sexta-feira, 23 de março de 2018

"Riso e pranto" - Poema de Augusto de Lima


Albert Edelfelt (Finnish-Swedish painter, 1854-1905), Sorrow, 1894



Riso e pranto


Duas frações o grande todo humano
encerra: uma que ri, outra que chora.
Dúplice monstro, contrastando Jano,
tem numa face - a noite e noutra - a aurora.

Mas em seu seio eternamente mora,
como o pólipo no profundo oceano,
a dor que o riso mentiroso inflora,
a mesma dor que verte o pranto insano.

Basta que riso ou lágrima ressume
da contração de um músculo irritado,
temos amor, pesar, ódio ou ciúme.

Nem sempre o riso é uma expressão de agrado,
e às vezes quem mais chora se presume
feliz, por parecer mais desgraçado.


 em "Símbolos", 1892


quarta-feira, 14 de março de 2018

"O Vento" - Poema de A. M. Pires Cabral


José Júlio Andrade dos Santos (1916 - 1963), Paisagem,  1958



O Vento


É fácil dizer que o vento
tem gatos na voz
enfurecidos. 

Que afaga e despenteia,
traz a chuva. 

Que levanta as telhas,
exercita na noite 
os nossos mais pesados 
pesadelos.

É fácil ser poeta
à custa do vento. 

Fingir que não sabemos
que o vento não é senão
o vazio que muda de lugar. 


in Arado, ed. Cotovia 


segunda-feira, 12 de março de 2018

"Poema da hora exata" - Anilda Leão


William Glackens (American realist painter, 1870 - 1938), Family Group, 1911



Poema da hora exata


Há de soar para nós, uma hora exata
uma hora feita de silêncios,
onde jamais serão permitidas
as interrogações e os porquês.
Há de cair, numa hora que há de vir,
sobre as nossas almas fatigadas,
esta paz interior, esta calmaria suave,
que não encontraremos nunca dentro do mundo.
Por entre as brumas do desconhecido,
nós abriremos os olhos extáticos,
como se saíssemos de um sonho
e entrássemos na realidade,
numa vida onde todos se entendam,
onde sejamos verdadeiramente irmãos.
Dentro do silêncio da Morte,
é que encontraremos a paz desejada,
numa hora para nós imprevisível,
quando as sombras da noite
caírem sobre as nossas figuras inúteis.


Anilda Leão, em "Chão de pedras",
 Maceió: Caetés, 1961.

domingo, 11 de março de 2018

"Filha" - Poema de Paula Glenadel


Harold Gilman (1876–1919), Mother and Child, 1918


Filha

                          para Luísa

A menina que, em sustos,
vejo crescer depressa,
que nutro com meus nervos
e que descubro falar, e ser,

me veio de um imemorial
naufrágio
em que perecemos eu e ele:
pequena pérola do pior.

Como o traço oblíquo de luz
riscado sobre uma tela
de nuvens branco-cinza,
figura, tornado agora visível,
o sutil equilíbrio instável
entre dois planos. 


 em "A vida espiralada". 
Rio de Janeiro: Editora Caetés, 1999.


Harold Gilman, Self-portrait, c. 1910
 
"Sejam quais forem os resultados com êxito ou não, 
o importante é que no final cada um possa dizer: fiz o que pude."
 

sábado, 10 de março de 2018

"Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira" - Poema de António Ramos Rosa


George Bellows (American, 1882 –1925), The Fisherman, 1917



Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira


Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira
com os contornos duros das consoantes
com a clara música das vogais
Por isso devemos lê-lo ao nível dos seus sons
e apreendê-lo para além do seu sentido
como se ele fosse um fluente felino verde ou com a cor do fogo
O que de vislumbre em vislumbre iremos compreendendo
será a ágil indolência de sucessivas aberturas
em que veremos as labaredas de um outro sentido
tão selvagem e tão preciosamente puro que anulará o sentido das palavras
É assim que lemos não as palavras já formadas 
mas o seu nascimento vibrante que nas sílabas circula
ao nível físico do seu fluir oceânico


em "Deambulações Oblíquas", 2001.