quinta-feira, 31 de agosto de 2017

"Liberdade" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen





Liberdade


Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.



Autorretrato de Edgar Degas, 1854, Museu de Orsay


Edgar Degas foi um pintor francês, nascido em 1834 e falecido em 1917, ligado à geração do Impressionismo, mas que dificilmente pode ser considerado um verdadeiro impressionista. Assimilou a lição das obras dos velhos mestres, nas viagens por Itália, e conservou a admiração por Ingres, no traço e no estilo linear. 
Degas apreciava tudo o que era fora do comum. Chocava por uma paleta discordante, nos dizeres do público da época, em que era capaz de colocar lado a lado um violeta intenso e um verde ácido. A escolha dos temas era frequentemente pouco convencional.


Edgar Degas, O Absinto, também conhecida como O Copo de Absinto
ou No Café, 1875


Influenciado pela estética naturalista, retratou a vida parisiense, nos seus vícios, como em O Absinto (1876-77), e costumes. A frequência da vida noturna de Paris, e principalmente da Ópera, levou-o a multiplicar os ângulos de visão e os enquadramentos insólitos, que mais tarde o cinema e a fotografia iriam banalizar.


Edgar Degas, Prima Ballerina ou A Primeira Bailarina, c. 1876,


Em A Bailarina (1876), Degas exprime a beleza fugidia da dança, e neste aspeto pode considerar-se que está a ser "impressionista". Embora a bailarina se encontre completamente à direita, a composição é assimetricamente equilibrada pela mancha escura do que será o chefe do corpo de baile.


Edgar Degas, Madame Camus with a Fan, 1869-1870


Tradicionalmente, a arte ocidental respeita a unidade de composição. As formas surgem ligadas a outras formas, criando um movimento ou um conjunto de linhas no espaço. A arte oriental, pelo contrário, baseia essa relação no acentuar de certos grafismos ou cores e levando em linha de conta o espaço "entre", o vazio. Degas não deixou de tomar conhecimento da exposição de gravuras japonesas realizada em Paris em 1860, assimilando o delicado traço das composições. Os objetos deixam de ser olhados como objetos em si, a retratar fielmente, mas são representados pelas qualidades pictóricas que podem emprestar ao conjunto do quadro.


Edgar Degas, A banheira, 1886, Museu de Orsay


Nas numerosas versões de Depois do Banho, é desenvolvido o tema de mulheres fazendo a toilette. O pintor experimenta vários processos técnicos: a aguarela, o pastel, a água-forte, a litografia, o monotipo. 
No súltimos anos, devido às dificuldades de visão, trabalhou quase exclusivamente com cera, pastel e barro. A sua paleta ganhou mais força e luminosidade, enquanto as formas se simplificaram.  (Daqui)


Edgar Degas, Depois do banho, 1887

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

"Por que mentias?" - Poema de Álvares de Azevedo


Joseph Fagnani (Italian, 1819–1873),  Polyhymnia, 1869



Por que mentias?


Por que mentias leviana e bela?
Se minha face pálida sentias
Queimada pela febre, e minha vida
Tu vias desmaiar, por que mentias?

Acordei da ilusão, a sós morrendo
Sinto na mocidade as agonias.
Por tua causa desespero e morro…
Leviana sem dó, por que mentias?

Sabe Deus se te amei! Sabem as noites
Essa dor que alentei, que tu nutrias!
Sabe esse pobre coração que treme
Que a esperança perdeu por que mentias!

Vê minha palidez – a febre lenta
Esse fogo das pálpebras sombrias…
Pousa a mão no meu peito!
Eu morro! Eu morro!
Leviana sem dó, por que mentias?




terça-feira, 29 de agosto de 2017

"Porco trágico I - Poema de Alberto Pimenta


James Tissot, La Partie carrée, 1870


porco trágico I


conheço um poeta
que diz que não sabe se a fome dos outros
é fome de comer
ou se é só fome de sobremesa alheia.

a mim o que me espanta
não é a sua ignorância:
pois estou habituado a que os poetas saibam muito
de si
e pouco ou nada dos outros.

o que me espanta
é a distinção que ele faz:
como se a fome da sobremesa alheia
não fosse
fome de comer
também.


de Obra Quase Incompleta, Fenda, 1990

"Thamar y Amnón" - Poema de Federico Garcia Lorca


Guercino (1591-1666), Amnon  and Tamar, 1649-1650



Thamar y Amnón



La luna gira en el cielo
sobre las tierras sin agua
mientras el verano siembra
rumores de tigre y llama.
Por encima de los techos
nervios de metal sonaban.
Aire rizado venía
con los balidos de lana.
La tierra se ofrece llena
de heridas cicatrizadas,
o estremecida de agudos
cauterios de luces blancas.

Thamar estaba soñando
pájaros en su garganta,
al son de panderos fríos
y cítaras enlunadas.
Su desnudo en el alero,
agudo norte de palma,
pide copos a su vientre
y granizo a sus espaldas.
Thamar estaba cantando
desnuda por la terraza.
Alrededor de sus pies,
cinco palomas heladas.
Amnón delgado y concreto,
en la torre la miraba,
llenas las ingles de espuma
y oscilaciones la barba.
Su desnudo iluminado
se tendía en la terraza,
con un rumor entre dientes
de flecha recién clavada.
Amnón estaba mirando
la luna redonda y baja,
y vio en la luna los pechos
durísimos de su hermana.

Amnón a las tres y media
se tendió sobre la cama.
Toda la alcoba sufría
con sus ojos llenos de alas.
La luz maciza, sepulta
pueblos en la arena parda,
o descubre transitorio
coral de rosas y dalias.
Linfa de pozo oprimida
brota silencio en las jarras.
En el musgo de los troncos
la cobra tendida canta.
Amnón gime por la tela
fresquísima de la cama.
Yedra del escalofrío
cubre su carne quemada.
Thamar entró silenciosa
en la alcoba silenciada,
color de vena y Danubio,
turbia de huellas lejanas.
—Thamar, bórrame los ojos
con tu fija madrugada.
Mis hilos de sangre tejen
volantes sobre tu falda.
—Déjame tranquila, hermano.
Son tus besos en mi espalda
avispas y vientecillos
en doble enjambre de flautas.
—Thamar, en tus pechos altos
hay dos peces que me llaman
y en las yemas de tus dedos
rumor de rosa encerrada.

Los cien caballos del rey
en el patio relinchaban.
Sol en cubos resistía
la delgadez de la parra.
Ya la coge del cabello,
ya la camisa le rasga.
Corales tibios dibujan
arroyos en rubio mapa.

¡Oh, qué gritos se sentían
por encima de las casas!
Qué espesura de puñales
y túnicas desgarradas.
Por las escaleras tristes
esclavos suben y bajan.
Émbolos y muslos juegan
bajo las nubes paradas.
Alrededor de Thamar
gritan vírgenes gitanas
y otras recogen las gotas
de su flor martirizada.
Paños blancos, enrojecen
en las alcobas cerradas.
Rumores de tibia aurora
pámpanos y peces cambian.

Violador enfurecido,
Amnón huye con su jaca.
Negros le dirigen flechas
en los muros y atalayas.
Y cuando los cuatro cascos
eran cuatro resonancias,
David con unas tijeras
cortó las cuerdas del arpa.



domingo, 27 de agosto de 2017

"Perdida" - Poema de Camilo Castelo Branco


Charles Courtney Curran, Peonies, 1915



Perdida


Veloz, qual flecha impelida
O meu cavalo corria…
Eu tinha a febre da raiva,
Abrasava-me a agonia,
E o cavalo generoso
O meu ódio concebia.

Os precipícios transpunha
Sem as rédeas sofrear!
Longe, ao longe eu ansiava
Este horizonte alargar;
Procurava mundos novos,
Faltava-me ali o ar.

E, de relance, deviso 
Linda flor em ermo Val,
Mal aberta, e aljofrada
Pelo orvalho matinal,
Reacendendo solitária
Seu perfume virginal.

Nenhum homem lhe tocara,
Nem talvez a vira ali!
Tive orgulho de encontrá-la,
Que outra mais bela não vi.
Mas o ímpeto indomável
Do cavalo não venci.

E perdi-a! Não me lembro
Onde vi tão linda flor!
Sei que lá me fica a alma 
Como um feudo pago à dor.
Outros lábios viral dar-lhe
Férvido beijo d’amor.

1850

 (1825-1895), 
in Ao Anoitecer da Vida


quarta-feira, 23 de agosto de 2017

"Fim do Dia" - Poema de Luís Filipe Castro Mendes


Olof Arborelius (Swedish, 1842–1915), Landscape in the Southern Alps



Fim do Dia


Aquieta-se o silêncio na folhagem, 
que em árvores teceu amor antigo; 
sobressalto transposto da viagem 
que o dia rumoroso fez consigo. 

O coração, que é sombra na paisagem, 
dá às palavras vãs outro sentido; 
e é murmúrio desfeito na aragem, 
que do entardecer recolhe abrigo. 

Ares assim se fazem de uma luz 
que torna como baço o sol poente; 
e o coração à estrema se reduz, 
como o dia se volve mais ausente. 

Recolhem-se as palavras no vagar 
que dia nem fulgor nos podem dar. 


in "Viagem de Inverno" 


domingo, 20 de agosto de 2017

"Improviso" - Poema de Francisco Carvalho


Moritz Müller (German, 1807-1865), In einer Dachauer Wirtsstube, 1855
 


Improviso


Nem só de chuva 
se tece a nuvem 
nem só de evento 
se inventa o vento. 

Nem só de fala 
se engendra o grito 
nem só de fome 
prospera o trigo. 

Nem só de raiva 
arde a metáfora 
nem só de enigmas 
se enfeita o nada. 

Nem só de parca 
o céu nos singra 
nem só de pão 
se morre à míngua 

Nem só de pégaso 
escapa o seio 
para essa concha 
partida ao meio. 


in 'As Verdes Léguas'


Moritz Müller (German, 1807-1865), Bauernhochzeit, 1861


"Deve respeitar-se o casamento enquanto é um purgatório,
e dissolvê-lo quando se tornar num inferno."


Erasmo de Roterdão
(1466-1536)

sábado, 19 de agosto de 2017

"Um ofício que fosse de intensidade e calma" - Poema de António Ramos Rosa


Émile Bernard (1868-1941), Buckwheat Harvesters at Pont Aven, 1888



Um ofício


Um ofício que fosse de intensidade e calma
e de um fulgor feliz
E que durasse com a densidade ardente e contemporâneo
de quem está no elemento aceso e é a estatura
da água num corpo de alegria
 E que fosse fundo o fervor de ser a metamorfose da matéria
que já não se separa da incessante busca
que se identifica com a concavidade originária
que nos faz andar e estar de pé
expostos sempre à única face do mundo
Que a palavra fosse sempre a travessia
de um espaço em que ela própria fosse aérea
do outro lado de nós e do outro lado de cá
tão idêntica a si que unisse o dizer e o ser
e já sem distância e não-distância nada a separasse
desse rosto que na travessia é o rosto do ar e de nós próprios


António Ramos Rosa, in "Poemas Inéditos"


Émile Bernard (1868-1941), Pink Street in Pont-Aven, 1892 
Private collection


O Silêncio não existe


O silêncio não existe porque é o constante rumor de uma inexistência. O que se ouve, para além do movimento da cidade, é o monótono murmúrio do nada. Apenas sombra de nada, quem nele procura um apelo ou uma resposta não os encontra ou encontra um sinal negativo. Nada diz esse murmúrio nulo, que é o eco inalterável do vazio do mundo, mas quem o ouve sente a radicalidade da sua negação como se a cada momento nos dissesse: Não há. 

António Ramos Rosa, in 'Relâmpago de Nada'


sexta-feira, 18 de agosto de 2017

"Povoamento" - Poema de Ruy Belo


Julio Romero de Torres, Retrato de una dama, 1925



Povoamento


No teu amor por mim há uma rua que começa 
Nem árvores nem casas existiam 
antes que tu tivesses palavras 
e todo eu fosse um coração para elas 
Invento-te e o céu azula-se sobre esta 
triste condição de ter de receber 
dos choupos onde cantam 
os impossíveis pássaros 
a nova primavera 
Tocam sinos e levantam voo 
todos os cuidados 
Ó meu amor nem minha mãe 
tinha assim um regaço 
como este dia tem 
E eu chego e sento-me ao lado 
da primavera 


Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"


Ruy Belo


Ruy Belo, doutorado em Direito Canónico pela Universidade de S. Tomás de Aquino, em Roma, e licenciado em Filologia Românica e em Direito pela Universidade de Lisboa, lecionou no ensino secundário e foi leitor de Português na Universidade de Madrid. Foi diretor literário de uma editora; chefe de redação da revista Rumo; adjunto do Diretor do Serviço de Escolha de Livros do Ministério da Educação Nacional; bolseiro de investigação da Fundação Calouste Gulbenkian; tradutor de numerosos autores franceses e colaborador em várias publicações periódicas. 
Vítima de um edema pulmonar, a sua morte precoce, em 1978, colheu de surpresa uma série de escritores que lhe dedicam, no mesmo ano, uma Homenagem a Ruy Belo.
Iniciada em 1961, mas mantendo-se, na confluência da poesia dos anos 50, equidistante quer de um dogmatismo neorrealista quer do excesso surrealista, mas incorporando aquisições dessas duas formas decomunicação estética, para António Ramos Rosa, "A poesia de Ruy Belo é uma incessante reflexão sobre o tempo e a morte e a incerta identidade do sujeito que em vão procura o lugar originário onde se encontraria o serna sua totalidade [...]. A incerteza e uma profunda frustração, muitas vezes impregnada de uma trágica ironia, dominam esta procura do lugar ontológico e da degradação existencial". (Incisões Oblíquas, Lisboa, 1987, p. 66). 
Abarcando a crítica irónica da realidade social e a denúncia das diversas problemáticas que equacionam o homem, desde a sua vivência espiritual e religiosa até ao envolvimento concreto e existencial, a poesia de Ruy Belo é uma "forma de intervenção, de compromisso, de luta por um mundo melhor [...] sem [...] o poeta pactuar com a demagogia, com o oportunismo que afinal representa não ver primordialmente na arte criação de beleza, construção de objetos tanto quanto possível belos em si mesmos" ("Nota do Autor" a País Possível, 1973). (Daqui)

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

"A Estrada Branca" - Poema de José Tolentino Mendonça

A Estrada Branca


Atravessei contigo a minuciosa tarde 
deste-me a tua mão, a vida parecia 
difícil de estabelecer acima do muro alto 

folhas tremiam 
ao invisível peso mais forte 

Podia morrer por uma só dessas coisas 
que trazemos sem que possam ser ditas: 
astros cruzam-se numa velocidade que apavora 
inamovíveis glaciares por fim se deslocam 
e na única forma que tem de acompanhar-te 
o meu coração bate 


in 'A Estrada Branca'


"Qualquer coisa de paz" - Poema de Fernando Echevarría


Frédéric Bazille, Vue de village, 1868, huile sur toile (130 × 89 cm),



Qualquer coisa de paz


Qualquer coisa de paz. Talvez somente 
a maneira de a luz a concentrar 
no volume, que a deixa, inteira, assente 
na gravidade interior de estar. 

Qualquer coisa de paz. Ou, simplesmente, 
uma ausência de si, quase lunar, 
que iluminasse o peso. E a corrente 
de estar por dentro do peso a gravitar. 

Ou planalto de vento. Milenária 
semeadura de meditação 
expondo à intempérie a sua área 

de esquecimento. Aonde a solidão, 
a pesar sobre si, quase que arruína 
a luz da fronte onde a atenção domina. 


Fernando Echevarría, in "Figuras"


quarta-feira, 16 de agosto de 2017

"Vida Sempre" - Poema de Casimiro de Brito


Vincent van Gogh, Velho Triste (No Portão da Eternidade), 1890


Vida Sempre


Entre a vida e a morte há apenas 
o simples fenómeno 
de uma subtil transformação. A morte 
não é morte da vida. 
A morte não é inação, inutilidade. 
A morte é apenas a face obscura, 
mínima, em gestação 
de uma viagem que não cessa de ser. Aventura 
prolongada 
desde o porão do tempo. Projetando-se 
nas naves inconcebíveis do futuro. 

A morte não é morte da vida: apenas 
novas formas de vida. Nova 
utilidade. Outro papel a desempenhar 
no palco velocíssimo do mundo. Novo ser-se (comércio 
do pó) e não se pertencer. 
Nova claridade, respiração, naufrágio 
na máquina incomparável do universo. 


in "Solidão Imperfeita"


terça-feira, 15 de agosto de 2017

"Tempo" - Poema de Maria Teresa Horta



Joseph Wopfner (Áustria, 1843-1927), Heuernte



Tempo


Num atropelo 
foram passando os anos

Simulando vagares de eternidade 
a burilar os sonhos 
que sonhamos e a acrescentar 
saudades à saudade

Num sobressalto 
fomos tomando o gosto

Às infiéis constelações 
das nossas rimas 
no rasto de anjos e paixões 
feitas de fulgores e neblinas

Num alvoroço 
foi-se ganhando o tempo

Tecendo o poeta verso a verso 
o corpo da poesia acalentada 
no excesso e no gosto do colher 
sedento a seduzir cada palavra

Num tumulto 
fomos iludindo o nada

Na partilha astuciosa do prazer 
numa grande vontade adivinhada 
escrever com a língua portuguesa 
dizendo do país poema e asa




segunda-feira, 14 de agosto de 2017

"Quando o meu amor vem ter comigo" - Poema de Edward Estlin Cummings


Charles Courtney Curran (1861-1942), Lady with a Bouquet (Snowballs), 1890



Quando o meu amor vem ter comigo


Quando o meu amor vem ter comigo é 
um pouco como música, um 
pouco mais como uma cor curvando-se (por exemplo 
laranja) 

contra o silêncio, ou a escuridão...

a vinda do meu amor emite 
um maravilhoso odor no meu pensamento, 

devias ver quando a encontro 
como a minha menor pulsação se torna menos. 
E então toda a beleza dela é um torno 

cujos quietos lábios me assassinam subitamente, 

mas do meu cadáver a ferramenta o sorriso dela faz algo 
subitamente luminoso e preciso 

— e então somos Eu e Ela... 

o que é isso que o realejo toca.


E. E. Cummings, in "livrodepoemas" 
Tradução de Cecília Rego Pinheiro


sábado, 12 de agosto de 2017

Martha Graham - A Dança Moderna


 

"A dança é a linguagem escondida da alma."



Martha Graham (11 de maio de 1894, Condado de Allegheny, Pensilvânia – 1 de abril de 1991, Nova Iorque) foi uma dançarina e coreógrafa estadunidense que revolucionou a história da Dança Moderna.
O impacto que a dança de Martha Graham causou nos palcos é frequentemente comparado à influência que Picasso teve para a pintura em seu tempo, ou Stravinsky na música, ou Frank Lloyd Wright na arquitetura. As suas contribuições transformaram essa forma de arte, revitalizando e difundindo a dança ao redor do mundo.
Na sua busca por uma forma de expressar-se mais honesta e livremente, ela fundou a Martha Graham Dance Company, uma das mais conceituadas e antigas companhias de dança nos Estados Unidos.
Como professora, Graham treinou e inspirou gerações de grandes bailarinos e coreógrafos. Entre seus discípulos estão Alvin Ailey, Twyla Tharp, Paul Taylor, Merce Cunningham e incontáveis outros atores e dançarinos.
Ela colaborou com alguns dos mais conceituados artistas de seu tempo, como o compositor Aaron Copland e o escultor Isamu Noguchi. Ela inventou uma nova linguagem de movimento, usada para revelar a paixão, a raiva e o êxtase comuns à experiência humana. Ela dançou e coreografou por mais de 70 anos, e durante esse tempo foi a primeira dançarina a se apresentar na Casa Branca, viajar para o estrangeiro como embaixadora cultural, e receber o maior prémio civil do EUA: a Medalha Presidencial da Liberdade.
Em sua vida, ela recebeu homenagens que vão desde a Chave da Cidade de Paris até a Ordem da Coroa Preciosa do Império Japonês. Ela disse: "Passei toda a minha vida com a dança e sendo uma bailarina. É a vida que permite usá-la de uma forma muito intensa. Às vezes não é agradável. Às vezes é terrível. Mas, apesar disso, é inevitável." (Daqui)




"A Dança é, na minha opinião, muito mais do que um exercício, um divertimento, um ornamento, um passatempo social; na verdade, é uma coisa até séria e, sob certo aspeto, mesmo, uma coisa sagrada. Cada era que compreendeu a importância do corpo humano, ou que, pelo menos, teve a noção sensorial de sua estrutura, de seus requisitos, de suas limitações e da combinação de genialidade que lhe são inerentes, cultivou, venerou a Dança."



A Tribute to Martha Graham


"Prova Documental" - Poema de Francisco Carvalho


James Tissot, Gentleman in a railway carriage, 1872



Prova Documental


Já assumi a solidão dos outros 
já provei do enigma insolúvel 
já calcei as botas do morto 
já tive segredo e foi de água abaixo. 

Já fugi ao encontro marcado 
já fui banido, já disse adeus 
já fui soldado, já fui rapsodo 
já tive inocência e foi de água abaixo. 

Já fui esperto, já fui afoito 
já puxei faca, já toquei pífaro 
já fui vaiado depois da briga 
já tive saudade e foi de água abaixo. 

Já fui árcade, já fui arcaico 
já fui pateta, já fui patético 
já perdi no jogo e na vida 
já tive amor e foi de água abaixo. 

Já tive pressa, já sentei praça 
já tive ouro, já tive prata 
já tive lenda, já tive fazenda 
já tive paz e foi de água abaixo. 

Já tive herdade, já fui deserdado 
já tive episódio, já tive epitáfio 
já levei o andor de Nosso Senhor 
já tive esperança e foi de água abaixo. 

Já tive mando, já corri mundo 
já fui a Roma e não quis ver o Papa 
já fui pra cama com Ana Bolena 
já tive infância e foi de água abaixo. 

Já fui Arlequim, já fui Pierrot 
já tive herança, já tive prosápia 
já tive estrela, já fui primogénito 
já tive cabelo e foi de água abaixo. 

Já fui feliz, já tive almofariz 
já fui a Belém, já comi vatapá 
já andei a cavalo no arco-íris 
já tive paisagem e foi de água abaixo. 

Já pesquei hipocampo de anzol 
já fui de trem ver o quebrar da barra 
já tive odalisca, já tive andaluza 
já tive memória e foi de água abaixo. 


Francisco Carvalho, in 'As Verdes Léguas'


sexta-feira, 11 de agosto de 2017

"Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça" - Poema de Álvaro de Campos


Émile Bernard (1868-1941), Boats at Pont-Aven, 1890, Private collection


Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça 


Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça
O sair de um lugar, o chegar a um lugar, conhecido ou desconhecido,
Perco, ao partir, ao chegar, e na linha móbil que os une,
A sensação de arrepio, o medo do novo, a náusea —
Aquela náusea que é o sentimento que sabe que o corpo tem a alma, 
Trinta dias de viagem, três dias de viagem, três horas de viagem — 
Sempre a opressão se infiltra no fundo do meu coração.


Álvaro de Campos, in "Poemas" 
Heterónimo de Fernando Pessoa


Émile Bernard, Breton Landscape, 1890-1891, Private collection 


"Descobri como é bom chegar quando se tem paciência. E para se chegar, onde quer que seja, aprendi que não é preciso dominar a força, mas a razão. É preciso, antes de mais nada, querer.

Amyr Klink in "Cem dias entre céu e mar‎" - Página 6, Publicado por Companhia das Letras, 1985 



Émile Bernard, The Harbor at Saint-Briac, 1887


"Hoje entendo bem meu pai. Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livro ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar do calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece, para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como imaginamos e não simplesmente como ele é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver... Il faut aller voir - é preciso ir ver! É preciso questionar o que se aprendeu. É preciso ir tocá-lo". (Daqui)

Amyr Klink, in "Mar sem fim: 360̊ ao redor da Antártica‎", Publicado por Companhia das Letras, 2000 


Émile BernardThe Cliffs of Pouldu, 1887, Private collection 


quinta-feira, 10 de agosto de 2017

"Na arca aberta o justo peca" - Poema de António Serrão de Castro


John Beaufain Irving (1825-1877), The Gossips, 1873


Na arca aberta o justo peca


Na arca aberta o justo peca, 
não em canastra fechada; 
mas vós da minha coitada 
fechada a fazeis caneca: 
vindes lá de seca e meca 
com tal pressa e furor tal, 
que fazeis, para meu mal, 
com mau termo e ruim modo, 
do meu queijo lama e lodo, 
e do meu pão cinza e sal. 

Quando as peras me levais, 
então para peras levo, 
pois vos pago o que não devo, 
e vós rindo vos ficais: 
se pera flamenga achais 
a comeis em português, 
e me fazeis d'essa vez, 
com estrondo e com arenga, 
os narizes à  flamenga 
muito mal em que me pez. 

Não vos escapam por pés 
minhas cerejas bicais, 
nem as ginjas garrafais, 
se as tenho alguma vez: 
porque mal, em que me pez, 
como cerejas se vão 
pelos pés à vossa mão 
e da vossa mão à minha, 
a cereja é marouvinha 
as ginjas galegas são. 

Passa hoje por lebre o gato, 
por perdiz passa o francelho 
por capão o galo velho, 
passa a gaivota por pato: 
por arraia passa o rato, 
mas é coisa que me encanta, 
que passando coisa tanta 
com mentira e com trapaça 
só a passa não me passa 
para baixo da garganta. 


António Serrão de Crasto, 
in 'Os ratos da Inquisição'

[António Serrão de Crasto  nasceu em 1610 e faleceu em 1684. Poeta cristão-novo, foi acusado pela Inquisição e preso durante dez anos. Escreveu na prisão a obra 'Os ratos da Inquisição', publicada por Camilo Castelo Branco em 1883.]


John Beaufain Irving (1825-1877), The Latest News, 1873


"Do fanatismo à barbárie não há mais que um passo."