quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

"Poça de água" - Poema de Wisława Szymborska

                                                                                                     
Charles Courtney Curran, Children Fishing, 1897, Private collection


Poça de água



Recordo bem este medo da infância.
Evitava as poças, sobretudo as novas, após a chuva.
Afinal, uma delas poderia não ter fundo,
ainda que parecesse igual às outras.

Ponho o pé e, de súbito, afundar-me-ei,
voando para baixo,
cada vez mais baixo,
rumo às nuvens refletidas
ou talvez mais além.

Depois a poça secar-se-á,
fechar-se-á por cima de mim,
e eu para sempre trancada — onde —
ficarei com um grito não repercutido à superfície.

Só mais tarde compreendi que
nem todas as más aventuras
cabem nas regras do mundo
e mesmo que o quisessem,
não poderiam acontecer.


Wislawa Szymborska



Charles Courtney Curran, Children by the Seashore, 1896,
 Private collection


"Todos os jardins da nossa infância são o jardim do paraíso. A pele suave desses tempos em que se corria com as pernas arqueadas soltando uma espécie de luz pela respiração. Ríamos a correr para os braços dos adultos numa entrega absoluta. Eles, os adultos, atiravam-nos ao ar e apanhavam-nos com mãos ásperas, e, talvez por isso, quando crescemos nunca mais deixamos de, esporadicamente, sonhar que voamos. E de sonhar com gigantes e anões, pois eram essas as nossas proporções."


Afonso Cruz,  O Pintor Debaixo do Lava-Loiças


Charles Courtney Curran, Date unknown


Tão pequena
E desbotada de chuva
A casa da infância!...



Paulo Franchetti,
Haicais

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

"As Mãos" - Poema de Orlando Neves





As Mãos 


Brandamente escrevem dos espasmos do sol.
Envelhecem do pulso ao cérebro, ao calor baço
de um revérbero no eixo dos ventos, usura
das máscaras que, sucessivamente, as transformam

de consciência em cal ou metal obscuro.
E já não é por si que a presença existe ou
subsiste o que separa. Destroem as sementes,
apodrecem como um sopro e não são remanso

na areia ou domadoras de chamas. Igualam-se
à água, para serem raiz do que se cala
e insinuam-se, para sempre, no pó da noite.

Um castelo de pele tomba. Deixam de ser
nomeadas ou nome. Escrevem, brandamente,
do termo da música o luto do silêncio. 


Orlando Neves, in "Decomposição - o Corpo"



terça-feira, 29 de janeiro de 2019

"Post Coitum Animal Triste " - Poema de Fernando Guimarães


Diego Velázquez (1599–1660), Vênus ao espelho, c. 1647–51, National Gallery, Londres



Post Coitum Animal Triste


Em ti o poema, o amplo tecido da água ou a forma
do segredo. Outrora conheceste a margem abandonada
do desejo, a sua extensão e principias a entregar
os vasos alongados para receberes as mãos das chuvas.

Apagaram-se junto dos teus olhos as praias, as árvores
que se ergueram um dia sobre as estradas romanas,
o vestígio dos últimos peregrinos, aves nuas
que já desceram, cansadas, pelo interior do teu peito.

Uma voz, no silêncio calmo das águas, esquece
a mentira das primeiras colheitas, onde os nossos gestos
perderam os sorrisos ou o orvalho que os cerca.

Serenamente, começaram a fechar-se os sonhos de Deus
no interior de novos frutos e, abandonado, fico
junto do teu corpo, onde principia a sombra deste poema.


Fernando Guimarães, in “Poesias Completas”


quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

"Chuva" - Poema de Ribeiro Couto


Childe Hassam (1859-1935, American Impressionist Painter), A Rainy Day in Boston, 1885,
óleo sobre tela - 66.4 x 121.9 cm - Toledo Museum of Art



Chuva


A chuva fina molha a paisagem lá fora.
O dia está cinzento e longo... Um longo dia!
Tem-se a vaga impressão de que o dia demora...
E a chuva fina continua, fina e fria,
Continua a cair pela tarde, lá fora.

Da saleta fechada em que estamos os dois,
Vê-se, pela vidraça, a paisagem cinzenta:
A chuva fina continua, fina e lenta...
E nós dois em silêncio, um silêncio que aumenta
se um de nós vai falar e recua depois.

Dentro de nós existe uma tarde mais fria...

Ah! Para que falar? Como é suave, branda,
O tormento de adivinhar — quem o faria? —
As palavras que estão dentro de nós chorando...

Somos como os rosais que, sob a chuva fria,
Estão lá fora no jardim se desfolhando.

Chove dentro de nós... Chove melancolia...


Ribeiro Couto

(1898-1963)


sábado, 19 de janeiro de 2019

"Eu cantarei de amor tão docemente" - Soneto de Luís de Camões


Felix Schlesinger, A Young Girl, Private collection



Eu cantarei de amor tão docemente


Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.


Luís de Camões 


Felix Schlesinger, The Spanish Guitar Player


"Quem ouve música, sente a sua solidão de repente povoada."

(Robert Browning)
 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

"Uma Flor" - Poema de Helder Moura Pereira



Marie Spartali Stillman, A Rose from Armida's Garden, 1894



Uma Flor


Descobre a flor que há
na rosa, as coisas
mais para lá do que é
visível. A serrilha
da fotografia magoa
as mãos, quando entrei
pentearam-me, fizeram
incidir o projetor, eu
não sabia que tudo ia
ficar para sempre
Depois repeti algumas
vezes: descobre a flor
que há na rosa, espera
que a adivinhem
sob as pétalas. Olho
a cegonha no álbum,
sorrio quando vejo
os cantos fixados, o nó
da gravata, a seleção
do melhor fundo.
Crescia a voz no quarto
dos sinais, crescia
o vento no quintal
da infância. As folhas
do eucalipto tapavam o ar
do minério, o petromax
dirigia a luz no túnel.
Cada vez mais para dentro
da terra, antes de cada
desabamento eu ouvia
a própria voz: descobre
a flor que há na rosa,
oferece apenas aparência.
Se ao nascer do dia
caminhas na superfície
da terra aguardas
que nada tenha mudado.
Surpresa de ver
o sol, o rosto de sobre quem
te deitas, os dedos
reconhecendo as formas.
Conhecem-te os gestos. Mas
só tu saberás a flor
que há na rosa.


Helder Moura Pereira
“Uma Flor” (p. 158)

Os Cem Melhores Poemas Portugueses dos Últimos Cem Anos,
José Mário Silva
(org.), Companhia das Letras, 1.ª Edição, Novembro 2017



 

"Não há amor como o primeiro, mesmo que esse primeiro seja o último."

Vergílio Ferreira, in Pensar, 1992


quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

"Meditação sob a chuva" - Poema de Anderson Braga Horta

Leonid Afremov, Rainy Kiss



Meditação sob a chuva


Estas águas banharam outras terras,
foram rios e lagos, foram mares,
nos céus flocos de espuma e depois chumbo,
relâmpagos, trovões e depois água.
E, no eterno girar do eterno ciclo,
o céu as verte sobre nós agora.
Como um jardim, uma árvore, uma ave,
a terra, a natureza, aqui, desnudo,
de suas bagas vou colhendo o sumo.
Possa, sob o seu signo, como outrora
e sempre, o estrume redimir-se em flores.
E eu possa, no bebê-las, compreender
a experiência milenar que bebo.
Vento, chuva, relâmpagos — matéria
contemporânea a todas as idades,
passageira de todas as viagens,
moradora de todas as paragens,
possamos compreender que, de ti feitos,
somos cosmopolitas por herança,
somos intemporais, se não na forma,
ao menos na substância.


Anderson Braga Horta,
In Marvário (1976)


sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

"Minha Senhora de Mim" - Poema de Maria Teresa Horta

Abel Manta, Retrato de Berta Mendes, 1934 



Minha Senhora de Mim


Comigo me desavim
minha senhora
de mim

sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

recusando o que é desfeito
no interior do meu peito


Maria Teresa Horta


 

“Gatos são criaturas gloriosas – que não podem, de modo algum ser subestimadas. 
Seus olhos são profundezas inexpugnáveis dos mistérios felinos.” 
 

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

"A morte não separa" - Texto de José Luís Nunes Martins





A morte não separa

 
Ninguém pode viver a minha vida por mim. Ninguém pode dar os meus passos, ver o que vejo, sentir as mesmas emoções ou pensar ideias iguais às minhas... ser é fazer a diferença.

A minha existência pode servir de modelo a outros, assim como posso tomar alguém como exemplo a seguir, mas não devemos deixar que o eu se perca, porque quando me confundir com outros perderei o meu maior valor: ser único. Amar não é anular ninguém, antes protegê-lo e promovê-lo, tal qual quer ser. O bem que é.

Não sou o que tenho, não sou o que faço. Sou apenas a marca que deixo... o que decido querer, a cada passo.

Quando nos morre alguém, perde-se a sua referência palpável. É o fim de todas as possibilidades da relação, nos termos em que a conhecemos. Mas, mais do que os seus sapatos – que outro qualquer pode usar – ficam os seus passos, ao lado de quem precisava da sua força, todos os que deu por amor... porque só o que é nobre fica. Tudo o mais é nada.

Porque o amor é a negação da morte, eis que se levanta a mais importante de todas as guerras, o visível contra o invisível, a dúvida contra a fé, o tempo contra a eternidade... cabe a cada um de nós escolher o que quer.

Quando alguém que me ama morre, fica. Contudo, depende de mim aceitar a sua presença no meu íntimo. Assumir a missão de ser um, pelos dois... mais livre do que nunca... mas é isso mesmo que quer quem nos ama de verdade: que sejamos independentes, autónomos e felizes!

Amar é estar sempre a sós com a pessoa que se ama, mesmo quando há uma enorme distância... no espaço e no tempo.

A morte não separa os que se amam, apenas aproxima e une, ainda mais, os que decidem continuar a amar-se.


 
  

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

"Ser criança" - Poema de Tatiana Belinky


Emile Claus (Belgian painter, 1849 –1924), The Little Sister, 1881 
 


Ser criança

 
Ser criança é dureza-
Todo mundo manda em mim-
Se pergunto o motivo,
Me respondem “porque sim”.

Isso é falta de respeito,
“Porque sim” não é resposta,
Atitude autoritária
Coisa que ninguém gosta!

Adulto deve explicar
Pra criança compreender
Esses “podes” e “não podes”,
Pra aceitar sem se ofender!

Criança exige carinho,
E sim! Consideração!
Criança é gente, é pessoa,
Não bicho de estimação!
 

Emile Claus, Children Eating Turnips, 1884, Private collection


"As crianças acham tudo em nada, os homens não acham nada em tudo."

(Giacomo Leopardi)


 Giacomo Leopardi (daqui) 


Escritor e filósofo italiano, Giacomo Leopardi nasceu a 29 de junho de 1798 em Recanati, nos então Estados da Igreja. O pai, um conde italiano excêntrico, sinistro e pálido, era tido com último homem a usar uma espada em Itália. Determinou que à criança só serviriam trajes negros, mostrando que a disciplina se deveria sobrepor aos enfeites de uma mãe, a quem entregou por sua vez o governo da casa.

Entregou o filho aos seis anos de idade aos ensinamentos de precetores que lhe ensinaram a mestria dos clássicos gregos e latinos. O pai, proprietário de uma biblioteca particular composta por cerca de vinte mil volumes, desafiava então o jovem Giacomo a fazer traduções, julgando ser este o melhor meio de o introduzir à erudição. Assim, aos dezasseis anos, já revelava autoridade suficiente para escrever um ensaio em que denunciava os erros dos autores clássicos. O seu primeiro livro, Saggio Sugli Errore Popolari Degli Antichi, embora escrito em 1815, permaneceu na posse do autor, e só veio a ser publicado nove anos após a sua morte.

Sabe-se que durante esta época Giacomo Leopardi foi vítima de um problema cerebrospinal e da cegueira progressiva de um olho. As suas deficiências físicas, provocadas ou por doença degenerativa, acidente, ou mazelas de duelo, fizeram com que se recatasse da companhia feminina.
Se os poemas que começou por escrever eram inflamados de patriotismo saudosista, queixumes com uma mão no peito e outra na testa, como All' Italia', publicado em 1819, a sua estadia em Roma por volta de 1823 aproximou-o dos círculos germânicos. 

Mudando-se para Bolonha em 1825, passou a trabalhar como professor particular, ao mesmo tempo que ia escrevendo obras que, embora continuando a manter a forma clássica, adotavam o conteúdo romântico alemão. Assim, Versi (1826) e Operette Morale (1827) refletem bem a transição no cunho do seu autor. Em 1830 partiu de Recanti para Florença mas, três anos depois optou definitivamente por Nápoles, onde escreveu Ginestra (1836).

Tido como o representante do Romantismo em Itália, Leopardi faleceu em Nápoles, vítima de um edema pulmonar, a 14 de junho de 1837. (Daqui)