quinta-feira, 30 de novembro de 2017

"De amarelo" - Poema de Deborah Brennand


Sir Herbert James Gunn, Pauline in the Yellow Dress, 1944, oil on canvas



De amarelo


Hoje devo me vestir de amarelo:
espantar os olhos negros da solidão,
tal a luz do girassol de ouro dourado
que abre pétalas iluminando nuvens.

Quem saberá (nem ela mesma) o artifício
usado para enganá-la? Sonhos? Jardins?
Não digo. Hoje me visto de amarelo
e vou, nos ramos, entoar da ave o canto.

Quero espantar olhos de solidão
que vem das grutas e abandona montes
para comer a relva rubra do meu coração.
Mas hoje, de amarelo, espantarei a fera

Fugindo, à procura de outra vítima:
Quem sabe, a mata?


em "Poesia reunida", 2007


segunda-feira, 27 de novembro de 2017

"A Ponte de Ferro" - Poema de Yves Bonnefoy


Willem Koekkoek (1839 – 1885), A Morning Walk by a Dutch Canal


A Ponte de Ferro


Existe ainda por certo ao fim de uma longa rua 
Onde andava eu criança um pântano estagnado 
Retângulo pesado de morte ao céu negro. 

Desde então a poesia 
Separou de outras águas suas águas, 
Beleza alguma, ou cor a vão reter, 
Por ferro ela angustia-se e por noite. 

Nutre um longo 
Pesar de margem morta, uma ponte de ferro 
Lançada à outra margem mais noturna ainda 
É sua só memória e só real amor. 


Tradução de Mário Laranjeira


Willem KoekkoekDutch street scene by a canal 
 
 
"A verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente."
 


domingo, 26 de novembro de 2017

"Prognóstico" - Poema de Ada Ciocci Curado




Prognóstico 


Poeta, 
creia, 
nem tudo está perdido, 
porque, 
felizmente, 
sobretudo o mais, 
o seu ideal, 
a muitos outros ainda comove, 
demove 
predomina.


In 'Acalanto'


August Macke
(Suor Angelica - 'Senza mamma',  de Giacomo Puccini, na voz de Maria Callas)


"É através dos outros que nos tornamos nós mesmos."


"A construção do corpo" - Poema de António Ramos Rosa

George Bellows (American, 1882-1925), Nude girl with a parrot, 1915



A construção do corpo


Sempre a tentativa nunca vã...
O equilíbrio musical dos instrumentos,
a paciência do teu pulso suave e certo,
o teu rosto mais largo e a calma força
que sobe e que modelas palmo a palmo,
rio que ascende como um tronco em plena sala.
A tua casa habita entre o silêncio e o dia,
Entre a calma e a luz o movimento é livre.

Acordar a leve chama veia a veia,
erguê-la do fundo e solta propagá-la
aos membros e ao ventre, até ao peito e às mãos 
e que a cabeça ascenda, cordial corola plena.
Todo o corpo é uma onda, uma coluna flexível.
Respiras lentamente. A terra inteira é viva.
E sentes o teu sangue harmonioso e livre 
correr ligado à água, ao ar, ao fogo lúcido.

No interior centro cálido abre-se a flor de luz,
rigor suave e óleo, música de músculos, roda
lenta girando das ancas ao busto ondeado
e cada vez mais ampla a onda livre ondula
a todo o corpo uno, num respirar de vela.
Sobre a toalha de água, à luz de um sol real,
dança e respira, respira e dança a vida,
o seu corpo é um barco que o próprio mar modela. 


in “A construção do corpo”, 1969


sábado, 25 de novembro de 2017

"Secretamente" - Poema de Virgínia Schall


Jean-Baptiste Greuze (French, 1725 –1805), The White Hat, 1780


Secretamente 


Seus olhos estão perigosamente dentro
de mim
aqui fizeram morada
e estão como Deus
em toda parte
se interpondo
entre a paisagem mais próxima
entre a fresta de luz e a imagem
tangenciando meu olhar
que não sabe olhar puro
que se trai a cada segundo.

Seus olhos estão perigosamente pousados
sobre mim
como borboleta em flor
cobrindo minha pele em ternura
suaves como seda
a farfalhar sobre os poros
e os pelos.
Luzes que incendeiam
em sublime música
meu corpo aceso em sede
Sombras sobre minha noite
embalam meu sono
devassando meus sonhos
onde secretamente me assombram
estando fora e sendo dentro
espelhos de amor intenso
e imenso.

Nossos olhos estão perigosamente
em comunhão
a despeito da separação
que a vida nos impõe.
E nossas vidas
sob risco
entre sermos felizes
ou tristes
e nossos destinos
por um triz
entre sucessos
e desatinos.
Secretamente
espreitamos-nos
como caminhos
à beira
de atraentes abismos.




Jean-Baptiste Greuze, Young girl leaning on the neck of a horse


"A necessidade de procurar a verdadeira felicidade é o fundamento da nossa liberdade."

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

"Definição do Amor" - Soneto de Lope de Vega


Federico Andreotti (1847 – 1930), An Afternoon Tea


Definição do Amor 


Desmaiar-se, atrever-se, estar furioso,
áspero, terno, liberal, esquivo,
alentado, mortal, defunto, vivo,
leal, traidor, covarde e valoroso;

não ver, fora do bem, centro e repouso,
mostrar-se alegre, triste, humilde, altivo,
enfadado, valente, fugitivo,
satisfeito, ofendido, receoso;

furtar o rosto ao claro desengano,
beber veneno qual licor suave,
esquecer o proveito, amar o dano;

acreditar que o céu no inferno cabe,
doar sua vida e alma a um desengano,
isto é amor; quem o provou bem sabe.


(1562-1635)


Federico AndreottiYoung Couple 
(also known as Young Couple in a Magnificent Rococo Interior) 
 
 
"O amor é cego, por isso os namorados nunca veem as tolices que praticam." 
 
(William Shakespeare)

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

"Ah! Os Relógios" - Poema de Mário Quintana


David Burliuk, The time, 1910


Ah! Os Relógios


Amigos, não consultem os relógios 
quando um dia eu me for de vossas vidas 
em seus fúteis problemas tão perdidas 
que até parecem mais uns necrológios... 

Porque o tempo é uma invenção da morte: 
não o conhece a vida - a verdadeira - 
em que basta um momento de poesia 
para nos dar a eternidade inteira. 

Inteira, sim, porque essa vida eterna 
somente por si mesma é dividida: 
não cabe, a cada qual, uma porção. 

E os anjos entreolham-se espantados 
quando alguém - ao voltar a si da vida - 
acaso lhes indaga que horas são... 


Mário Quintana, 
in 'A Cor do Invisível' 


domingo, 12 de novembro de 2017

"Colhe o dia, porque és ele" - Poema de Ricardo Reis


Emil Nolde (1867-1956), Summer Afternoon, 1903



Colhe o dia, porque és ele


Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Porque tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.


28-8-1933

Odes de Ricardo Reis
Heterónimo de Fernando Pessoa


Emil Nolde, Sommerwolken (Summer clouds), 1913, óleo sobre lienzo, 73 x 88 cm, 
Museo Thyssen-Bornemisza, Madrid


"Para vermos o azul, olhamos para o céu. A Terra é azul para quem a olha do céu. Azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul." - Clarice Lispector

sábado, 11 de novembro de 2017

"A Dança e a Alma" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Hans Thoma, Eight dancing women with bird bodies, 1886 



A Dança e a Alma


A dança? Não é movimento,
súbito gesto musical.
É concentração, num momento,
da humana graça natural.

No solo não, no éter pairamos,
nele amaríamos ficar.
A dança – não vento nos ramos:
seiva, força, perene estar.

Um estar entre céu e chão,
novo domínio conquistado,
onde busque nossa paixão
libertar-se por todo lado…

Onde a alma possa descrever
suas mais divinas parábolas
sem fugir à forma do ser,
por sobre o mistério das fábulas. 




quarta-feira, 1 de novembro de 2017

"Esta dor que me faz bem" - Poema de Fernanda de Castro


William J. Whittemore (American, 1860-1955), Portrait of a Woman in Pearls.



Esta dor que me faz bem


As coisas falam comigo 
uma linguagem secreta 
que é minha, de mais ninguém. 
Quem sente este cheiro antigo, 
o cheiro da mala preta, 
que era tua, minha mãe? 

Este cheiro de além-vida 
e de indizível tristeza, 
do tempo morto, esquecido... 
Tão desbotada e puída 
aquela fita escocesa 
que enfeitava o teu vestido. 

Fala comigo e conversa, 
na linguagem que eu entendo, 
a tua velha gaveta, 
a vida nela dispersa 
chega à cama onde me estendo 
num perfume de violeta. 

Vejo as tuas jóias falsas 
que usavas todos os dias, 
do princípio ao fim do ano, 
e ainda oiço as tuas valsas, 
minha mãe, e as melodias 
que cantavas ao piano. 

Vejo brancos, decotados, 
os teus sapatos de baile, 
um broche em forma de lira, 
saia aos folhos engomados 
e sobre o vestido um xaile, 
um xaile de Caxemira. 

Quantas voltas deu na vida 
este álbum de retratos, 
de veludo cor de tília? 
Gente outrora conhecida, 
quem lhe deu tantos maus tratos? 
Serão todos da família? 

Ai, vou fechar na gaveta 
a lembrança dolorosa 
dos teus laços de cetim, 
dos teus ramos de violeta, 
do leque de seda rosa 
com varetas de marfim. 

As coisas falam comigo 
numa linguagem secreta, 
que é minha, de mais ninguém. 
Quero esquecer, não consigo. 
Vou guardar na mala preta 
esta dor que me faz bem. 


 in "E Eu, Saudosa, Saudosa"

"Romance" - Poema de Afonso Lopes Vieira


Giacomo Balla, Voo das Andorinhas, 1913, Têmpera sobre papel


Romance


Por noite velha, truz truz,
Bateram à minha porta.
— De onde vens, ó minha alma?
— Venho morta, quase morta.

Já eu mal a conhecia,
De tão mudada que vinha;
Trazia todas quebradas
Suas asas de andorinha.

Mandei-lhe fazer a ceia,
Do melhor manjar que havia.
— De onde vens, ó minha alma,
Que já mal te conhecia?

Mas a minha alma, calada,
Olhava e eu não respondia;
E nos seus formosos olhos
Quantas tristezas havia!

Mandei-lhe fazer a cama
Da melhor roupa que tinha
«Por cima damasco roxo
Por baixo cambraia fina».

— Dorme, dorme ó minha alma,
Dorme e, para te embalar,
A boca me está cantando
Com vontade de chorar.
 Ilhas de Bruma, 1917


Umberto Boccioni, Estados de espírito (estudo): aqueles que ficam, 1911. Óleo sobre tela,
 Museu de Arte Moderna de Nova York.


Umberto Boccioni, Estados de Alma III - Aqueles que permanecem, 1911, MoMA, Nova York


"A vida é o pouco que nos sobra da morte."