quarta-feira, 31 de agosto de 2016

"Jaguadarte" - Poema de Lewis Carroll


O Jabberwocky, ilustrado por John Tenniel



Jaguadarte

(Tradução de Augusto de Campos)


Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.

“Foge do Jaguadarte, o que não morre!
Garra que agarra, bocarra que urra!
Foge da ave Felfel, meu filho, e corre
Do frumioso Babassurra!”

Ele arrancou sua espada vorpal
E foi atrás do inimigo do Homundo.
Na árvora Tamtam ele afinal
Parou, um dia, sonilundo.

E enquanto estava em sussustada sesta,
Chegou o Jaguadarte, olho de fogo,
Sorrelfiflando através da floresta,
E borbulia um riso louco!

Um, dois! Um, dois! Sua espada mavorta
Vai-vem, vem-vai, para trás, para diante!
Cabeça fere, corta, e, fera morta,
Ei-lo que volta galunfante.

“Pois então tu mataste o Jaguadarte!
Vem aos meus braços, homenino meu!
Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!”
Ele se ria jubileu.

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.


Tradução de "Jabberwocky"  por Augusto de Campos


Com tradução de Augusto de Campos e ilustrações de Rita Vidal (daqui), esta publicação marca 
a comemoração dos 150 anos da primeira edição do livro "Alice no País das Maravilhas".


"Deixa voar bem alto a fantasia! Sem ilusões, o mundo que seria?" 


(Ramón de Campoamor)


terça-feira, 30 de agosto de 2016

"Se existisses" - Poema de Manuel António Pina




Se existisses

Se existisses, serias tu,
talvez um pouco menos exata,
mas a mesma existência, o mesmo nome, a mesma morada.

Atrás de ti haveria
as mesmas duas palmeiras, e eu estaria
sentado a teu lado como numa fotografia.

Entretanto dobrar-se-ia o mundo
(o teu mundo: o teu destino, a tua idade)
entre ser e possibilidade,

e eu permaneceria acordado
e em prosa, habitando-te como uma casa
ou uma memória.






Juncos em movimento. 
Os cabelos da água 
penteados pelo vento.

 

domingo, 28 de agosto de 2016

"Pior que não cantar" - Poema de Mário Dionísio


Mário Dionísio (Escritor, pintor e professor português, 1916-1993), O Músico, 1948



Pior que não cantar


Pior que não cantar 
é cantar sem saber o que se canta 

Pior que não gritar 
é gritar só porque um grito algures se levanta 

Pior que não andar 
é ir andando atrás de alguém que manda 

Sem amor e sem raiva as bandeiras são pano 
que só vento eletriza 
em ruidosa confusão 
de engano 

A Revolução 
não se burocratiza 


in 'Terceira Idade' 


"Grão de incenso" - Poema de Augusto Gil


Émile Bernard, Lady in the rain, 1895


Grão de incenso

 
Entraste com ar cansado
Numa igreja fria e triste.
Ajoelhei-me ao teu lado
– E nem ao menos me viste...

Ficaste a rezar ali,
Naquela imensa tristeza.
Rezei também, mas a ti.
– Que aos anjos também se reza...

Ficaste a rezar até
Manhã dentro, manhã alta.
Como é que tens tanta fé
E a caridade te falta?... 


in Luar de Janeiro, 1909


sábado, 27 de agosto de 2016

"Amo-te muito, meu amor, e tanto" - Poema de Jorge de Sena


José de Campos Contente, Fonte do Areal (Figueiró dos Vinhos), 1940

 

Amo-te muito, meu amor, e tanto


Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.

Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,

um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,

tão quase é coisa ou sucessão que passa...
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça. 

As Evidências”


sexta-feira, 26 de agosto de 2016

"Sonhei-a!" - Poema de Luís Augusto Palmeirim


Mota Urgeiro (Pintor português, n. 1946), A Ceifeira



Sonhei-a!


Sonhei-a! Tenho na mente
O seu retrato inocente
A falar-me ao coração.
Sonhei-a como uma fada,
Que tem vivido encantada
Sozinha na solidão.

Sonhei-a d’olhos pisados,
Porque os prantos magoados
Lh’os tinham pisado assim:
Era triste, mas serena,
Como a gentil açucena,
Rainha do meu jardim.

Sonhei-a triste: – a tristeza
Tem nos olhos da beleza
Encantos qu’eu não direi.
Sonhei-a linda – trigueira,
Como se pinta a ceifeira,
Como eu pintá-la não sei.

Sonhei-a no fim do dia,
Quando tudo é melodia,
Quando tudo fala em Deus.
Vi-a sozinha pensando,
Talvez com prantos regando
Alguns pobres versos meus.

Sonhei-a como eu pequeno,
Naquele sonhar ameno,
Sonhava tudo o que é bom.
Cuidei vê-la que me olhava,
Tão triste que não falava
Nem da voz lhe ouvia o som.

Sonhei-a vindo da guerra,
A falar da minha terra
Como fala o trovador;
Mas então já se sorria,
Já de mansinho dizia
Algumas falas de amor.

Dizia-as como quem sente,
Não altas, mas como a gente
As diz em coisas assim:
Dizia-as como as diria
Beatriz quando as sentia
Falando de Bernardim.

Dizia-as sempre corando,
Repetia-as soluçando
D’olhos pregados no chão;
Dizia-as como eu jurara,
Que ninguém ainda amara
No mundo com tal paixão.

E depois envergonhada,
De não ser mais recatada,
Corava ainda outra vez!
Corava… corava ainda
Cada vez era mais linda,
Mais linda, que Deus a fez!

Qu’ria falar não podia,
Que a vergonha lh’impedia
De poder usar a voz.
Era então que se lembrava
De que o mundo a censurava
De nos ver falar a sós.

Sonhei-a depois rezando,
Talvez em segredo orando
Pela terra em que nasceu;
Rezava que quem a visse,
Pode ser que a confundisse
Com algum anjo do céu.

Tinha as tranças desprendidas,
Levemente sacudidas
Por ligeira viração.
Dos lábios lhe baloiçava
Uma oração que rezava
Do fundo do coração.

Vista assim, em tal postura,
Crescia-lhe a formosura,
Se ela pudesse crescer.
Não podia, nem num canto
Se pode tamanho encanto
Com verdade descrever.

Sonhei em sonho fagueiro
Que era um amor verdadeiro
Aquele tão casto amor;
Costumado à desventura,
Só em sonhos a ventura
Visitou o trovador!

Falei-lhe tão meigas falas,
Que nunca as damas das salas
M’as podem ouvir assim:
Ela era linda, inocente,
Falei-lhe como quem sente,
Falei-lhe pouco de mim.

Beijei-lhe a mão com respeito;
Arfava-lhe o lindo peito,
Batia-lhe o coração.
Jurei-lhe… não digo a jura;
Tenho medo que a ventura
Me não deixe a discrição!

Sonhei-a então pensativa,
Como fica a sensitiva
Se lhe vão no pé tocar:
Era tão linda a donzela,
Que eu ficaria ao pé dela
A minha vida…, a sonhar!

Era triste como eu gosto;
Era linda como aposto
Que não havia outra igual;
Sendo tantas como as rosas,
As filhas belas, mimosas,
Das terras de Portugal!

Sonhei-a: se foi mentira
Cantei-a de mais na lira,
Morri por ela de mais.
Se o sonho foi verdadeiro,
Nem o canto é lisonjeiro,
Nem as trovas desleais.

Sonhei-a! Tenho na mente
O seu retrato inocente
A falar-me ao coração!
Sonhei-a como uma fada,
Que tem vivido encantada
Sozinha – na solidão!


Luís Augusto Palmeirim,
Poesias, 1851


quinta-feira, 25 de agosto de 2016

"Dizes-me: tu és mais alguma coisa" - Poema de Alberto Caeiro


Shawn Van Daele, In The Springtime of an Idea



Dizes-me: tu és mais alguma coisa 


Dizes-me: tu és mais alguma coisa 
Que uma pedra ou uma planta. 
Dizes-me: sentes, pensas e sabes 
Que pensas e sentes. 
Então as pedras escrevem versos? 
Então as plantas têm ideias sobre o mundo? 

Sim: há diferença. 
Mas não é a diferença que encontras; 
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as coisas: 
Só me obriga a ser consciente. 

Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei. 
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos. 

Ter consciência é mais que ter cor? 
Pode ser e pode não ser. 
Sei que é diferente apenas. 
Ninguém pode provar que é mais que só diferente. 

Sei que a pedra é a real, e que a planta existe. 
Sei isto porque elas existem. 
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram. 
Sei que sou real também. 
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram, 
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta. 
Não sei mais nada. 

Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos. 
Sim, faço ideias sobre o mundo, e a planta nenhumas. 
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras; 
E as plantas são plantas só, e não pensadores. 
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto, 
Como que sou inferior. 
Mas não digo isso: digo da pedra, «é uma pedra», 
Digo da planta, «é uma planta», 
Digo de mim «sou eu». 
E não digo mais nada. Que mais há a dizer? 


 In “Poemas Inconjuntos” de Alberto Caeiro
Heterónimo de Fernando Pessoa


quarta-feira, 24 de agosto de 2016

"Sombras" - Poema de Fernando Pinto do Amaral





Sombras


A meio desta vida continua a ser 
difícil, tão difícil 
atravessar o medo, olhar de frente 
a cegueira dos rostos debitando 
palavras destinadas a morrer 
no lume impaciente de outras bocas 
anunciando o mel ou o vinho ou 
o fel. 

Calmamente sentado num sofá, 
começas a entender, de vez em quando, 
os condenados a prisão perpétua 
entre as quatro paredes do espírito 
e um esquife negro onde vão desfilando 
imagens, só imagens 
de canal em canal, sintonizadas 
com toda a angústia e estupidez do mundo. 

As pessoas - tu sabes - as pessoas são feitas 
de vento 
e deixam-se arrastar pela mais bela 
respiração das sombras, 
pela morte que repete os mesmos gestos 
quando o crepúsculo fica a sós connosco 
e a noite se redime com uma estrela 
a prometer salvar-nos. 

A meio desta vida os versos abrem 
paisagens virtuais onde se perdem 
as intenções que alguma vez tivemos, 
o recorte obscuro de perfis 
desenhados a fogo há muitos anos 
numa alma forrada de espelhos 
mas sempre tão vazia, sem abrigo 
para corpo nenhum. 


in 'Pena Suspensa'


terça-feira, 23 de agosto de 2016

"Símbolos? Estou farto de símbolos" - Poema de Álvaro de Campos


Bryce Cameron Liston (American artist, born in 1965)



Símbolos 


Símbolos? Estou farto de símbolos... 
Mas dizem-me que tudo é símbolo, 
Todos me dizem nada. 
Quais símbolos? Sonhos. — 
Que o sol seja um símbolo, está bem... 
Que a lua seja um símbolo, está bem... 
Que a terra seja um símbolo, está bem... 
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa, 
E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas, 
Para o azul do céu? 
Mas quem repara na lua senão para achar 
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela? 
Mas quem repara na terra, que é o que pisa? 
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes, 
Por uma diminuição instintiva, 
Porque o mar também é terra... 

Bem, vá, que tudo isso seja símbolo... 
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra, 
Mas neste poente precoce e azulando-se 
O sol entre farrapos finos de nuvens, 
Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado, 
E o que fica da luz do dia 
Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina 
Onde se demorava outrora com o namorado que a deixou? 
Símbolos? Não quero símbolos... 
Queria — pobre figura de miséria e desamparo! — 
Que o namorado voltasse para a costureira.


Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa


segunda-feira, 22 de agosto de 2016

"Desta vergonha de existir ouvindo" - Poema de Jorge de Sena


Leonid Pasternak, The Night before the Exam, 1895



Desta vergonha de existir ouvindo


Desta vergonha de existir ouvindo,
amordaçado, as vãs palavras belas,
por repetidas quanto mais traindo
tornadas vácuas da beleza delas; 

desta vergonha de viver mentindo
só porque escuto o que dizeis com elas;
desta vergonha de assistir medindo
por elas as injúrias por trás delas 

ao mesmo sangue com que foram feitas,
ao suor e ao sémen por que são eleitas
e à simples morte de chegar-se ao fim; 

desta vergonha inominável grito
a própria vida com que às coisas fito:
Calai-vos, ímpios, que jurais por mim!


Jorge de Sena
12/2/1954
In "As Evidências"



domingo, 21 de agosto de 2016

"Clandestinidade" - Poema de Fernando Namora


L'Hombre (1887), a painting by Malthe Odin Engelstedt (Danish M.A. and painter, 1852-1930). 
The player in the center is Rasmus Malling-Hansen, Danish inventor of the typewriter.
 

 
Clandestinidade


Secreto me acho 
e secreto me sentes 
quando 
secreto me julgas, 
Impuro me reconheço 
quando 
o nosso silêncio 
são vozes turbas. 
Dúbio é o desejo 
quando 
não é transparente 
a água em que se deita 
precavidamente. 
Clandestinos somos 
quando 
o que somos 
teme a face que pesquisa. 
Os olhos são claros 
quando 
a superfície do espelho 
é lisa. 


in 'Marketing'


sábado, 20 de agosto de 2016

"Cantiga do Campo" - Poema de António Gomes Leal


Frédéric Bazille, Young Woman with Lowered Eyes, 1869



Cantiga do Campo


Por que andas tu mal comigo
Ó minha doce trigueira?
Quem me dera ser o trigo
Que, andando, pisas na eira!

Quando entre as mais raparigas
Vais cantando entre as searas,
Eu choro ao ouvir-te as cantigas
Que cantas nas noites claras!

Os que andam na descamisa
Gabam a viola tua,
Que, às vezes, ouço na brisa
Pelos serenos da lua.

E falam com tristes vozes
Do teu amor singular
Àquela casa onde cozes,
Com varanda para o mar.

Por isso nada me medra,
Ando curvado e sombrio!
Quem me dera ser a pedra
Em que tu lavas no rio!

E andar contigo, ó meu pomo
Exposto às chuvas e aos sois!
E uma noite morrer como
Se morrem os rouxinóis!

Morrer chorando, num choro
Que mais as mágoas consola,
Levando só o tesouro
Da nossa triste viola!

Por que andas tu mal comigo?
Ó minha doce trigueira?
Quem me dera ser o trigo
Que, andando, pisas na eira!


Claridades do Sul


sexta-feira, 19 de agosto de 2016

"O sentimento religioso é o mais inconfessável de todos" - Jorge de Sena


Philippe de Champaigne (Pintor francês, 1602-1674), "Santo Agostinho", 1645-1650



O sentimento religioso é o mais inconfessável de todos 


"A religião, ou o sentimento religioso, é o mais inconfessável de todos: não por irracional, mas porque é da sua mais íntima natureza o silêncio da vida física do universo, que só faz barulho por acaso e não para a gente ouvir. Que mais não fosse, acharia ridícula, e acho, a atitude dos «libertos», nascidas da cabeça de Júpiter, desirmanados de tudo quanto encarnou as dores e as esperanças de uma humanidade dolorosamente em busca do seu próprio corpo. Mais que ridícula, criminosa, estulta, digna dos raios divinos, se os houvesse. Neste sentido, me é respeitável a religião considerada na sua ação interior e na sua simbólica aparente; e, como poeta, não posso deixar de ser sensível ao paganismo que a Igreja Católica não sonha - ou sonha até - a que ponto herdou. Quando a religião pretende fixar-se, lutar ligada a interesses materiais que geraram muitas das formas que ela tomou, evidentemente que sou contrário a ela, a aquela, porque sei que não há eternidade das formas e das convenções, mas sim da orgânica simbólica que assume uma ou outra forma, segundo o estado social em que se desenvolve."


(In Carta a sua noiva Mécia de Sena, 15 Dezembro 1947)

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

"Presídio" - Poema David Mourão-Ferreira


Samuel Luke Fildes (British painter and illustrator, 1843-1927), 
Mrs Mary Venetia James, 1895



Presídio


Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo 
Que dizer do pescoço, às vezes mármore, 
às vezes linho, lago, tronco de árvore, 
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...? 

E o ventre, inconsistente como o lodo?... 
E o morno gradeamento dos teus braços? 
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne: 
é também água, terra, vento, fogo... 

É sobretudo sombra à despedida; 
onda de pedra em cada reencontro; 
no parque da memória o fugidio 

vulto da Primavera em pleno Outono... 
Nem só de carne é feito este presídio, 
pois no teu corpo existe o mundo todo! 


in “Obra Poética”


terça-feira, 16 de agosto de 2016

"A Força que há na Luz" - Poema de Marly de Oliveira


A Cup of Tea, painted by Lilian Westcott Hale for Collier’s magazine



A Força que há na Luz


A força que há na luz, não sua ausência, 
pode ser a origem mais secreta 
do escuro em que afundamos de repente: 
por excesso de luz, eis que estou cega, 
por excesso de amor, eu não entendo 
- o farfalhar macio, a crua seda - 
aquilo que nos move, e que ultrapassa 
o limite de tudo o que sabemos. 
Por excesso de dor eu me humanizo, 
eu me faço pequena e tão real, 
nos tornamos serenos, silenciosos, 
tão reais e inocentes e macios, 
que essa luz que não vemos é demais. 
Mesmo ser é um excesso em que caímos. 


Marly de Oliveira, in 'O Sangue na Veia'


segunda-feira, 15 de agosto de 2016

"A Educação pela Pedra" - Poema de João Cabral de Melo Neto


Jenny Montigny (Belgian painter, 1875 - 1937), Nursery School in Deurle.



A Educação pela Pedra


Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra, 
uma pedra de nascença, entranha a alma.




domingo, 14 de agosto de 2016

"Cartas de Meu Avô" - Poema de Manuel Bandeira


Edmund C. Tarbell, Portrait of a Boy Reading, 1913



Cartas de Meu Avô


A tarde cai, por demais
Erma, úmida e silente…
A chuva, em gotas glaciais,
Chora monotonamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.

Enternecido sorrio
Do fervor desses carinhos:
É que os conheci velhinhos,
Quando o fogo era já frio.

Cartas de antes do noivado…
Cartas de amor que começa,
Inquieto, maravilhado,
E sem saber o que peça.

Temendo a cada momento
Ofendê-la, desgostá-la,
Quer ler em seu pensamento
E balbucia, não fala…

A mão pálida tremia
Contando o seu grande bem.
Mas, como o dele, batia
Dela o coração também.

A paixão, medrosa dantes
Cresceu, dominou-o todo.
E as confissões hesitantes
Mudaram logo de modo.

Depois o espinho do ciúme…
A dor… a visão da morte…
Mas, calmado o vento, o lume
Brilhou, mais puro e mais forte.

E eu bendigo, envergonhado,
Esse amor, avô do meu…
Do meu – fruto sem cuidado
Que, ainda verde, apodreceu.

O meu semblante está enxuto
Mas a alma, em gotas mansas,
Chora, abismada no luto
Das minhas desesperanças…

E a noite vem, por demais
Erma, úmida e silente…
A chuva, em pingos glaciais,
Cai melancolicamente.

E enquanto anoitece, vou
Lendo, sossegado e só,
As cartas que meu avô
Escrevia a minha avó.
 
in Cinza das Horas, 1917

sábado, 13 de agosto de 2016

"Estação" - Poema de Mário Cesariny


Salvador Dalí, A Desintegração da Persistência da Memória (1952 – 1954)



Estação


Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça


Mário Cesariny


quinta-feira, 11 de agosto de 2016

"De longe te hei de amar" - Poema de Cecília Meireles


Samuel Luke Fildes (British painter and illustrator, 1843-1927), The Love Letter



De longe te hei de amar


De longe te hei de amar 
- da tranquila distância 
em que o amor é saudade 
e o desejo, constância. 

Do divino lugar 
onde o bem da existência 
é ser eternidade 
e parecer ausência. 

Quem precisa explicar 
o momento e a fragrância 
da Rosa, que persuade 
sem nenhuma arrogância? 

E, no fundo do mar, 
a Estrela, sem violência, 
cumpre a sua verdade, 
alheia à transparência. 


Cecília Meireles, in 'Canções' 
 

terça-feira, 9 de agosto de 2016

"Um Segredo" - Poema de Fernando Namora


Charles Spencelayh (British, 1865-1958)



Um Segredo


Meu pai tinha sandálias de vento 
só agora o sei. 
Tinha sandálias de vento 
e isto nem sequer é uma maneira de dizer 
andava por longe os olhos fugidos a expressão em nenhures 
com as miraculosas instantaneidades que nos fazem estar em todos os sítios. 

Andava por longe meu pai sonhando errando vadiando 
mas toda a sua ausência era 
o malogro de o ser 
só agora o sei. 
Andava por longe ou sentíamo-lo longe 
vem dar no mesmo 
e no entanto víamo-lo sempre 
ali plantado de imobilidade absorta 
no cepo de carvalho raiado de negro 
a que o caruncho comera o miolo 
como as lagartas esvaziam as maçãs 
estranhamente quieto murcho resignado 
no seu estranho vadiar 
os olhos aguados numa tristeza que hoje me dói 
como um apelo perdido uma coragem abortada. 
Ausência era tão de mágoa urdida tão de fracasso tingida 
ausência era 
altiva e desolada altiva e triste sobretudo triste 
tristeza sim tristeza solene e irremediada 
só agora o sei. 

Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares 
sulco azul 
que nada distingue do azul onde foi sulcado 
e por isso nem é águia nem ao menos 
o que do seu voo resta para que 
o sonho se faça real. 
Meu pai era um homem com as nostalgias 
do que nunca acontecera e isso minava-o víscera a víscera 
como as tais lagartas esfarelam as maçãs 
e então sei-o agora calçava as ágeis sandálias 
miraculosamente leves soltas imaginosas 
indo de acaso em acaso de astro em astro 
eram de vento as suas sandálias fabulosas 
levando-o aonde mais ninguém poderia chegar. 

Os outros não o sabiam nem eu o sabia 
só o víamos sentado no cepo velho 
raiado de negro como uma estrela fossilizada 
por isso tudo era para ele mais irremediável e triste 
sei-o agora tarde de mais 
tarde de mais é uma dor de remorso 
que me consome víscera a víscera 
como as tais lagartas esfarelam as maçãs. 
Mas de qualquer maneira existe um segredo 
de que ambos partilhamos 
ciosamente avaramente indecifradamente 
como os astutos conspiradores 
que fazem do seu segredo 
um mágico tesouro inviolado. 

Um segredo simples: 
o que sentiste pai 
sinto-o eu agora por ambos 
sinto-o por ti 
sinto-o por mim. 

Ainda que por ele devorados. 


Fernando Namora, in 'Nome Para Uma Casa'


segunda-feira, 8 de agosto de 2016

"Notícias do Paraíso" - Poema de Zbigniew Herbert


Emile Claus (Belgian painter, 1849 –1924), The Picknick, 1887
 


Notícias do Paraíso


No paraíso a semana de trabalho é de trinta horas
os salários são elevados e os preços descem regularmente
o trabalho manual não é cansativo (devido à reduzida gravidade)
derrubar árvores não é mais pesado do que datilografar
o sistema social é estável e as leis são sábias
na verdade no paraíso vive-se melhor do que em qualquer outro lado

A princípio era para ter sido diferente
círculos luminosos coros e graus de abstração
mas não foram capazes de separar completamente
o espírito da carne de tal modo que quem chega
traz sempre uma gota de gordura uma fibra de músculo
foi necessário enfrentar as consequências
misturar um grão de absoluto com um grão de argila
mais um desvio da doutrina o último desvio
só o apostolo João o entreviu: ressuscitaremos na carne

São poucos os que acreditam em Deus
isso é só para aqueles cem por cento pneuma
os outros ouvem os comunicados sobre milagres e dilúvios
um dia Deus revelar-se-á a todos
quando irá isso acontecer ninguém sabe

Como agora todos os sábados ao meio-dia
as sirenes tocam docemente
e das fábricas saem os proletários celestes
envergonhados debaixo dos braços carregam as suas asas como violinos


(1924 – 1998)
Tradução de Jorge de Sousa Braga a partir da versão inglesa de Czesław Miłosz 


Emile ClausBringing in the Nets, 1893


"Quando o meu amigo está infeliz, vou ao seu encontro; quando está feliz, espero por ele."



domingo, 7 de agosto de 2016

"Século XXI" - Poema de Fernando Pinto do Amaral


George Grosz, Café, 1918-1919. Coleção particular



Século XXI


Falam de tudo como se a razão 
lhes ensinasse desesperadamente 
a mentir, a lançar 
sem remorso nem asco um novo isco 
à espera que alguém morda 
e acredite nessa liturgia 
cujos deuses são fáceis de adorar 
e obedecem às leis do mercado. 

Falam desse ludíbrio a que chamam 
o futuro 
como se ele existisse 
e as suas palavras ecoam 
em flatulentas frases 
sempre a favor do vento que as agita 
ao ritmo dos sorrisos ou das entrevistas 
em que tudo se vende 
por um preço acessível: emoções 
& sexo & fama & outros prometidos 
paraísos terrestres em horário nobre 
- matéria reciclável 
alimentando o altar do esquecimento. 

O poder não existe, como sabes 
demasiado bem - apenas uma 
inútil recidiva biológica 
de hormonas apressadas que procuram 
ser fiéis aos comércio 
dos sonhos sempre iguais, reproduzindo 
sedutoras metástases do nada 
nos códigos de barras ou nos cromossomas 
de quem já pouco espera dos seus genes. 


in 'A Luz da Madrugada'