domingo, 9 de maio de 2021

"Homens do futuro" - Poema de José Gomes Ferreira


Salvador Dalí, Criança geopolítica observando o nascimento do Homem Novo, 1943
[Elaborada durante a Segunda Guerra Mundial, a pintura transmite a preocupação do artista com o futuro 
da humanidade diante da perspectiva sombria da época.] 
 


 Homens do futuro

 
Homens do futuro:

ouvi, ouvi este poeta ignorado
que cá de longe fechado numa gaveta
no suor do século vinte
rodeado de chamas e de trovões,
vai atirar para o mundo
versos duros e sonâmbulos como eu.
Versos afiados como dentes duma serra em mãos de injúria.
Versos agrestes como azorragues de nojo.
Versos rudes como machados de decepar.
Versos de lâmina contra a Paisagem do mundo
— essa prostituta que parece andar às ordens dos ricos
para adormecer os poetas.

Fora, fora do planeta,
tu, mulher lânguida
de braços verdes
e cantos de pássaros no coração!

Fora, fora as árvores inúteis
— ninfas paradas
para o cio dos faunos
escondidos no vento...

Fora, fora o céu
com nuvens onde não há chuva
mas cores para quadros de exposição!

Fora, fora os poentes
com sangue sem cadáveres
a iludiremos de campos de batalha suspensos!

Fora, fora as rosas vermelhas,
flâmulas de revolta para enterros na primavera
dos revolucionários mortos na cama!

Fora, fora as fontes
com água envenenada da solidão
para adormecer o desespero dos homens!

Fora, fora as heras nos muros
a vestirem de luz verde as sombras dos nossos mortos sempre
de pé!

Fora, fora os rios
a esquecerem-nos as lágrimas dos pobres!

Fora, fora as papoilas,
tão contentes de parecerem o rosto de sangue heróico dum
fantasma ferido!

Fora, fora tudo o que amoleça de afrodites
a teima das nossas garras
curvas de futuro!

Fora! Fora! Fora! Fora!

Deixem-nos o planeta descarnado e áspero
para vermos bem os esqueletos de tudo, até das nuvens.
Deixem-nos um planeta sem vales rumorosos de ecos húmidos
nem mulheres de flores nas planícies estendidas.
Uma planeta feito de lágrimas e montes de sucata
com morcegos a trazerem nas asas a penumbra das tocas.
E estrelas que rompem do ferro fundente dos fornos!
E cavalos negros nas nuvens de fumo das fábricas!
E flores de punhos cerrados das multidões em alma!
E barracões, e vielas, e vícios, e escravos
a suarem um simulacro de vida
entre bolor, fome, mãos de súplica e cadáveres,
montes de cadáveres, milhões de cadáveres, silêncios de cadáveres
e pedras!

Deixem-nos um planeta sem árvores de estrelas
a nós os poetas que estrangulamos os pássaros
para ouvirmos mais alto o silêncio dos homens
— terríveis, à espera, na sombra do chão
sujo da nossa morte.
 

 
 
José Gomes Ferreira
 
 
José Gomes Ferreira, poeta militante da palavra
 
Com as palavras, "espadas de papelão", construiu sonhos, utopias, futuros de liberdade. José Gomes Ferreira dizia-se "militante da poesia total", ofício de homem e poeta abraçados na missão de mudar o mundo. Histórias, memórias e versos confirmam o ideal.
 

José Gomes Ferreira (1900-1985) transportava em si a força dos que não desistem do sonho. Queria salvar o mundo, fazer desaparecer a pobreza, as injustiças, a violência, os dramas que mutilam vidas e vontades. A todo este “real quotidiano” fica atento desde muito cedo o futuro poeta, nascido em 1900 no Porto, na proletária rua das Musas (que recordará em algumas poesias). Do pai, republicano e maçon, herda o exemplo combativo contra o fascismo e as preocupações sociais. José irá ser um defensor de causas empenhado, fazendo das palavras a sua arma mais poderosa.

Antes de começar a corrigir injustiças com metáforas, Gomes Ferreira convenceu-se que a sua vocação passava pelo Direito e empreendeu uma carreira diplomática na Noruega, curta, mas eficaz a comprovar o erro. Tem 30 anos quando regressa Lisboa com a certeza de que a única coisa que o interessa é, como tinha sido sempre, a literatura. Começa a escrever sobre cinema, colabora em várias publicações, é jornalista, tradutor. Depois, desafiado por amigos, começa a publicar o que há muito fechava em gavetas: poesia, ficção, contos, memórias.

Nesta viagem das palavras, que o afirmou como uma das vozes mais importantes do século XX português, José Gomes Ferreira deixou obras intemporais como “Lírio do Monte”“Aventuras Maravilhosas de João sem Medo”, “O Irreal Quotidiano”“O Mundo dos Outros”, “O Tempo Escandinavo”, ou “A Memória das Palavras”, entre outras. (Daqui)

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