sábado, 30 de abril de 2016

"Amor" - Poema de Miguel Torga


Hugh Goldwin Rivière (English, 1869-1956 ), The Garden of Eden, 1901



Amor


A jovem deusa passa 
Com véus discretos sobre a virgindade; 
Olha e não olha, como a mocidade; 
E um jovem deus pressente aquela graça. 

Depois, a vide do desejo enlaça 
Numa só volta a dupla divindade; 
E os jovens deuses abrem-se à verdade, 
Sedentos de beber na mesma taça. 

É um vinho amargo que lhes cresta a boca; 
Um condão vago que os desperta e toca 
De humana e dolorosa consciência. 

E abraçam-se de novo, já sem asas. 
Homens apenas. Vivos como brasas, 
A queimar o que resta da inocência. 


Miguel Torga, in 'Libertação'



Nat King Cole



"O destino não vem do exterior para o homem, ele emerge do próprio homem."




quinta-feira, 28 de abril de 2016

"Erro" - Poema de Machado de Assis


Claude Andrew Calthrop (British, 1845-1893), Old Letters and Dead Leaves, 1875



Erro


Erro é teu. Amei-te um dia 
Com esse amor passageiro 
Que nasce na fantasia 
E não chega ao coração; 
Nem foi amor, foi apenas 
Uma ligeira impressão; 
Um querer indiferente, 
Em tua presença vivo, 
Nulo se estavas ausente. 
E se ora me vês esquivo, 
Se, como outrora, não vês 
Meus incensos de poeta 
Ir eu queimar a teus pés, 
É que, — como obra de um dia, 
Passou-me essa fantasia. 

Para eu amar-te devias 
Outra ser e não como eras. 
Tuas frívolas quimeras, 
Teu vão amor de ti mesma, 
Essa pêndula gelada 
Que chamavas coração, 
Eram bem fracos liames 
Para que a alma enamorada 
Me conseguissem prender; 
Foram baldados tentames, 
Saiu contra ti o azar, 
E embora pouca, perdeste 
A glória de me arrastar 
Ao teu carro...Vãs quimeras! 
Para eu amar-te devias 
Outra ser e não como eras... 


in 'Crisálidas'

quarta-feira, 27 de abril de 2016

"A esposa" - Poema de Vinicius de Moraes


Victor Gabriel Gilbert (French, 1847–1933), Un repas à deux, oil on canvas



A esposa 


Às vezes, nessas noites frias e enevoadas
Onde o silêncio nasce dos ruídos monótonos e mansos
Essa estranha visão de mulher calma
Surgindo do vazio dos meus olhos parados
Vem espiar minha imobilidade.

E ela fica horas longas, horas silenciosas
Somente movendo os olhos serenos no meu rosto
Atenta, à espera do sono que virá e me levará com ele.
Nada diz, nada pensa, apenas olha — e o seu olhar é como a luz
De uma estrela velada pela bruma.
Nada diz. Olha apenas as minhas pálpebras que descem
Mas que não vencem o olhar perdido longe.
Nada pensa. 
Virá e agasalhará minhas mãos frias
Se sentir frias suas mãos.

Quando a porta ranger e a cabecinha de criança
Aparecer curiosa e a voz clara chamá-la num reclamo
Ela apontará para mim pondo o dedo nos lábios
Sorrindo de um sorriso misterioso
E se irá num passo leve
Após o beijo leve e roçagante...

Eu só verei a porta que se vai fechando brandamente...
Ela terá ido, a esposa amiga, a esposa que eu nunca terei. 


Rio de Janeiro, 1933


terça-feira, 26 de abril de 2016

"Memória"- Poema de António Salvado


Gustave Léonard de Jonghe, Woman at the Piano with Cockatoo, 1870



Memória


Na cristalina, líquida presença, 
crescente lua no abismo enquanto 
o mar se cala, desconheço a margem 
onde me espera no desejo 
esguio do poente a deusa branca... 

À ínfima visão dum lírio encosto 
o meu soluço! O espaço é grande... 
Não invoco o lugar mas a verdade 
surge aquém da espera... 

Gaivotas sussurrantes, deixo a música 
morrer, pegadas frescas, desperdícios 
quentes na relva da minha alma... 

II 

Quando se oculta julgando a noite 
indefesa enorme, a fugidia 
estrela me ilumina e desce! 

Vem até mim, quebrada a natural 
cadência do seu mundo, e cresce... cresce... 
Tentáculos de luz me envolvem. Comovido, 
aperto em minhas mãos o elanguescente 
ardor do seu chegar... 

III 

Reconquisto agora o teu rosto, um horizonte, 
silêncio de grito suspenso, labirinto, 
mais desfeito 
no hálito das nuvens... 

Me surges tão sem ti 
que envolve o dia a espessura deste longe... 
E afogo assim na íntima, na única 
beleza do teu rasto, 
o meu soluço de água... 


António Salvado, in "Recôndito"


Gustave Léonard de Jonghe, The Japanese Fan, 1865


"Todos os seres humanos têm três vidas: a pública, a privada e a secreta."


segunda-feira, 25 de abril de 2016

"Lentos nos Fomos Esquecendo" - Poema de Fernando Echevarría


Grant WoodWoman with Plants (1929)


Lentos nos Fomos Esquecendo


Lentos nos fomos esquecendo. Quando 
o tempo da velhice nos foi vindo 
a tez apareceu amorenada de anos 
e afeita ao espírito. 
A lavoura sabia aos nossos passos. 
Até os desperdícios 
iluminavam debilmente o armário 
e a penumbra dos rincões escritos. 
Mas nós só estávamos 
em nos havermos esquecido. 
Ou, às vezes, a aura do trabalho 
quase fazia com que na mesa o sítio 
aparecesse coroado de anos 
sobre a mão a mover-se pelo seu próprio espírito. 


Fernando Echevarría, in "Figuras"




"Para que resulte o possível deve ser tentado o impossível."



domingo, 24 de abril de 2016

"Apanhador de Desperdícios" - Poema de Manoel de Barros


Paul Gauguin, The Swineherd, 1888


Apanhador de Desperdícios


Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios. 


 

Paul Gauguin, La Bergère Bretonne, 1886


"Onde houver uma árvore para plantar, planta-a tu. Onde houver um erro para emendar, emenda-o tu. Onde houver um esforço de que todos fogem, fá-lo tu. Sê tu aquele que afasta as pedras do caminho."


Gabriela Mistral, Nobel de Literatura de 1945
 

sábado, 23 de abril de 2016

"O Avô" - Poema de Olavo Bilac


Albert Anker, The devotion of his grandfather, 1893



O Avô


Este, que, desde a sua mocidade,
Penou, suou, sofreu, cavando a terra,
Foi robusto e valente, e, em outra idade,
Servindo à Pátria, conheceu a guerra.

Combateu, viu a morte, e foi ferido;
E, abandonando a carabina e a espada,
Veio, depois do seu dever cumprido,
Tratar das terras, e empunhar a enxada.

Hoje, a custo somente move os passos...
Tem os cabelos brancos; não tem dentes...
Porém remoça, quando tem nos braços
Os dois netos queridos e inocentes.

Conta-lhes os seus anos de alegria,
Os dias de perigos e de glórias,
As bandeiras voando, a artilharia
Retumbando, e as batalhas, e as vitórias...

E fica alegre quando vê que os netos,
Ouvindo-o, e vendo-o, e lhe invejando a sorte,
Batem palmas, extáticos, e inquietos,
Amando a Pátria sem temer a morte!


Poesias infantis


sexta-feira, 22 de abril de 2016

"Infância" - Poema de Rainer Maria Rilke



Infância


Passa lento o tempo da escola e a sua angústia 
com esperas, com infinitas e monótonas matérias. 
Oh solidão, oh perda de tempo tão pesada... 
E então, à saída, as ruas cintilam e ressoam 
e nas praças as fontes jorram, 
e nos jardins é tão vasto o mundo —. 
E atravessar tudo isto em calções, 
diferente de como os outros vão e foram —: 
Oh tempo estranho, oh perda de tempo, 
oh solidão. 

E olhar tudo isto à distância: 
homens e mulheres; homens, homens, mulheres 
e crianças, tão diferentes e coloridas —; 
e então uma casa, e de vez em quando um cão 
e o medo surdo trocando-se pela confiança: 
Oh tristeza sem sentido, oh sonho, oh medo, 
Oh infindável abismo. 

E então jogar: à bola e ao arco, 
num jardim que manso se desvanece 
e por vezes tropeçar nos crescidos, 
cego e embrutecido na pressa de correr e agarrar, 
mas ao entardecer, com pequenos passos tímidos, 
voltar silencioso a casa, a mão agarrada com força —: 
Oh compreensão cada vez mais fugaz, 
Oh angústia, oh fardo! 

E longas horas, junto ao grande tanque cinzento, 
ajoelhar-se com um barquinho à vela; 
esquecê-lo, porque com iguais 
e mais lindas velas outros ainda percorrem os círculos, 
e ter de pensar no pequeno rosto 
pálido que no tanque parecia afogar-se — : 
oh infância, oh fugazes semelhanças. 
Para onde? Para onde? 


Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens" 
Tradução de Maria João Costa Pereira 


Albert Anker,  Schreibender Knabe, 1883


"A casa da infância é como um rosto de mãe: 
contemplamo-lo como se já existisse antes de haver o Tempo." 
 
Mia Couto, O Outro Pé da Sereia

quinta-feira, 21 de abril de 2016

"Algumas proposições com crianças" - Poema de Ruy Belo


Albert AnkerWriting boy with little sister, 1875
 


Algumas proposições com crianças


A criança está completamente imersa na infância 
a criança não sabe que há de fazer da infância 
a criança coincide com a infância 
a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono 
deixa cair a cabeça e voga na infância 
a criança mergulha na infância como no mar 
a infância é o elemento da criança como a água 
é o elemento próprio do peixe 
a criança não sabe que pertence à terra 
a sabedoria da criança é não saber que morre 
a criança morre na adolescência 
Se foste criança diz-me a cor do teu país 
Eu te digo que o meu era da cor do bibe 
e tinha o tamanho de um pau de giz 
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez 
Ainda hoje trago os cheiros no nariz 
Senhor que a minha vida seja permitir a infância 
embora nunca mais eu saiba como ela se diz 


Ruy Belo, in 'Homem de Palavra[s]'




"As crianças têm mais necessidade de modelos do que de críticas."



quarta-feira, 20 de abril de 2016

"Rua de Camões" - Poema de Inês Lourenço



Albert Anker (Swiss painter and illustrator, 1831-1910), Girl Braiding Her Hair, 1887.
 


Rua de Camões


A minha infância 
cheira a soalho esfregado a piaçaba 
aos chocolates do meu pai aos Domingos 
à camisa de noite de flanela 
da minha mãe 

Ao fogão a carvão 
à máquina a petróleo 
ao zinco da bacia de banho 

Soa a janelas de guilhotina 
a desvendar meia rua 
surgia sempre o telhado 
sustentáculo da mansarda 
obstáculo da perspetiva 

Nele a chuva acontecia 
aspergindo ocres mais vivos 
empapando ervas esquecidas 
cantando com as telhas liquidamente 
percutindo folhetas e caleiras 
criando manchas tão incoerentes nas paredes 
de onde podia emergir qualquer objeto 

E havia a Dona Laura 
senhora distinta 
e sua criada Rosa 
que ao nosso menor salto 
lesta vinha avisar 
que estavam lá em baixo 
as pratas a abanar no guarda-louça 

O caruncho repicava nas frinchas 
alongava as pernas 
a casa envelhecia 

Na rua das traseiras havia um catavento 
veloz nas turbulências de Inverno 
e eu rejeitava da boneca 
a imutável expressão 

A minha mãe fazia-me as tranças 
antes de ir para a escola 
e dizia-me muitas vezes 

Não olhes para os rapazes 
que é feio. 


Inês Lourenço, in 'Cicatriz 100%'


terça-feira, 19 de abril de 2016

"Elas" - Poema de Maria Teresa Horta



ELAS 


Elas 
Iludem as escurezas
dos rostos
a negrura das nódoas
do corpo

desatam os nós que lhes
atardam, atam e algemam
a alma e os pulsos

Conversam entre si
coisas de enredo
lançam Luz nos recantos
das vagas

Trocam receitas de venenos
murmuram palavras escusas
desejos inolvidáveis

‘Oh, que dureza ruim!
Ataduras e debruns
missanga de muita estrela

Cassiopeia, raízes
sangrantes
das próprias veias’

Elas 
inventam a mata
na clareira assombrada
embrenhadas na vigília

Recriam, criam, dominam

Viram pombas, profetizas
com uma alvura de cera
pálidas rosas da China

‘Oh, tormenta amendoada
solidões desirmanadas
enquanto de madrugada

Cavam, enterram, devassam
pespontando com o riso
as dobras do calamento’

Elas 
bradam, elas buscam
sibilas e amazonas
emudecem as camélias
e as roseiras nervosas

Feiticeiras ardilosas
filhas da harmonia
partilham as tempestades

Derrubam, suturam, fiam

‘Oh doçuras sigilosas
no aço do destempero
de incêndios e desesperos

Virados pelo avesso
a paixão e a razão
entre si tão divididas’

Elas
recusam, derrubam
dominam as próprias vidas
com a sua inteligência

Tornam-se donas do tempo
a semearem agruras
pelos meandros do vento.


Março de 2016


segunda-feira, 18 de abril de 2016

"Memórias das Infâncias" - Poema de Adília Lopes


Vilhelm Hammershøi (Danish painter, 1864-1916), 



Memórias das Infâncias 


Gostávamos muito de doce de framboesa 
e deram-nos um prato com mais doce de framboesa 
do que era costume 
mas 
a nossa criada a nossa tia-avó no doce de framboesa 
para nosso bem 
porque estávamos doentes 
esconderam colheres do remédio 
que sabia mal 
o doce de framboesa não sabia à mesma coisa 
e tinha fiapos brancos 
isso aconteceu-nos uma vez e chegou 
nunca mais demos pulos por ir haver 
doce de framboesa à sobremesa 
nunca mais demos pulos nenhuns 
não podemos dizer 
como o remédio da nossa infância sabia mal! 
como era doce o doce de framboesa da nossa infância! 
ao descobrir a mistura 
do doce de framboesa com o remédio 
ficámos calados 
depois ouvimos falar da entropia 
aprendemos que não se separa de graça 
o doce de framboesa do remédio misturados 
é assim nos livros 
é assim nas infâncias 
e os livros são como as infâncias 
que são como as pombinhas da Catrina 
uma é minha 
outra é tua 
outra é de outra pessoa


Adília Lopes,
OBRA – O Decote da Dama de Espadas, pag. 107,
 Ed. Mariposa Azual, Lisboa 2001


Vilhelm Hammershøi, Interior with Woman at Piano, 1901, 
 Oil on canvas, 55,9 x 45,1 cm, Private Collection


A infância

"Todos os jardins da nossa infância são o jardim do paraíso. A pele suave desses tempos em que se corria com as pernas arqueadas soltando uma espécie de luz pela respiração. Ríamos a correr para os braços dos adultos numa entrega absoluta. Eles, os adultos, atiravam-nos ao ar e apanhavam-nos com mãos ásperas, e, talvez por isso, quando crescemos nunca mais deixamos de, esporadicamente, sonhar que voamos. E de sonhar com gigantes e anões, pois eram essas as nossas proporções."

O Pintor Debaixo do Lava-Loiças

domingo, 17 de abril de 2016

"Não deixeis um grande amor" - Poema de José Tolentino Mendonça





Não deixeis um grande amor


Aos poucos apercebi-me do modo 
desolado incerto quase eventual 
com que morava em minha casa 

assim ele habitou cidades 
desprovidas 
ou os portos levantinos a que 
se ligava apenas por saber 
que nada ali o esperava 

assim se reteve nos campos 
dos ciganos sem nunca conseguir 
ser um deles: 
nas suas rixas insanas 
nas danças de navalhas 
na arte de domar a dor 

chegou a ser o melhor 
mas era ainda a criança perdida 
que protesta inocência 
dentro do escuro 

não será por muito tempo 
assim eu pensava 
e pelas falésias já a solidão 
dele vinha 

não será por muito tempo 
assim eu pensava 
mas ele sorria e uma a uma 
as evidencias negava 

por isso vos digo 
não deixeis o vosso grande amor 
refém dos mal-entendidos 
do mundo 


in 'Longe não Sabia' 


Gleb Goloubetski, Deep Silence


"Faltam-nos hoje não apenas mestres da vida interior, mas simplesmente da vida, de uma vida total, de uma existência digna de ser vivida. Faltam cartógrafos e testemunhas do coração humano, dos seus infindos e árduos caminhos, mas também dos nossos quotidianos, onde tudo não é e é extraordinariamente simples. Falta-nos uma nova gramática que concilie no concreto os termos que a nossa cultura tem por inconciliáveis: razão e sensibilidade, eficácia e afetos, individualidade e compromisso social, gestão e compaixão, espiritualidade e sentidos, eternidade e instante. Será que do instante dos sentidos podemos fazer uma mística? Não tenhamos dúvidas: o que está dito permanece ainda por dizer."




sábado, 16 de abril de 2016

"Do Mar" - Poema de Fiama Hasse Pais Brandão


João Vaz (Pintor e professor português, 1859-1931), Rochedos, Peniche (daqui)
 


Do Mar


Aqueles de um país costeiro, há séculos,
contêm no tórax a grandeza
sonora das marés vivas.
Em simples forma de barco, 
as palmas das mãos. 
Os cabelos são banais
como algas finas. O mar
está em suas vidas de tal modo
que os embebe dos vapores do sal.

Não é fácil amá-los
de um amor igual à
benignidade do mar.


Fiama Hasse Pais Brandão



José de Campos Contente, Dunas na Costa da Caparica, 1935 (daqui)


"O mar é o habilidoso desenhador de ausências."

Venenos de Deus, Remédios do Diabo 


sexta-feira, 15 de abril de 2016

"Pastor do Monte, Tão Longe de Mim" - Poema de Alberto Caeiro


António da Silva Porto, Guardando o rebanho, 1893. Óleo sobre tela, 160 cm x 200 cm.
A pintura pertence ao Museu Nacional de Soares dos Reis do Porto



Pastor do Monte, Tão Longe de Mim


Pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas 
Que felicidade é essa que pareces ter — a tua ou a minha? 
A paz que sinto quando te vejo, pertence-me, ou pertence-te? 
Não, nem a ti nem a mim, pastor. 
Pertence só à felicidade e à paz. 
Nem tu a tens, porque não sabes que a tens. 
Nem eu a tenho, porque sei que a tenho. 
Ela é ela só, e cai sobre nós como o sol, 
Que te bate nas costas e te aquece, e tu pensas 
noutra cousa indiferentemente, 
E me bate na cara e me ofusca. e eu só penso no sol. 


Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 
Heterónimo de Fernando Pessoa


Max Liebermann, Woman and Her Goats in the Dunes, 1890
 

"Amor, fascinante amor, o campo é o teu templo." 



quinta-feira, 14 de abril de 2016

"Amar-te é Vir de Longe" - Poema de Pedro Tamen


Thomas Hovenden (1840-1895), What O’Clock Is It? (1878)



Amar-te é Vir de Longe


Amar-te é vir de longe, 
descer o rio verde atrás de ti, 
abrir os braços longos desde os sete 
anos sob a latada ao pé do largo, 
guardar o cheiro a figos vistos lá, 
a olho nu, ao pé, ao pé de ti, 
parar a beber água numa fonte, 
um acaso perdido no caminho 
onde os vimes me roçam a memória 
e te anunciam mãos e te perfazem; 
como se o sino à hora de tocar 
já fosse o tempo todo badalado, 
e a tua boca se abrisse atrás do tojo, 
e abaixo dos calções as pernas nuas 
se rasgassem só para o pequeno sangue, 
tal o pequeno preço que me pedes. 
Atrás da curva estavas, és, serias, 
nos muros de granito, nas amoras. 
Amar-te era lembrança e profecias, 
uma porta já feita para abrir, 
e encontrar o lar ou música lavada 
onde, se nasces, vives, duras, moras 
— meu nome exato e pão 
no chão das alegrias. 


in 'Escrito de Memória'


quarta-feira, 13 de abril de 2016

"Sem outra palavra para mantimento" - Poema de Daniel Faria


Paul Cezanne, Jas de Bouffan, the pool, c.1876



Sem outra palavra para mantimento


Sem outra palavra para mantimento 
Sem outra força onde gerar a voz 
Escada entre o poço que cavaste em mim e a sede 
Que cavaste no meu canto, amo-te 
Sou cítara para tocar as tuas mãos. 
Podes dizer-me de um fôlego 
Frase em silêncio 
Homem que visitas 
Ó seiva aspergindo as partículas do fogo 
O lume em toda a casa e na paisagem 
Fora da casa 
Pedra do edifício aonde encontro 
A porta para entrar 
Candelabro que me vens cegando. 
Sol 
Que quando és noturno ando 
Com a noite em minhas mãos para ter luz. 


(1971-1999)
in "Dos Líquidos"


terça-feira, 12 de abril de 2016

"Fantasia" - Poema de Alfredo Brochado


Gustave Léonard de Jonghe (1829–1893), Vanity 


Fantasia


Há uma mulher em toda a minha vida, 
Que não se chega bem a precisar. 
Uma mulher que eu trago em mim perdida, 
Sem a poder beijar. 

Há uma mulher na minha vida inquieta. 
Uma mulher? Há duas, muitas mais, 
Que não são vagos sonhos de poeta, 
Nem formas irreais. 

Mulheres que existem, corpos, realidade, 
Têm passado por mim, humanamente, 
Deixando, quando partem, a saudade 
Que deixa toda a gente. 

Mas coisa singular, essa que eu não beijei, 
É quem me ilude, é quem me prende e quer. 
Com ela sonho e sofro... Só não sei 
Quem é essa mulher. 


Alfredo Brochado 
(1897/1949) 
in "Bosque Sagrado"




"Amor, amar - eis uma ciência que todos aprendem sem mestre." 



segunda-feira, 11 de abril de 2016

"As Ventoinhas" - Poema de Machado de Assis


Anders Zorn, Sommarnöje, 1886


As Ventoinhas


A mulher é um cata-vento, 
Vai ao vento, 
Vai ao vento que soprar; 
Como vai também ao vento 
Turbulento, 
Turbulento e incerto o mar. 

Sopra o sul: a ventoinha 
Volta azinha, 
Volta azinha para o sul; 
Vem taful; a cabecinha 
Volta azinha, 
Volta azinha ao meu taful. 

Quem lhe puser confiança, 
De esperança, 
De esperança mal está; 
Nem desta sorte a esperança 
Confiança, 
Confiança nos dará. 

Valera o mesmo na areia 
Rija ameia, 
Rija ameia construir; 
Chega o mar e vai a ameia 
Com a areia, 
Com a areia confundir. 

Ouço dizer de umas fadas 
Que abraçadas, 
Que abraçadas como irmãs 
Caçam almas descuidadas... 
Ah!  que fadas! 
Ah que fadas tão vilãs! 

Pois, como essas das baladas, 
Umas fadas, 
Umas fadas dentre nós, 
Caçam, como nas baladas; 
E são fadas, 
E são fadas de alma e voz. 

É que — como o cata-vento, 
Vão ao vento, 
Vão ao vento que lhes der; 
Cedem três coisas ao vento: 
Cata-vento, 
Cata-vento, água e mulher. ~


in 'Crisálidas'


Anders Zorn, Lady with fur cape, 1887, watercolor on paper


"Mesmo a mulher mais sincera esconde algum segredo no fundo do seu coração."