domingo, 2 de outubro de 2016

"Versos Íntimos" - Poema de Augusto dos Anjos


William-Adolphe Bouguereau (1825-1905), Égalité devant la mort, 1848, Museu de Orsay


Versos Íntimos


Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te a lama que te espera!
O Homem que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo, acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro.
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa ainda pena a tua chaga
Apedreja essa mão vil que te afaga.
Escarra nessa boca de que beija!


 
 
Flávio Tavares (pintor brasileiro, 1950-), Augusto dos Anjos
 

Augusto dos Anjos (1884-1914) foi um poeta brasileiro identificado muitas vezes, como simbolista ou parnasiano. Todavia, muitos críticos, como o poeta Ferreira Gullar, preferem identificá-lo como pré-modernista. 
"Eu e outras poesias" é o único livro de poesia de Augusto dos Anjos, publicado no Rio de Janeiro no ano de 1912. A obra destaca-se pela visão da vida, numa espécie de réplica à idealização dos temas praticados pelo Parnasianismo. Nessa obra, o autor exprime melancolia, ao mesmo tempo em que desafia os parnasianos, utilizando palavras não-poéticas como verme, cuspe, vómito, entre outras. Alguns a consideram uma obra expressionista, outros vêem nela características impressionistas, sendo comumente classificada como pertencente ao pré-modernismo brasileiro. Augusto dos Anjos também foi considerado romântico por muitos dos seus críticos brasileiros. Do ponto de vista da linguagem, destacam-se as imagens estranhas, que se aproximam do expressionismo (“Como uma pele de rinoceronte / Estendida por toda a minha vida!”, em “As cismas do destino”), a exploração da sonoridade (“Eu e o esqueleto esquálido de Ésquilo”, em “Sonho de um monista”) e o recurso aos superlativos (“Misericordiosíssimo”, em “A um carneiro morto”). É notável ainda como o poeta consegue fazer conviver o rigor formal da regularidade métrica e da recorrência a rimas raras com o coloquialismo que marcaria a poesia modernista posterior (“Porque o madapolão para a mortalha / Custa 1$200 ao lojista!”, em “Os doentes”). (Daqui)
 

Louis-Jean-François Lagrenée, Allegory on the Death of the Dauphin, 1765
 

Alegoria 

Alegoria, figura de estilo complexa, de carácter macro-estrutural, é constituída por uma sequência continuada de figuras micro-estruturais, baseadas na analogia, que são geralmente metáforas. A alegoria encerra uma comparação alargada entre uma realidade concreta e animada, que é mostrada ao leitor/ouvinte com o objetivo de explicar/clarificar uma entidade abstrata (intelectual, moral, psicológica, sentimental, teórica). Esta realidade mental, de mais difícil compreensão, é representada através de entidades concretas, objetivas, normalmente seres humanos ou animais, com uma finalidade didática. Por isso, a alegoria assume, muitas vezes, a forma de parábola, de fábula, de sermão, de exemplo, de sátira, etc., e é possível ser encontrada em todos os géneros literários. A dimensão macro-estrutural da alegoria permite que seja alargada à totalidade de uma obra, como um conto, uma epopeia ou uma peça de teatro. A alegoria é um recurso estilístico muito frequente na literatura medieval e nos textos litúrgicos ou de alcance ético-moral.

Um exemplo famoso de alegoria é o que encontramos na Alegoria da Caverna, de Platão (in, A República, Livro VII). Para Platão, a caverna representa o mundo, mundo este que é um lugar de ignorância, sofrimento e punição, em que as almas são acorrentadas pelos deuses, de costas para a luz do sol, símbolo da inteligência, da clarividência, da cultura, luz essa que cegava quem para ela olhasse. A caverna é um mundo de sombras projetadas por uma luz indireta, símbolo de aparências, de onde a alma tem que sair para contemplar o mundo das Ideias e da Verdade.

Também nos autos de Gil Vicente é frequente encontrarmos uma dimensão alegórica. É o caso do Auto da Alma, em que a Alma é uma personagem alegórica, que caminha pelo mundo à semelhança de um peregrino que percorre vários lugares e que se cruza com o bem e com o mal, alternadamente cedendo às tentações demoníacas e aos apelos angélicos. A Alma acaba por encontrar o bem, na tranquilidade e amparo da estalagem da Santa Madre Igreja, que lhe serve uma refeição mística constituída pelas Insígnias da Paixão de Cristo.

Encontramos ainda outro exemplo no Sermão de Santo António aos Peixes, do Padre António Vieira, em que a descrição física do polvo simboliza a hipocrisia, a traição e a dissimulação humanas:

O polvo, com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. (Padre António Vieira, Sermão de Santo António aos Peixes) (Daqui)
 
 
alegoria (nome feminino)
 
1. figura de retórica que consiste na representação de uma realidade abstrata através de uma realidade concreta, por meio de analogias, metáforas, imagens e comparações; representação simbólica
 
2. obra de arte que representa uma ideia abstrata
 
3. expressão verbal ou plástica de uma coisa, com o fim de que as palavras ou imagens usadas sugiram outra coisa
 
4. concretização por meio de imagens, pessoas e figuras, de ideias ou entidades abstratas (Daqui)
 
 

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