se condecora; 
Tudo é nele ilusão, tudo vaidade: 
Junta Tesouros a avarenta idade; 
Diz mal do nosso, e ao tempo andado adora. 

Tormento é toda a vida, é toda enganos: 
Quando uns afetos vence a novos corre, 
E tarde reconhece os próprios danos: 

Porque enfim se a prudência nos socorre, 
Ditada na lição dos longos anos, 
Quando se sabe, então é que se morre. 

in 'Antologia Poética'


Frontispício da primeira edição em 1786 de Poesias
de Paulino António Cabral, Abade de Jazente


Escritor português, Paulino António Cabral de Vasconcelos, melhor conhecido por Abade de Jazente, nasceu em Amarante a 6 de Maio de 1719 e faleceu na mesma cidade a 20 de novembro de 1789. 
Tornou-se pároco de Jazente, a partir de 1753, cargo ao qual resignou, por doença, em 1783. Estudou em Coimbra e foi uma das presenças da Arcádia Portuense que reuniria por finais de 1760. A sua vida repartiu-se entre esta, as festas conventuais e a solidão rústica.
Como poeta, sobretudo sonetista, cantou os temas horacianos do amor epicurista e da dourada mediania rural. A obra legada fornece-nos preciosos depoimentos históricos e também por ela sabemos dos seus prazeres (a caça, a pesca, o jogo, a boa mesa); das suas fraquezas, do seu triste envelhecer, dos seus amores, pois revela-nos episódios concretos de um relacionamento com Nise (anagrama de Inês da Cunha). Os sonetos respeitantes a esta constituem o mais pungente drama de amor do século XVIII português. Além de poesia de circunstância, deixou textos de conteúdo moral e poesia de matiz romântica. (Daqui)



"A infância, no poeta, jamais se extingue. Talvez por isso eles sejam tão vulneráveis, os poetas."



Amarante (Portugal) - Centro histórico


quinta-feira, 6 de novembro de 2014

"A Importância da Arte" - Texto de Agustina Bessa Luís


In Bed, by Ron Mueck, 2005


A Importância da Arte


A arte é, provavelmente, uma experiência inútil; como a «paixão inútil» em que cristaliza o homem. Mas inútil apenas como tragédia de que a humanidade beneficie; porque a arte é a menos trágica das ocupações, porque isso não envolve uma moral objetiva. Mas se todos os artistas da terra parassem durante umas horas, deixassem de produzir uma ideia, um quadro, uma nota de música, fazia-se um deserto extraordinário. Acreditem que os teares paravam, também, e as fábricas; as gares ficavam estranhamente vazias, as mulheres emudeciam. A arte é, no entanto, uma coisa explosiva. Houve, e há decerto em qualquer lugar da terra, pessoas que se dedicam à experiência inútil que é a arte, pessoas como Virgílio, por exemplo, e que sabem que o seu silêncio pode ser mortal. Se os poetas se calassem subitamente e só ficasse no ar o ruído dos motores, porque até o vento se calava no fundo dos vales, penso que até as guerras se iam extinguindo, sem derrota e sem vitória, com a mansidão das coisas estéreis. O laço da ficção, que gera a expectativa, é mais forte do que todas as realidades acumuláveis. Se ele se quebra, o equilíbrio entre os seres sofre grave prejuízo.


Agustina Bessa-Luís, in 'Dicionário Imperfeito'



'Mask II' by Ron Mueck (2001-2), believed to be a self-portrait


Ron Mueck (Melbourne, 1958) é um escultor australiano hiper-realista que trabalha na Grã-Bretanha.

Este escultor utiliza efeitos especiais cinematográficos para criar obras de arte. São incrivelmente realistas e se não fosse o tamanho de suas esculturas certamente seriam fáceis de serem confundidas com pessoas.

No início de carreira, foi fabricante de marionetas e modelos para a televisão e filmes infantis, nomeadamente no filme Labyrinth.

Mueck criou a sua própria companhia em Londres (Inglaterra), trabalhando para a indústria de publicidade. Embora altamente detalhados, estes adereços eram geralmente projetados para serem fotografados de um ângulo específico. Mueck cada vez mais queria produzir esculturas realistas.

Em 1996, Mueck, colaborou com a sua sogra, Paula Rego (Famosa Pintora Portuguesa), para a produção de pequenas figuras como parte de um quadro que ela estava mostrando na Hayward Gallery. Rego apresentou-o a Charles Saatchi, que foi imediatamente impressionado.

As suas esculturas reproduzem fielmente os detalhes do corpo humano, mas joga com escala para produzir desconcertantemente imagens visuais. Com cinco metros de altura, a escultura Boy 1999 foi exposta na Bienal de Veneza. 

 
Boy 1999, by Ron Mueck


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

"O Segredo e o Mistério" - Poema de Edmundo Bettencourt


Claude Monet, Impression, soleil levant, 1872-1973

[Impression, soleil levant, traduzido para português Impressão, nascer do sol, é a mais célebre e importante obra do impressionista Claude Monet. É um óleo sobre tela, datado de 1872 (mas provavelmente realizado em 1873), que representa o nascer da matina no porto de Havre, com uma cerrada névoa sobre o estaleiro, os barcos e as chaminés no fundo da composição. A partir desta tela nasceu o movimento impressionista. Está exposta no Museu Marmottan.]
 


O Segredo e o Mistério


Mistérios a pouco e pouco vão morrendo 
e extenuados de vigília os anjos 
são afinal a sussurrantes sibilinas vozes 
que desvendam adivinham segredos 
atrás de sentinelas 
cuja ferocidade é uma ironia de ternura… 
Na palidez da luz 
cercando uma velha cabeça 
a quem um sono de embrião já tolda os olhos 
sorriem enigmáticos os sonhos. 


Edmundo Bettencourt, in 'Antologia Poética'


Air - Johann Sebastian Bach

domingo, 2 de novembro de 2014

"O Macho" - Poema de Walt Whitman


Francis Picabia, The Procession, Seville, 1912, oil on canvas, 121.9 x 121.9 cm, 
National Gallery of Art, Washington DC.



O Macho


O macho não é menos a alma, 
nem é mais: 
ele também está no seu lugar, 
ele também é todo qualidades, 
é ação e força, 
nele se encontra 
o fluxo do universo conhecido, 
fica-lhe bem o desdém, 
ficam-lhe bem os apetites e a ousadia, 
o maior entusiasmo e as mais profundas paixões 
ficam-lhe bem: o orgulho cabe a ele, 
orgulho de homem à potência máxima 
é calmante e excelente para a alma, 
fica-lhe bem o saber e ele o aprecia sempre, 
tudo ele chama à experiência própria, 
qualquer que seja o terreno, 
quaisquer que sejam o mar e o vento, 
no fim é aqui que ele faz a sondagem. 
(Onde mais lançaria ele a sonda, 
senão aqui?) 

Sagrado é o corpo do homem 
como sagrado é o corpo da mulher, 
sagrado — não importa de quem seja. 
É o mais humilde numa turma de operários? 
É um dos imigrantes de face turva 
apenas desembarcados no cais? 
São todos daqui ou de qualquer parte, 
da mesma forma que os bem situados, 
da mesma forma que qualquer um de vocês: 
cada qual há de ter na procissão 
o lugar dele ou dela. 

(Tudo é uma procissão, 
todo o universo é uma procissão 
em movimento medido e perfeito.) 

Saberão vocês tanto, de si mesmos, 
que ao mais humilde chamem de ignorante? 
Consideram-se com todo direito a uma boa visão 
e a ele ou ela sem nenhum direito a uma visão? 
Acham então que a matéria se fez coesa 
na inconsistência em que flutuava 
e que a crosta subiu e se fez chão 
e as águas correm e brotam as plantas 
para vocês, só — para ele e ela, nada? 


Walt Whitman, in "Leaves of Grass"


Francis Picabia, Star Dancer on a Transatlantic Steamer, 1913


"O homem era, antes, dono do seu saber. O seu saber é hoje o seu domínio."

(John Steinbeck)


Francis Picabia, Self-Portrait, 1946


Francis-Marie Martinez Picabia (Paris, 28 de janeiro de 1879 - id., 30 de novembro de 1953) foi um pintor e poeta francês.
Estudou em sua cidade natal, Paris, na École des Beaux-Arts e na École des Arts Décoratifs. Recebeu uma forte influência do impressionismo e do fauvismo, em especial da obra de Picasso e Sisley. De 1909 a 1911 esteve vinculado ao cubismo e foi membro do grupo "Puteaux", onde conheceu os irmãos Marcel DuchampJacques VillonSuzanne Duchamp e Raymond Duchamp-Villon. Em 1913 viajou aos Estados Unidos, onde entrou em contato com o fotógrafo Alfred Stieglitz e o grupo dadá estadunidense. Em Barcelona, publicou o primeiro número de sua revista dadaísta "391" (1916) contando com colaboradores como ApollinaireTristan TzaraMan Ray e Arp. Após passar um período na Costa Azul com uma forte presença surrealista, regressa a Paris e cria com André Breton a revista "491".


Francis Picabia, Hera, c. 1929. Óleo sobre papelão, 105 x 75 cm. 
Colecção privada.


"Um escritor deve acreditar que o que está a fazer é o mais importante do mundo. E deve apegar-se a esta ilusão, ainda que saiba que não é verdade."

(John Steinbeck)


John Steinbeck, 1962


John Ernst Steinbeck, Jr. (Salinas, 27 de fevereiro de 1902 — Nova Iorque, 20 de dezembro de 1968) foi um escritor estadunidense.
As suas obras principais são A Leste do Paraíso (PT) ou A Leste do Éden (BR) (East of Eden, 1952) e As Vinhas da Ira (The Grapes of Wrath, 1939). Foi membro da Ordem DeMolay. Recebeu o Nobel de Literatura de 1962.