domingo, 29 de janeiro de 2017

"Musa Consolatrix" - Poema de Machado de Assis


Jean-Joseph Benjamin-Constant (french, 1845-1902), Victory
(Benjamin-Constant recreates, with modifications, the goddess of Victory, 
a winged woman standing on the prow of a ship, braced against
 the strong wind blowing through her...)



Musa Consolatrix


Que a mão do tempo e o hálito dos homens 
Murchem a flor das ilusões da vida, 
Musa consoladora, 
É no teu seio amigo e sossegado 
Que o poeta respira o suave sono. 

Não há, não há contigo, 
Nem dor aguda, nem sombrios ermos; 
Da tua voz os namorados cantos 
Enchem, povoam tudo 
De íntima paz, de vida e de conforto. 

Ante esta voz que as dores adormece, 
E muda o agudo espinho em flor cheirosa, 
Que vales tu, desilusão dos homens? 
Tu que podes, ó tempo? 
A alma triste do poeta sobrenada 
À enchente das angústias; 
E, afrontando o rugido da tormenta, 
Passa cantando, alcíone divina. 

Musa consoladora, 
Quando da minha fronte de mancebo 
A última ilusão cair, bem como 
Folha amarela e seca 
Que ao chão atira a viração do outono, 
Ah! no teu seio amigo 
Acolhe-me, — e terá minha alma aflita, 
Em vez de algumas ilusões que teve, 
A paz, o último bem, último e puro! 


Machado de Assis, in 'Crisálidas', 1864


sábado, 28 de janeiro de 2017

"Amar ou Odiar" - Poema de Fausto Guedes Teixeira


Augustus Edwin Mulready (1844–1904), Our good natured cousin


Amar ou Odiar


Amar ou odiar: ou tudo ou nada!
O meio termo é que não pode ser.
A alma tem que estar sobressaltada
Para o nosso barro sentir, viver...

Não é uma cruz a que não for pesada,
Metade de um prazer, não é um prazer!
E quem quiser a vida sossegada,
Fuja da vida e deixe-se morrer!

Vive-se tanto mais quando se sente;
Todo o valor está no que sofremos.
Que nenhum homem seja indiferente!

Amemos muito, como odiamos já!
A verdade está sempre nos extremos
Porque é no sentimento que ela está.


in “O Meu Livro”


Augustus Edwin Mulready, A Street Flower Seller, 1882


"Importuna coisa é a felicidade alheia quando somos vítima de algum infortúnio."



quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

"A Fúria mais Fatal e mais Medonha" - Poema de Francisco Joaquim Bingre


Edvard Munch, "Jealousy", 1895, óleo sobre tela



A Fúria mais Fatal e mais Medonha


Das Fúrias infernais foi sempre a Inveja 
No mundo a mais fatal e a mais medonha, 
Pois faz dos bens dos outros a peçonha 
Com que a si mesma se envenena e peja. 

Com ira e com furor, raivosa, arqueja, 
Com vinganças, traições, com ódios sonha. 
Onde quer que se encoste e os olhos ponha, 
Tragar as ditas dos mortais deseja. 

Mãe dos males fatais à Sociedade, 
Vidas, honras destrói, cismas fomenta, 
Nutrindo na alma as serpes da Maldade. 

O próprio coração que come a alenta, 
Vive afogada em ondas de ansiedade, 
Da frenética raiva se alimenta.


Francisco Joaquim Bingre
(1763-1856)
in 'Sonetos'


quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

"Tu eras também uma pequena folha" - Poema de Pablo Neruda


Hans Andersen Brendekilde (Danish, 1857–1942), A wooded path in autumn, 1902



Tu eras também uma pequena folha


Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.




Hans Andersen Brendekilde, L.A. Ring maler ved Aasum Smedje, 1893


"A palavra é uma parte do silêncio e o fogo tem uma metade de frio."

(Pablo Neruda)


Hans Andersen Brendekilde Home for dinner, 1900


''A Verdadeira viagem não está em sair à procura de novas paisagens, mas em possuir novos olhos.''

(Marcel Proust)


Hans Andersen Brendekilde, Afternoon work, 1918


"Escritores, meditem muito e corrijam pouco. Fazei as vossas rasuras no vosso próprio cérebro."

(Victor Hugo)


Hans Andersen Brendekilde, On forbidden roads, 1886


"O desgosto é o obscurecimento do espírito e não o seu castigo."

(Khalil Gibran)


Hans Andersen Brendekilde, Tøsne, 1885 


"Se a força faz vencedores, a concórdia faz invencíveis." 

(Provérbio)


Send me a Song - Lisa Kelly

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

"Hino à Alegria" - Poema de António Feijó


Ludwig Knaus (German painter, 1829-1910)


Hino à Alegria


Tenho-a visto passar, cantando, à minha porta, 
E às vezes, bruscamente, invadir o meu lar, 
Sentar-se à minha mesa, e a sorrir, meia morta, 
Deitar-se no meu leito e o meu sono embalar. 

Tumultuosa, nos seus caprichos desenvoltos, 
Quase meiga, apesar do seu riso constante, 
De olhos a arder, lábios em flor, cabelos soltos, 
A um tempo é cortesã, deusa ingénua ou bacante... 

Quando ela passa, a luz dos seus olhos deslumbra; 
Tem como o Sol de Inverno um brilho encantador; 
Mas o brilho é fugaz, — cintila na penumbra, 
Sem que dele irradie um facho criador. 

Quando menos se espera, irrompe de improviso; 
Mas foge-nos também com uma presteza igual; 
E dela apenas fica um pálido sorriso 
Traduzindo o desdém duma ilusão banal. 

Onda mansa que só à superfície corre, 
Toda a alegria é vã; só a Dor é fecunda! 
A Dor é a Inspiração, louro que nunca morre, 
Se em nós crava a raiz exaustiva e profunda! 

No entanto, eu te saúdo e louvo, hora dourada, 
Em que a Alegria vem extinguir, de surpresa, 
Como chuva a cair numa planta abrasada, 
A fornalha em que a Dor se transmuta em Beleza! 

Pensar, é certo, eleva o espírito mais alto; 
Sofrer torna melhor o coração; depura 
Como um crisol: a chispa irrompe do basalto, 
Sai o oiro em fusão da escória mais impura. 

A Alegria é falaz; só quem sofre não erra, 
Se a Dor o eleva a Deus, na palavra que O louve; 
A Alma, na oração, desprende-se da terra; 
Jamais o homem é vão diante de Deus que o ouve! 

E contudo, — ilusão!—basta que ela sorria, 
Basta vê-la de longe, um momento, a acenar, 
Vamos logo em tropel, no capricho do dia, 
Como ébrios, evoé! atrás dela a cantar! 

Mas se ela, de repente, ao nosso olhar se furta, 
Todo o seu brilho é pó que anda no sol disperso; 
A Alegria perfeita é uma aurora tão curta, 
Que mal chega a doirar as cortinas do berço. 

Às vezes, essa luz, de tão frágil encanto, 
Vem ainda banhar certas horas da Vida, 
Como um íris de paz numa névoa de pranto, 
Crepitação, fulgor duma estrela perdida. 

Então, no resplendor dessa aurora bendita, 
Toma corpo a ilusão, e sem ânsias, sem penas, 
O espírito remoça, o coração palpita 
Seja a nossa alma embora uma saudade apenas! 

Mas efémera ou vã, a Alegria... que importa? 
Deusa ingénua ou bacante, o seu riso clemente, 
Quando, mesmo de longe, ecoa à nossa porta, 
Deixa em louco alvoroço o coração da gente! 

Momentânea ou falaz, é sempre um dom divino, 
Sol que um instante vem a nossa alma aquecer... 
Pudesse eu celebrar teu louvor no meu Hino! 
Momentâneo, falaz encanto de viver! 

O teu sorriso enxuga o pranto que choramos, 
E eu não sei traduzir a ventura que exprimes! 
Nesta sentimental língua que nós falamos, 
Só a Dor e a Paixão têm acordes sublimes!


António Feijó, in 'Sol de Inverno'


Ludwig Knaus, Girl in a Field, 1857


"Sem a alegria, a humanidade não compreende a simpatia nem o amor."



domingo, 8 de janeiro de 2017

"Retrato" - Poema de Jerónimo Baía


Alexander Roslin, (Swedish, 1718-1793), The artist Anne Vallayer-Coster, 1783



Retrato


Pintar o rosto de Márcia 
Com tal primor determino, 
Que seja logo seu rosto 
Pela pinta conhecido. 

Anda doido de prazer 
Seu cabelo por tão lindo, 
Pois mal lhe vai uma onda, 
Quando outra já lhe tem vindo.
Sua testa com seus arcos 
Do Turco Império castigo 
Vencido tem Solimão, 
Meias Luas tem vencido. 

Dormidos seus olhos são, 
Porém Planetas tão ricos 
Nunca já foram sonhados, 
Bem que sempre são dormidos. 

A dormir creio se lançam 
Por ter de mortais, e vivos 
Tão boa fama cobrado, 
Nome tão grande adquirido. 

Entre seus raios se mostra 
O grande nariz bornido, 
Por final que entre seus raios 
Prova o nariz de aquilino. 

Nas taças de suas faces 
Feitas do metal mais limpo, 
Como certos Reverendos, 
Mistura o branco com o tinto. 

As perlas dos dentes alvos, 
Os rubins dos beiços finos 
Tem desdentado o marfim, 
E a cor mais viva comido.
O passadiço da voz 
Nem é neve, nem é vidro, 
Nem mármore, nem marfim, 
Nem cristal, mas passadiço. 

Na maior força de Julho 
Creio que treme de frio, 
Pois tem como neve as mãos 
E os pés como neve frios. 

Que nelas há dois contrários 
Os meus olhos mo têm dito, 
Pois sendo uma fermosura 
São mais pequenas que os chispos. 

No maior rigor do Inverno, 
Na maior calma de Estio, 
Nem tem frio, nem tem calma, 
Nem tem calma, nem tem frio. 

Porque de Inverno, e Verão 
Sempre Primavera há sido, 
Pois sempre veste de Abril, 
E de Maio traz vestido. 

Este é de Márcia o retrato, 
E dirá quem o tem visto, 
Que com ela o seu retrato 
Se parece todo escrito. 

Mas se em coisa alguma erro 
Das que até aqui tenho dito, 
À vista do tal retrato 
Me retrato, e me desdigo. 


Jerónimo Baía
(c. 1620/30-1688)
in 'Fénix'

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

"Fogo do Céu" - Poema de Fausto Guedes Teixeira


Abraham Solomon, First Class: The Meeting ... and at First Meeting Loved, 1854



Fogo do Céu


O que mais amo nesta criatura
E que apaixonadamente me traz
Não é a sua grande formosura,
Mas a paixão de que a julguei capaz.

Com tanta duração como ternura
E tão fiel como o supus tenaz,
Dar-me-ia esse amor toda a ventura
Em que hoje creio e não achei p’ra trás.

Quando consigo por acaso vê-la
Vendo os seus braços, lembro o seu abraço.
Vendo-lhe a boca, sonho os beijos dela.

E, enquanto a vida só prazeres segreda,
Seu lindo corpo some-se no espaço
Tomando a forma duma labareda.


(1871 – 1940)


domingo, 1 de janeiro de 2017

"Ao Menino Deus em Metáfora de Doce" - Poema de Jerónimo Baía


Lorenzo Lotto (c.1480 –1556/57), The Adoration of the Child, c. 1508


Ao Menino Deus em Metáfora de Doce

ROMANCE 


– Quem quer fruta doce?
– Mostre lá! Que é isso?
– É doce coberto;
É manjar divino.

– Vejamos o doce,
E, depois que o virmos,
Compraremos todo,
Se for todo rico.

– Venha ao portal logo:
Verá que não minto,
Pois de várias sortes
É doce infinito.

Desculpa, minha alma.
– Mas ah! que diviso?
Envolto em mantilhas,
Um infante lindo!

– Pois de que se admira,
Quando este Menino
É doce coberto,
É manjar divino?

– Diga o como é doce,
Que ignoro o prodígio.
– Não sabe o mistério?
Ora vá ouvindo:

Muito antes de Santa Ana
Teve este doce princípio,
Porque já do Salvador
Se davam muitos indícios.

Mas na Anunciada dizem
Que houve mais expresso aviso,
E logo na Encarnação
Se entrou por modo divino.

Esteve pois na Esperança
Muitos tempos escondido.
Saiu da Madre de Deus,
Depois às Claras foi visto.

Fazem dele estimação
As freiras com tal capricho,
Que apuram para este doce
Todos os cinco sentidos.

Afirmam que no Calvário
Terá seu termo finito,
Sendo que no Sacramento
Há de ter novo artifício.

Que seja doce este Infante,
A razão o está pedindo,
Porque é certo que é morgado,
Sendo unigénito Filho!

Exposto ao rigor do tempo,
Quando tirita nuzinho,
Um caramelo parece
Pelo branco e pelo frio.

Tal doce é, que porque farte
Ao pecador mais faminto,
Será de pão com espécies,
Substancial doce divino.

É manjar tão soberano,
Regalo tão peregrino,
Que os espíritos levanta,
Tornando aos mortos vivos.

Tão delicioso bocado
Será de gosto infinito,
Manjar real, verdadeiro,
Manjar branco parecido!

Que é manjar dos Anjos, dizem
Talentos muito fidedignos,
Por ser pão-de-ló, que aos Anjos
Foi em figura oferecido.


in Fénix Renascida


Fénix Renascida ou Obras Poéticas dos Melhores Engenhos Portugueses é o título do mais significativo cancioneiro seiscentista, publicado sob a direção de Matias Pereira da Silva em cinco volumes, de 1716 a 1728. Nesta coletânea, coexistem, sem qualquer sistematização, poesias líricas, heróicas, satíricas e burlescas, religiosas e outras puramente narrativas. Muitas das composições são anónimas.
O título pomposo deixa transparecer as características da temática e do estilo barroco que enforma as composições: o petrarquismo, o erotismo muito realista, a caducidade da vida, temas fúteis (poesia de entretenimento), a sátira aos vícios da sociedade, motivos religiosos e históricos, todos estes temas tratados de forma ornamental, com o uso de metáforas, hipérboles, perífrases, troca de palavras, ou de forma engenhosa com o desdobramento de um conceito em várias ideias por meio de raciocínios artificiosos, até dar um imprevisto paradoxo. Esta característica justifica a designação aposta a este cancioneiro de Seiscentos - cancioneiro barroco.
Dos muitos autores que aí estão representados, destacam-se Francisco Rodrigues Lobo, D. Francisco Manuel de Melo, Jerónimo Baía, Dr. António Barbosa Bacelar e Francisco de Vasconcelos. (Daqui)


Pieter Bruegel, the Elder (c. 1525 –1569), Adoration of the Magi


"A vida é uma criança que é preciso embalar até que adormeça."