quarta-feira, 30 de novembro de 2016

"Contrariedades" - Poema de Cesário Verde


Balthus, The king of cats, 1935



Contrariedades


Eu hoje estou cruel, frenético, exigente; 
Nem posso tolerar os livros mais bizarros. 
Incrível! Já fumei três maços de cigarros 
Consecutivamente. 

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos: 
Tanta depravação nos usos, nos costumes! 
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes 
E os ângulos agudos. 

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora 
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes; 
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes 
E engoma para fora. 

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas! 
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica. 
Lidando sempre! E deve a conta na botica! 
Mal ganha para sopas... 

O obstáculo estimula, torna-nos perversos; 
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias, 
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias, 
Um folhetim de versos. 

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta 
No fundo da gaveta. O que produz o estudo? 
Mais duma redação, das que elogiam tudo, 
Me tem fechado a porta. 

A crítica segundo o método de Taine 
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa 
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa 
Vale um desdém solene. 

Com raras exceções merece-me o epigrama. 
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo, 
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho 
Diverte-se na lama. 

Eu nunca dediquei poemas às fortunas, 
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas. 
Independente! Só por isso os jornalistas 
Me negam as colunas. 

Receiam que o assinante ingénuo os abandone, 
Se forem publicar tais coisas, tais autores. 
Arte? Não lhes convêm, visto que os seus leitores 
Deliram por Zaccone. 

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa, 
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie; 
E a mim, não há questão que mais me contrarie 
Do que escrever em prosa. 

A adulação repugna aos sentimentos finos; 
Eu raramente falo aos nossos literatos, 
E apuro-me em lançar originais e exatos, 
Os meus alexandrinos... 

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso! 
Ignora que a asfixia a combustão das brasas, 
Não foge do estendal que lhe humedece as casas, 
E fina-se ao desprezo! 

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova. 
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente, 
Oiço-a cantarolar uma canção plangente 
Duma opereta nova! 

Perfeitamente. Vou findar sem azedume. 
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas, 
Conseguirei reler essas antigas rimas, 
Impressas em volume? 

Nas letras eu conheço um campo de manobras; 
Emprega-se a reclame, a intriga, o anúncio, a blague, 
E esta poesia pede um editor que pague 
Todas as minhas obras 

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha? 
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia? 
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia... 
Que mundo! Coitadinha! 


 in 'O Livro de Cesário Verde'


terça-feira, 29 de novembro de 2016

"Teus Olhos" - Poema de Octavio Paz


Charles Spencelayh (1865–1958),  A Japanese Beauty



Teus Olhos


Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima, 
silêncio que fala, 
tempestades sem vento, mar sem ondas, 
pássaros presos, douradas feras adormecidas, 
topázios ímpios como a verdade, 
outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro 
duma árvore e são pássaros todas as folhas, 
praia que a manhã encontra constelada de olhos, 
cesta de frutos de fogo, 
mentira que alimenta, 
espelhos deste mundo, portas do além, 
pulsação tranquila do mar ao meio-dia, 
universo que estremece, 
paisagem solitária. 


Octavio Paz, in "Liberdade sob Palavra
Tradução de Luis Pignatelli   


Charles Spencelayh, Girl and Wolfhound


"Não importa que sejam poucas as suas posses e o seu dinheiro. Ter um cão torna-o rico." 

(Louis Sabin)


segunda-feira, 28 de novembro de 2016

"Pátria" - Poema de Miguel Torga


Winslow Homer (1836-1910), The Country School, 1871


Pátria


Soube a definição na minha infância.
Mas o tempo apagou
As linhas que no mapa da memória
A mestra palmatória
Desenhou.

Hoje sei apenas gostar
Duma nesga de terra
Debruada de mar.




Winslow Homer (1836-1910), The Blue Boy, 1876


"Que belo é ter um amigo! Ontem eram ideias contra ideias. Hoje é este fraterno abraço a afirmar que acima das ideias estão os homens. Um sol tépido a iluminar a paisagem de paz onde esse abraço se deu, forte e repousante. Que belo e que natural é ter um amigo!"

Miguel Torga, Diário (1935)


domingo, 27 de novembro de 2016

"No sorriso louco das mães" - Poema de Herberto Helder


Maximilien Luce (1858 -1941), Maternité, 1895


No sorriso louco das mães


No sorriso louco das mães batem as leves 
gotas de chuva. Nas amadas 
caras loucas batem e batem 
os dedos amarelos das candeias. 
Que balouçam. Que são puras. 
Gotas e candeias puras. E as mães 
aproximam-se soprando os dedos frios. 
Seu corpo move-se 
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões 
e órgãos mergulhados, 
e as calmas mães intrínsecas sentam-se 
nas cabeças filiais. 
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado 
vendo tudo, 
e queimando as imagens, alimentando as imagens 
enquanto o amor é cada vez mais forte. 
E bate-lhes nas caras, o amor leve. 
O amor feroz. 
E as mães são cada vez mais belas. 
Pensam os filhos que elas levitam. 
Flores violentas batem nas suas pálpebras. 
Elas respiram ao alto e em baixo. São 
silenciosas. 
E a sua cara está no meio das gotas particulares 
da chuva, 
em volta das candeias. No contínuo 
escorrer dos filhos. 
As mães são as mais altas coisas 
que os filhos criam, porque se colocam 
na combustão dos filhos, porque 
os filhos estão como invasores dentes-de-leão 
no terreno das mães. 
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos, 
e atiram-se, através deles, como jatos 
para fora da terra. 
E os filhos mergulham em escafandros no interior 
de muitas águas, 
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos 
e na agudeza de toda a sua vida. 
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa, 
e através dele a mãe mexe aqui e ali, 
nas chávenas e nos garfos. 
E através da mãe o filho pensa 
que nenhuma morte é possível e as águas 
estão ligadas entre si 
por meio da mão dele que toca a cara louca 
da mãe que toca a mão pressentida do filho. 
E por dentro do amor, até somente ser possível 
amar tudo, 
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor. 


Herberto Helder, in 'Excerto do poema «Fonte», 
publicado em A Colher na Boca, 1961'


Maximilien Luce (1858 -1941) La Gare de l'Est sous la neige, 1917
 

"Escreve-se um poema devido à suspeita de que enquanto o escrevemos algo vai acontecer, uma coisa formidável, algo que nos transformará, que transformará tudo."  - Herberto Helder (Jornal Público, 4 Dezembro 1990)


sábado, 26 de novembro de 2016

"Joga todo o teu ser na breve ideia" - Poema de Vergílio Ferreira


Valentín Thibon de Libian (Argentino, 1889-1931), Carbonero del puerto
 


Joga todo o teu ser na breve ideia 


Joga todo o teu ser na breve ideia 
que incerta entre o corrente te procura 
para lá do que banal te prende e enleia 
e pelo destacá-la emerge pura. 

Fazê-lo é dar-lhe já o que perdura. 
Porque a banalidade que a medeia 
como à pedra vulgar por entre a areia 
esquece o que em tomá-la a rareia. 

Ser homem é escolher o que o oriente 
e ser-lhe o mais a margem que lhe mente. 


in 'Conta-Corrente 1'


Valentín Thibon de Libian, "Mañana lluviosa"


"Uma boa frase é como uma boa anedota: dá brilho a quem a inventa e sobra ainda para quem a repete."

Vergílio FerreiraConta-Corrente 5


"Os Semeadores" - Poema de Machado de Assis


Winslow HomerThe Reaper, 1878



Os Semeadores


Vós os que hoje colheis, por esses campos largos, 
O doce fruto e a flor, 
Acaso esquecereis os ásperos e amargos 
Tempos do semeador? 

Rude era o chão; agreste e longo aquele dia; 
Contudo, esses heróis 
Souberam resistir na afanosa porfia 
Aos temporais e aos sóis. 

Poucos; mas a vontade os poucos multiplica, 
E a fé, e as orações 
Fizeram transformar a terra pobre em rica 
E os centos em milhões. 

Nem somente o labor, mas o perigo, a fome, 
O frio, a descalcês, 
O morrer cada dia uma morte sem nome, 
O morrê-la, talvez, 

Entre bárbaras mãos, como se fora crime, 
Como se fora réu 
Quem lhe ensinara aquela ação pura e sublime 
De as levantar ao céu! 

Ó Paulos do sertão! Que dia e que batalha! 
Venceste-a; e podeis 
Entre as dobras dormir da secular mortalha; 
Vivereis, vivereis! 


in 'Americanas'


sexta-feira, 25 de novembro de 2016

"Não desafies a alegria" - Poema de João José Cochofel


George Segal, Helen in Wicker Rocker, 1978


Não desafies


Não desafies 
a alegria. 

Quando ela chegar
um instante só 
não lhe perguntes 
porquê? 

Estende as mãos ávidas 
para o calor 
da cinza fria. 


in 'Breve' 


George Segal, Untitled
 

«Não se pode ensinar alguém a amar a grande poesia quando esse alguém chega até nós sem esse amor. Como é que se pode ensinar a solidão?»

Harold BloomO Cânone Ocidental, 
tradução de Manuel Frias Martins


quinta-feira, 24 de novembro de 2016

"Quando" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen





Quando


Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta 
Continuará o jardim, o céu e o mar, 
E como hoje igualmente hão de bailar 
As quatro estações à minha porta. 

Outros em Abril passarão no pomar 
Em que eu tantas vezes passei, 
Haverá longos poentes sobre o mar, 
Outros amarão as coisas que eu amei. 

Será o mesmo brilho, a mesma festa, 
Será o mesmo jardim à minha porta, 
E os cabelos doirados da floresta, 
Como se eu não estivesse morta. 




"Versos da Bela Adormecida" - Poema de José Régio


Salvador Dalí, O Nascimento dos Desejos Líquidos, 1932 



Versos da Bela Adormecida


Lá longe, muito longe, ai, muito longe!, ao fundo
De areias e gelos do cabo do mundo,
Depois de ralos, aflições, suores, dragões, ciladas, perigos,
E bosques tenebrosos, antigos, antigos.

Sonhei que ela me espera, adormecida
Desde o começo da vida,
Nua, deitada sobre as tranças de oiro,
Guardada para mim como um tesoiro.

Sonhei que um nimbo argênteo a veste,
Raiando o céu de norte a sul, de leste a oeste,
E que sobre ela paira o silêncio profundo
Dos gelos e areias do cabo do mundo...

No seu lábio, um sorriso ainda transido
Ficou, como na boca das estátuas, esculpido,
Esperando, talvez, para raiar,
Que ela suba as pestanas, devagar...

Vi uma vez, em sonhos vi, que aquelas pálpebras se erguiam,
Sim, devagar..., sim, devagar..., e que os seus lábios me diziam,
Estendidos para mim:
-- «Chegaste?, chegaste enfim?

E eu soluçava: -- «Sim, sou eu...!
«Mas tu..., és tu, bem tu, Porta do Céu?!
«És tu, ou não és mais que mais uma miragem
«Das tantas que encontrei pela viagem?

«Ai, que de vezes já supus que te possuía
«Em uma imagem que afinal era vazia, era vazia!
«E que longe, afinal, te não venho encontrar,
«Que passei ermos, passei montes, passei pegos, passei mar...»

Foi isto em sonhos. Acordado, eu perguntava: -- «Que farei?
«Aonde... a que longe irei,
«Para que vos atinja, ó silêncios sem fundo
«De areias e gelos do cabo do mundo?

«Anjos, demónios, serafins de asas de lanças e cabelos
«De chamas e serpentes aos novelos,
«Génios que em sonhos me guiais!:
«Já me não bastam sonhos! Quero mais.

«Quero, através seja de que desertos,
«Chegar a ver, com olhos bem despertos,
«O resplendor que sei que a veste,
«Raiando o céu de norte a sul, de leste a oeste...»

Assim falei. Ninguém, porém, me mostrou ter ouvido.
Meu grito, além, se extinguiu já, perdido...
E eu morro deste ardor, que nada acalma,
Com que aspiro debalde à minha própria alma.


José Régio, As Encruzilhadas de Deus (1936)


quarta-feira, 23 de novembro de 2016

"Sonho" - Poema de Marquesa de Alorna




Sonho


Perdoa, Amor, se não quero 
Aceitar novo grilhão; 
Quando quebraste o primeiro, 
Quebraste-me o coração. 

Olha, Amor, tem dó de mim! 
Repara nos teus estragos, 
E desvia por piedade 
Teus sedutores afagos! 

Tu de dia não me assustas; 
Os meus sentidos atentos 
Opõem aos teus artifícios 
Mil pesares, mil tormentos. 

Mas, cruel, porque me assaltas, 
De mil sonhos rodeado? 
Porque acometes no sono 
Meu coração descuidado?... 

Eu, quando acaso adormeço, 
Adormeço de cansada, 
E o crepúsculo do dia 
Me acorda sobressaltada. 

Arguo então a minha alma, 
Repreendo a natureza 
De ter cedido ao descanso 
Tempo que devo à tristeza. 

Que te importa um ser tão triste?... 
Cobre de jasmins e rosas 
Outras amantes felizes! 
Deixa gemer as saudosas! 


in 'Antologia Poética'


terça-feira, 22 de novembro de 2016

"Praia" - Poema de Telmo Padilha


Winslow Homer (American, 1836 - 1910), Dad's Coming!, 1873, National Gallery of Art, Washington



Praia


De repente esse sussurro 
de vozes no vento 
e não é o mar que fala. 

De repente essa esperança 
e não vem das pedras. 

De repente o ar se enche 
de vozes 
e não é a noite que fala. 

O mar escuta. 


(1930-1997)
 in 'Poesia Encontrada'


segunda-feira, 21 de novembro de 2016

"Canção da Névoa" - Poema de Teixeira de Pascoaes


Hans Dahl (Norwegian, 1849-1937)Last Rays of the Sun


Canção da Névoa 


Tristezas leva-as o vento;
Vão no vento; andam no ar...
Anda a espuma, à tona da água,
E à flor da noite o luar...

Vindes dum peito que sofre?
De uma folha a estiolar?
Donde vindes, donde vindes,
Tristezas que andais, no ar?

Eflúvios, emanações,
Saídas da terra e do mar,
Sois nevoeiros de lágrimas
Que o vento espalha, no ar...

Suspiros brandos e leves
De avezinhas a expirar;
Ermas sombras de canções,
Que ficaram por cantar!

Brancas tristezas subindo
Das fontes, que vão secar!
E das sombras que, à noitinha,
Ouve a gente murmurar.

Saudades, melancolias,
Que o Poeta vai aspirar...
Melancolias e mágoas,
Que são almas a voar.

E o Poeta solitário,
Fica a cismar, a cismar...
Todo embebido em tristezas,
Levadas na onda do ar...

E o Poeta se transfigura,
É a voz do mundo a falar!
E aquela voz também vai,
No vento que anda no ar...


Sombras
Antologia Poética


Hans Dahl, Figures in a Rowing Boat on a Fjord, 1917


"A ciência desenha a onda; a poesia enche-a de água." 

(Teixeira de Pascoaes)


domingo, 20 de novembro de 2016

"O sentimento dum ocidental" - Poema de Cesário Verde


Jean Béraud, Paris Kiosk, 1880-1884



O sentimento dum ocidental

I

Ave-Marias


Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro onde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infeção!

II

Noite fechada

Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!

E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções retas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.

Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.

E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

III

Ao gás

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.

As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confeções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!

Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós de arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

“Dó da miséria!… Compaixão de mim!…
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!

III

Horas mortas


O teto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.

Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das coisas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.

Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!

Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!…
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.

E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!




No longo poema "O Sentimento dum Ocidental", constituído por quatro partes ( I - AVÉ-MARIAS / II - NOITE FECHADA / III - AO GÁS / IV - HORAS MORTAS), o poeta deambula mais uma vez pela cidade de Lisboa passando pelo cais junto ao Tejo e pelas ruas limítrofes; à medida que vai passeando, anoitece (os subtítulos das quatro partes em que o poema se divide explicitam-no). O poeta descreve o espaço, a gente que passa ou que trabalha, ambientes, e enuncia as suas sensações, as impressões que vai recolhendo (o cheiro a gás, o ar acinzentado das casas envoltas na neblina). Ao longo do poema o sujeito revela, contudo, estar mais voltado para a sua própria interioridade por onde vai "deambulando" também. (Daqui)

"No céu da noite que começa" - Poema de Fernando Pessoa


Salvador Dalí, O Sono (1937)



No céu da noite que começa


No céu da noite que começa
Nuvens de um vago negro brando
Numa ramagem pouco espessa
Vão no ocidente tresmalhando.

Aos sonhos que não sei me entrego
Sem nada procurar sentir
E estou em mim como em sossego,
P'ra sono falta-me dormir.

Deixei atrás nas horas ralas
Caídas uma outra ilusão,
Não volto atrás a procurá-las,
Já estão formigas onde estão.


27-7-1931

Poesias Inéditas 
(1930-1935) 

sábado, 19 de novembro de 2016

"Solidão" - Poema de Helena Kolody


Théodore Ralli (1852-1909), Eavesdropping, 1880 


Solidão


Estamos sempre sozinhos
Em nossas horas maiores.

A dor, veneno latente,
Corrói-nos a alma em segredo.

A mais gloriosa alegria
Floresce na solidão.


in A Sombra no Rio, 1951


Théodore Ralli, A Greek Beauty (Greece, c.1890)


"Em arte, a copiosa, exuberante, luxuosa e florida fantasia cansa, esquece e passa - e só há eternidade para a beleza pura e simples."



sexta-feira, 18 de novembro de 2016

"O Único Mistério do Universo é o Mais e não o Menos" - Poema de Alberto Caeiro


Anna Palm de Rosa (1859-1924), Speeding ticket, Bois de Boulogne (Paris)



O Único Mistério do Universo é o Mais e não o Menos


No dia brancamente nublado entristeço quase a medo 
E ponho-me a meditar nos problemas que finjo... 

Se o homem fosse, como deveria ser, 
Não um animal doente, mas o mais perfeito dos animais, 
Animal direto e não indireto, 
Devia ser outra a sua forma de encontrar um sentido às coisas, 
Outra e verdadeira. 
Devia haver adquirido um sentido do «conjunto»; 
Um sentido, como ver e ouvir, do «total» das coisas 
E não, como temos, um pensamento do «conjunto»; 
E não, como temos, uma ideia do «total» das coisas. 
E assim - veríamos - não teríamos noção de conjunto ou de total, 
Porque o sentido de «total» ou de «conjunto» não seria de um «total» ou de um «conjunto» 
Mas da verdadeira Natureza talvez nem todo nem partes. 

O único mistério do Universo é o mais e não o menos. 
Percebemos demais as coisas - eis o erro e a dúvida. 
O que existe transcende para baixo o que julgamos que existe. 
A Realidade é apenas real e não pensada. 
O Universo não é uma ideia minha. 
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha. 
A noite não anoitece pelos meus olhos. 
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos. 
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos 
A noite anoitece concretamente 
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso. 

Assim como falham as palavras quando queremos exprimir qualquer pensamento, 
Assim falham os pensamentos quando queremos pensar qualquer realidade. 
Mas, como a essência do pensamento não é ser dita, mas ser pensada, 
Assim é a essência da realidade o existir, não o ser pensada. 
Assim tudo o que existe, simplesmente existe. 
O resto é uma espécie de sono que temos, 
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença. 

O espelho reflete certo; não erra porque não pensa. 
Pensar é essencialmente errar. 
Errar é essencialmente estar cego e surdo. 

Estas verdades não são perfeitas porque são ditas, 
E antes de ditas, pensadas: 
Mas no fundo o que está certo é elas negarem-se a si próprias 
Na negação oposta de afirmarem qualquer coisa. 
A única afirmação é ser. 
E ser o oposto é o que não queria de mim... 


Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 
Heterónimo de Fernando Pessoa



Anna Palm de Rosa (1859-1924), The royal palace in Stockholm