terça-feira, 30 de dezembro de 2014

"Árvore" - Poema de Fernando Guimarães


Armando Viana, Natureza exuberante, 1952, óleo sobre tela 92 x 118 cm



Árvore


Conheço as suas raízes. É tudo o que vejo. 
Há um movimento que a percorre devagar. Não sei 
se ela existe. Imagino apenas como são os ramos, 
este odor mais secreto, as primeiras folhas 
aquecidas. Mas eu existo para ela. Sou 
a sua própria sombra, o espaço que fica à volta 
para que se torne maior. É assim que chega 
o que não passa de um pressentimento. Ela compreende 
este segredo. Estremece. Comigo procuro trazer 
só um pouco de terra. É a terra de que ela precisa. 


Fernando Guimarães, in 'Limites para uma Árvore'
 
 

Fernando Guimarães (Daqui)

Fernando de Oliveira Guimarães é um poeta, ensaísta e tradutor português, nascido a 3 de fevereiro de 1928, no Porto. 

Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas na Universidade de Coimbra, exerceu funções de docência no ensino secundário e de investigação no ensino superior. 

Assegurou colaboração crítica em jornais e revistas - como Árvore, Bandarra e Estrada Larga (onde publicou Poesia e Formalismo), entre outras -, sendo considerado, pelas suas obras ensaísticas e de teorização sobre as poéticas finisseculares, modernista, de vanguarda, presencista, neorrealista e do fim da modernidade, um dos mais especializados críticos de poesia da atualidade. 

Entre 1951 e 1958, co-dirigiu a revista Eros, na qual colaborariam Jorge Nemésio, José Manuel, José Bento, Fernando Echevarria, Vítor Matos e Sá e António José Maldonado, e onde publicou, além de produção teórica e ensaística, alguns dos poemas que viriam, em 1956, a integrar a sua obra de estreia poética, A Face Junto ao Vento.

A sua obra ensaística orienta-se para o estudo de questões teóricas ligadas à estética, e da evolução da poesia portuguesa nos últimos cem anos, a partir de grandes movimentos como o Simbolismo, o Saudosismo ou o Modernismo. Nestes dois domínios publicou: A Poesia da "Presença" e o Aparecimento do Neorrealismo, Linguagem e Ideologia, Simbolismo, Modernismo e Vanguardas e Os Problemas da Modernidade, entre outros. 

Na sua obra poética, reunida em Casa: o seu Desenho, Poesias Completas, A Analogia das Folhas e O Anel Débil, a temática amorosa e a consciência da morte, a reflexão sobre a poesia e sobre o carácter ontológico da linguagem, o reflexo da especulação filosófica heideggeriana e platónica, a tendência para o verso regular constituem algumas das características presentes em A Face Junto ao Vento, retomadas em obras poéticas posteriores.

Como tradutor, Fernando Guimarães trabalhou sobre obras de autores como Lord Byron, Dylan Thomas ou John Keats.

Recebeu, entre outros, o Prémio D. Dinis (1985), o Pen Clube (1988), o Prémio Luís Miguel Nava (2003) e o Grande Prémio de Poesia da APE pelo livro Na Voz de um Nome (2007). (Daqui)


"Carrego as estações comigo" - Poema de Carlos Felipe Moisés


Camille PissarroRoad to Versailles at Louveciennes, 1869



Carrego as estações comigo


Carrego as estações comigo
e tenho as mãos cansadas.
(No bolso esquerdo um riacho murmura.)
Ali, onde pequenas pedras se acumulam,
uma canção exala seu vapor,
depois se perde.

Jardins de primavera circulam no meu corpo,
um céu de ouro verte seu perfume
e um vento ignorado agita suas asas.
Pasto de segredos,
mescla de memória e desejo,
meu corpo caminha com a chuva
(carrego as estações comigo),
à procura do sonho de uma nuvem fria.

Tantas folhas trago nos braços
que um pássaro, solidário, se oferece
para carregar as estações comigo.
Do peito aberto os meus jardins se vão
e o pássaro me ajuda (memória
e desejo) a semear meu corpo.

Ali planto meus braços,
debaixo daquelas árvores meus olhos ficam,
os pés, roídos pela terra, penduro numa árvore
e o tronco multiplico em cem pedaços –
lá vai, junto com as pedras,
no bojo do riacho antigo.

E pois que carrego as estações comigo,
os lábios deixo além, no descampado,
e peço ao pássaro que pelos cabelos atire
o que sobrou de mim
àquele mar onde me espera a memória
(e o desejo) do tempo em que não soube
carregar as estações comigo.


in 'Círculo Imperfeito'


domingo, 28 de dezembro de 2014

"Solidão" - Poema de Francisco Bugalho

 

  O Sobreiro, 1905, pintura de D. Carlos I (1863-1908)
Fundação da Casa de Bragança 
 
 
Solidão

 
Vago aroma de esteva, ao mesmo tempo ardente e virgem,
E este murmúrio doce da folhagem,
São o falar do mato, na estiagem,
Segredando os mistérios da origem.

Calma profunda, doce, resignada...
A vida não é mais do que o viver
Da paisagem nostálgica e pasmada.

A solidão tem dedos de veludo,
De frementes afagos delicados.
— Bendita solidão, que beijas tudo,
Onde andarão meus sonhos desvairados?!...

Nestes montados,
Que purificação me invade a alma!
Como entra, em mim, toda a serenidade
Dos ermitões, orando na paisagem!

Nesta paisagem,
Calma, calma, calma,
Como a Eternidade.


Francisco Bugalho
in "Paisagem"
 
 
 
 Retrato do rei D. Carlos, 1902, por Roque Gameiro (1864 - 1935)  
 
[Aguarela representando o rei D. Carlos, de pé, a mais de meio corpo, voltado ligeiramente para a esquerda. Enverga o grande uniforme de Marechal General, tendo o capacete na mão direita, enquanto a esquerda assenta no punho da espada. Traz a tiracolo a banda das Três Ordens Militares portuguesas e ostenta condecorações. No segundo plano, à esquerda, pende um reposteiro carmesim apanhado em baixo, sobre o qual foram apostas as Armas de Portugal. À direita, surgem dois balaústres de uma varanda, por sobre a qual, e já no último plano, se vê o mar sulcado por dois navios. Esta aguarela está inserida numa moldura de casquinha dourada e envidraçada. Segundo o Livro do Tombo, a peça pertenceu sempre ao Palácio Nacional de Mafra. Foi colocada na Sala n.º 63, Sala D. Pedro V, Sala dos Instrumentos Musicais e Sala da Caça, onde se mantém.] (Daqui)


D. Carlos I, de seu nome completo Carlos Fernando Luís Maria Victor Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis José Simão de Bragança Sabóia Bourbon e Saxe-Coburgo-Gotha, (28 de Setembro de 1863 — 1 de Fevereiro de 1908) foi o penúltimo Rei de Portugal.

Nascido em Lisboa, era filho do rei Luís I de Portugal e da princesa Maria Pia de Saboia, tendo subido ao trono em 1889. Foi cognominado O Diplomata (devido às múltiplas visitas que fez a Madrid, Paris e Londres, retribuídas com as visitas a Lisboa dos reis Afonso XIII de Espanha, Eduardo VII do Reino Unido, do Kaiser Guilherme II da Alemanha e do presidente da República Francesa Émile Loubet), O Martirizado e O Mártir (em virtude de ter morrido assassinado), ou O Oceanógrafo (pela sua paixão pela oceanografia, partilhada com o pai e com o príncipe do Mónaco).
 
A trágica morte do penúltimo rei português num atentado no Terreiro do Paço, em 1 de Fevereiro de 1908, marcou o início do fim da monarquia portuguesa. O regicídio prenunciou a Proclamação da República, consumada dois anos depois. Mas a vida do monarca que afrontou a progressão do Republicanismo e o Ultimato britânico de 1890 foi também marcada pelas artes e ciências. (Daqui)
 

Praia de Cascais, 1096 - Aguarela de D. Carlos I

[Praia de Cascais é uma pintura a aguarela da autoria do pintor e rei português Carlos de Bragança e foi pintado em 1906. A pintura pertence ao Casa-Museu Anastácio Gonçalves de Lisboa.]
 
 

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

"O Amor não se Promete" - Texto de José Luís Nunes Martins



Ilustração de Carlos Ribeiro



O Amor não se Promete 

 
 Há uma distância fundamental entre as palavras e os gestos de cada homem. As palavras prometem mundos, os gestos constroem-nos. As palavras esclarecem pouco, os gestos definem quase tudo.

O amor é um projeto, uma construção que necessita de ser realizada a cada dia. Sem grandes discursos. Qualquer hora é tempo de amar. Se o amor é verdadeiro, não há tempos de descanso, porque o silêncio no coração dos que buscam lutar contra as trevas dos egoísmos é a paz mais profunda e o maior descanso... ainda que se cravem espinhos na carne, ainda que não sarem as feridas antigas, ainda que a esperança tenha pouco mais onde se apoiar do que nela própria.

Cada um de nós é aquilo que for capaz de ir construindo de firme e duradouro a cada dia por entre todas as tempestades da vida.

Há muito quem sonhe e passe o tempo a desejar o que não é... esperam e desesperam por algo que lhes há de chegar de fora... rejeitando quase tudo quanto são, quando, na verdade, é com o que temos e somos que devemos ser felizes, por pouco e por pior que seja... somos nós. Mas nós não somos quem somos só para nós mesmos. Eu sou quem sou, mas só o serei se for capaz de me encontrar com os outros. Ser humano é ser relacional. Ser é sempre ser com o outro. Ninguém se vê só a si quando se olha por um espelho. Ser é amar. Dar-se... sem grandes sonhos ou promessas, com pequenos gestos, na heroica coragem de acreditar que não são nem as palavras nem os desejos que nos devolvem ao céu.

Encarcerados nunca seremos autênticos, devemos pois libertar-nos de tudo quanto nos pesa, de forma especial das coisas materiais, romper com as teias dos sonhos que nos inebriam e incapacitam de sair de nós mesmos para o mundo, de criar mundo... sem esperar nada, a não ser conseguirmos chegar ao melhor de nós mesmos...

Este desprendimento não será prudente aos olhos do mundo, mas é essencial confiar e seguir adiante, até porque as coisas e as pessoas são o que são, independentemente da forma como os olhos do mundo as veem, sentem ou pensam...

Aos sonhos falta existirem de facto, realizarem-se, ou melhor, serem realizados por alguém. A existência é um dos mais belos e decisivos atributos para que algo se faça determinante da nossa felicidade. Por isso a realidade mais pobre é, ainda assim, mais bela que o sonho mais magnífico...

Quase todos os egoísmos têm nome de amor. Conscientes do que são, escondem-se. Normalmente juntam-se aos pares... fazem pouco, falam muito, prometem tudo.... entrelaçam as suas necessidades de ter mais, de estar melhor, sem cuidarem que cada homem é muito mais do que aquilo que tem ou do que forma como está... nós, humanos, não somos deste mundo... somos do lugar de onde chegámos quando nascemos e do lugar para onde havemos de ir depois da morte... um mundo de onde este faz parte, mas muito maior, muito melhor... muito mais profundo.

É pois importante procurar a vontade do outro, e encontrarmo-nos nela, sermos o melhor que ele pode receber e merecer...

Amar é arriscar tudo, sem garantia alguma. Apenas com a fé de que, no amor, nos cumprimos... Amar é desprender-se e perder-se... abrir-se e abandonar-se à vontade de ser feliz.

Só o amor permite que se cumpra a mais essencial de todas as promessas da existência: Uma vida com valor e verdade.

Quem ama não promete... dá.

José Luís Nunes Martins, in 'Amor, Silêncios e Tempestades'


sábado, 20 de dezembro de 2014

"Ó que Imenso Dissipar" - Poema de Lupe Cotrim Garaude


 Ron Hicks (Columbus, Ohio, b. 1965), American Impressionist painter



Ó que Imenso Dissipar 


Ó que imenso dissipar
por assim gostar de tudo.

Com o meu ser estendido,
tenso ao apelo do mundo,
pulsando seu movimento
vou erguendo esta prisão.

Os pés retidos, imóveis,
pelos choques de atração
com a alma paralisada
contendo tanta largueza
e aspetos de vastidão.

Por que ter tantos sentidos,
o sentimento tão apto
e o coração vulnerável?

Por que o sentir sem repouso
num sentir que é um rapto,
exausto de comunhão?

Uma pobreza qualquer,
pobreza em voz, em beleza,
em querer, em perceber,
uma pobreza qualquer
onde eu possa enriquecer.


 in 'Antologia Poética' 


Pintura de Ron Hicks


"Se compreendermos a nossa verdadeira natureza e soubermos viver em harmonia com as leis naturais, a sensação de bem-estar, de entusiasmo pela vida e a abundância material surgirão facilmente".

(Deepak Chopra

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

"Somos todos casos excepcionais" - Texto de Albert Camus


Vincent Desiderio, Exodus, 2013


Somos todos casos excepcionais 

 
«Somos todos casos excepcionais. Todos queremos apelar de qualquer coisa! Cada qual exige ser inocente, a todo o custo, mesmo que para isso seja preciso inculpar o género humano e o céu. Contentaremos mediocremente um homem, se lhe dermos parabéns pelos esforços graças aos quais se tornou inteligente ou generoso. Pelo contrário, ele rejubilará, se se admirar a sua generosidade natural. Inversamente, se dissermos a um criminoso que o seu crime nada tem com a sua natureza, nem com o seu carácter, mas com infelizes circunstâncias, ele ficar-nos-à violentamente reconhecido. Durante a defesa, escolherá mesmo este momento para chorar. No entanto, não há mérito nenhum em ser-se honesto, nem inteligente, de nascença! Como se não é certamente mais responsável em ser-se criminoso por natureza que em sê-lo devido às circunstâncias. Mas estes patifes querem a absolvição, isto é, a irresponsabilidade, e tiram, sem vergonha, justificações da natureza ou desculpas das circunstâncias, mesmo que sejam contraditórias. O essencial é que sejam inocentes, que as suas virtudes, pela graça do nascimento, não possam ser postas em dúvida, e que os seus crimes, nascidos de uma infelicidade passageira, nunca sejam senão provisórios. Já lhe disse, trata-se de escapar ao julgamento. Como é difícil escapar e melindroso fazer, ao mesmo tempo, com que se admire e desculpe a própria natureza, todos procuram ser ricos. Porquê? Já o perguntou a si mesmo? Por causa do poder, certamente. Mas sobretudo porque a riqueza nos livra do julgamento imediato, nos retira da turba do metropolitano para nos fechar numa carroçaria niquelada, nos isola em vastos parques guardados, em carruagens-cama, em camarotes de luxo. A riqueza, caro amigo, não é ainda a absolvição, mas a pena suspensa, sempre fácil de conseguir...»

Albert Camus, in 'A Queda'


Albert Camus


Albert Camus (Mondovi, 7 de novembro de 1913 — Villeblevin, 4 de janeiro de 1960) foi um escritor, romancista, ensaísta, dramaturgo e filósofo francês nascido na Argélia. Foi também jornalista militante engajado na Resistência Francesa e nas discussões morais do pós-guerra.

Na sua terra natal viveu sob o signo da guerra, fome e miséria, elementos que, aliados ao sol, formam alguns dos pilares que orientaram o desenvolvimento do pensamento do escritor franco-argelino. De pai francês e mãe de origem espanhola, cedo Camus conheceu o gosto amargo da morte. Seu pai morreu em 1914, na Batalha do Marne durante a Primeira Guerra Mundial. Sua mãe então foi obrigada a mudar-se para Argel, para a casa de sua avó materna, no famoso bairro operário de Belcourt, onde anos mais tarde, durante a guerra de descolonização da Argélia houve um massacre de árabes. 

O período de sua infância, apesar de extremamente pobre é marcada por uma felicidade ligada à natureza, que ele volta a narrar em O Avesso e o Direito, mas também em toda a sua obra. Na casa, moravam além do próprio Camus, seu irmão que era um pouco mais velho, sua mãe, sua avó e um tio um pouco surdo, que era tanoeiro (Tanoeiro ou toneleiro é um artesão dedicado ao fabrico de barris, pipas ou tonéis para embalar, conservar e transportar mercadorias, principalmente líquidos. Os barris podem ser feitos de madeira (carvalho, castanho, mogno, acácio ou eucalipto), profissão que Camus teria seguido se não fosse pelo apoio de um professor da escola primária Louis Germain, que viu naquele pequeno pied-noir um futuro promissor. A princípio, sua família não via com bons olhos o fato de Albert Camus seguir para a escola secundária, sendo pobre, e o próprio Camus diz que tomar essa decisão foi difícil para ele, pois sabia que a família precisava da renda do seu trabalho e, portanto, ele deveria ter uma profissão que logo trouxesse frutos - como a profissão do seu tio. No fundo, Camus também gostava do ambiente da oficina onde o tio trabalhava. Há um conto escrito por ele que tem como cenário a oficina, e no qual a camaradagem entre os trabalhadores é exaltada. 

Sua mãe trabalhava lavando roupa para fora, a fim de ajudar no sustento da casa. Durante o segundo grau, ele quase abandonou os estudos devido aos problemas financeiros da família. Foi neste ponto que um outro professor foi fundamental para que o ganhador do prémio Nobel de 1957 seguisse estudando e se graduasse em filosofia: Jean Grenier. Tanto Grenier quanto o velho mestre Germain serão lembrados, posteriormente, pelo escritor. 

Seu primeiro livro "O Avesso e o Direito" assim como "Bodas em Tipasa" foram publicados quando ele ainda residia na Argélia. Mas durante o tempo da ocupação além de trabalhar em jornais e editar o jornal clandestino, Camus se dedicou a outra de suas paixões: o Teatro. Ele já havia participado de um grupo de teatro ligado ao partido comunista quando ainda morava na Argélia, e ao sair do partido comunista montou um outro grupo que apresentava peças clássicas de teatro aos trabalhadores. 

Conhece Sartre em 1942 e tornam-se bons amigos no tempo de pós-guerra. Conheceram-se devido ao livro "O Estrangeiro" sobre o qual Sartre escreveu elogiosamente, dizendo que o autor seria uma pessoa que ele gostaria de conhecer. Um dia em uma festa em que os dois estavam, Camus se apresentou a Sartre, dizendo-se o autor do livro. A amizade durou até 1952, quando a publicação de "O Homem Revoltado" provocou um desentendimento público entre Sartre e Camus. 

Camus morreu em 1960 vítima de um acidente de automóvel. Em sua maleta estava contido o manuscrito de "O Primeiro Homem", um romance autobiográfico. Por uma ironia do destino, nas notas ao texto ele escreve que aquele romance deveria terminar inacabado. Ao receber a notícia da morte de seu filho, Catherine Hélène Camus apenas pode dizer: "Jovem demais." Coincidentemente ela também morreu no mesmo ano que seu filho: 1960.


Vincent Desiderio, Cockaigne, 1993-2003, Óleo sobre tela, 112 x 153 


"Qualquer um pode tomar o leme quando o mar está calmo."

(Públio Siro)

Públio Siro (85 a.C. - 43 a.C.) foi um escritor latino da Roma antiga. Era nativo na Síria e foi feito escravo e enviado para a Itália, mas graças ao seu talento, ganhou o favor de seu senhor, que o libertou e o educou.

sábado, 13 de dezembro de 2014

"A meias" - Poema de João Luís Barreto Guimarães


Ron Hicks, And Then They Exhaled, 2013


A meias


Bebo o meu café enquanto bebes
do meu café. Intriga-me que faças isso.
Se te posso pedir um
(se podes tomar um igual)
porque hás de querer do meu?
Que
não. Que não queres. Escuso
de pedir
que não queres. Então
começo um cigarro e tu fumas
do meu cigarro dizes
«tenho quase a certeza de
não acabar um sozinha» por isso
fumas do meu.
Dá-te gozo esse roubar de
leves goles furtivos
dá gozo participar
do prazer que eu possa ter
contigo
(e entre nós)
dá-se agora tudo
a meias.


João Luís Barreto Guimarães, in «Poesia Reunida»,
Quetzal, Lisboa, 2011

João Luís Barreto Guimarães nasceu no Porto, Portugal, em Junho de 1967. Divide o seu tempo entre Leça da Palmeira e Venade. Publicou 8 livros de poesia, os primeiros sete reeditados em "Poesia Reunida" (2011), a que se seguiu o seu mais recente título "Você está aqui" (2013).


Pintura de Ron Hicks


"Usa a capacidade que tens. A floresta ficaria mais silenciosa se só o melhor pássaro cantasse."



segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

"Os professores" - Crónica de José Luís Peixoto


Ilustração de Renato Alarcão para "Conto de Escola" de Machado de Assis, publicado na edição especial
 "Contos Brasileiros" da revista Nova Escola, da Fundação Victor Civita



Os professores


O mundo não nasceu connosco. Essa ligeira ilusão é mais um sinal da imperfeição que nos cobre os sentidos. Chegámos num dia que não recordamos, mas que celebramos anualmente; depois, pouco a pouco, a neblina foi-se desfazendo nos objetos até que, por fim, conseguimos reconhecer-nos ao espelho. Nessa idade, não sabíamos o suficiente para percebermos que não sabíamos nada. Foi então que chegaram os professores. Traziam todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu. Lançaram-se na tarefa de nos atualizar com o presente da nossa espécie e da nossa civilização. Essa tarefa, sabemo-lo hoje, é infinita.

O material que é trabalhado pelos professores não pode ser quantificado. Não há números ou casas decimais com suficiente precisão para medi-lo. A falta de quantificação não é culpa dos assuntos inquantificáveis, é culpa do nosso desejo de quantificar tudo. Os professores não vendem o material que trabalham, oferecem-no. Nós, com o tempo, com os anos, com a distância entre nós e nós, somos levados a acreditar que aquilo que os professores nos deram nos pertenceu desde sempre. Mais do que acharmos que esse material é nosso, achamos que nós próprios somos esse material. Por ironia ou capricho, é nesse momento que o trabalho dos professores se efetiva. O trabalho dos professores é a generosidade.

Basta um esforço mínimo da memória, basta um plim pequenino de gratidão para nos apercebermos do quanto devemos aos professores. Devemos-lhes muito daquilo que somos, devemos-lhes muito de tudo. Há algo de definitivo e eterno nessa missão, nesse verbo que é transmitido de geração em geração, ensinado. Com as suas pastas de professores, os seus blazers, os seus Ford Fiesta com cadeirinha para os filhos no banco de trás, os professores de hoje são iguais aos de ontem. O ato que praticam é igual ao que foi exercido por outros professores, com outros penteados, que existiram há séculos ou há décadas. O conhecimento que enche as páginas dos manuais aumentou e mudou, mas a essência daquilo que os professores fazem mantém-se. Essência, essa palavra que os professores recordam ciclicamente, essa mesma palavra que tendemos a esquecer.

Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios, contra o nosso futuro. Resistindo, os professores, pela sua prática, são os guardiões da esperança. Vemo-los a dar forma e sentido à esperança de crianças e de jovens, aceitamos essa evidência, mas falhamos perceber que são também eles que mantêm viva a esperança de que todos necessitamos para existir, para respirar, para estarmos vivos. Ai da sociedade que perdeu a esperança. Quem não tem esperança não está vivo. Mesmo que ainda respire, já morreu.

Envergonhem-se aqueles que dizem ter perdido a esperança. Envergonhem-se aqueles que dizem que não vale a pena lutar. Quando as dificuldades são maiores é quando o esforço para ultrapassá-las deve ser mais intenso. Sabemos que estamos aqui, o sangue atravessa-nos o corpo. Nascemos num dia em que quase nos pareceu ter nascido o mundo inteiro. Temos a graça de uma voz, podemos usá-la para exprimir todo o entendimento do que significa estar aqui, nesta posição. Em anos de aulas teóricas, aulas práticas, no laboratório, no ginásio, em visitas de estudo, sumários escritos no quadro no início da aula, os professores ensinaram-nos que existe vida para lá das certezas rígidas, opacas, que nos queiram apresentar. Se desligarmos a televisão por um instante, chegaremos facilmente à conclusão que, como nas aulas de matemática ou de filosofia, não há problemas que disponham de uma única solução. Da mesma maneira, não há fatalidades que não possam ser questionadas. É ao fazê-lo que se pensa e se encontra soluções.

Recusar a educação é recusar o desenvolvimento.

Se nos conseguirem convencer a desistir de deixar um mundo melhor do que aquele que encontrámos, o erro não será tanto daqueles que forem capazes de nos roubar uma aspiração tão fundamental, o erro primeiro será nosso por termos deixado que nos roubem a capacidade de sonhar, a ambição, metade da humanidade que recebemos dos nossos pais e dos nossos avós. Mas espero que não, acredito que não, não esquecemos a lição que aprendemos e que continuamos a aprender todos os dias com os professores. Tenho esperança.


Artigo de José Luís Peixoto, in revista Visão (Outubro, 2011)

domingo, 7 de dezembro de 2014

"Inverno" - Poema de Francisco Joaquim Bingre


 


Inverno


Já na quarta estação final da vida 
Estou, do triste Inverno rigoroso. 
Fustigado do tempo borrascoso, 
Com a saraiva das asas sacudida. 

Gelada tenho a fronte encanecida, 
O sangue frio, pálido e soroso. 
Compresso está o físico nervoso 
E a máquina de todo enfraquecida. 

Nesta quadra da fúnebre tristeza, 
Que alegria terei na sombra escura, 
Se enlutada se vê a Natureza? 

Só, com os frutos da má agricultura, 
Vago triste no espaço da incerteza 
De que a Morte me dê melhor ventura. 






"A sabedoria dos velhos é um grande engano. Eles não se tornam mais sábios,
 mas sim mais prudentes." 


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

"A Raposa e a Cegonha" - Poema de Adolfo Simões Müller


A Raposa e a Cegonha (Daqui)


A Raposa e a Cegonha


O sr. Pombo, o carteiro,
trouxe um bilhete à Cegonha,
em folha de pessegueiro,
que ela soletrou, risonha:

«Dona Raposa, a Vossência,
envia muito saudar,
aguardando a comparência
de Vossência no jantar

que às Tantas do dia Tal
do corrente, se efetua
no Retiro do Pardal,
na rua da Catatua.

Não diga nada ao correio
e creia-me ao seu dispor.
Traje: simples, de passeio
R.S.F.F. (Responda, se faz favor).»

É claro: à hora marcada,
no dia Tal, no bilhete,
Dona Cegonha, apressada
lá seguiu para o banquete.

Mas foi uma decepção,
pois a Raposa, matreira,
fez servir a refeição
numa pedra da ribeira...

E, enquanto a pobre Cegonha
achava o caso bicudo,
a Raposa, sem vergonha,
tratava de comer tudo!

Mas a Cegonha, à saída,
despediu-se em tom amigo:
- Gostei muito da comida!
Almoce amanhã comigo!

De manhãzinha, a Raposa,
sempre cheia de apetite,
não quis saber doutra coisa
senão daquele convite.

- Sim, senhora! Bela mesa! -
gritou logo, satisfeita –
Cheira que é uma beleza!
Há-de me dar a receita...

- Bem digo eu, afinal,
e a colegas das melhores,
que dona de casa igual
não há nestes arredores!

Pôs então o guardanapo,
pensando, de olhos em alvo,
que havia de encher o papo
graças a mais um papalvo...

Já a Cegonha servia,
prazenteira, o seu almoço,
numa bilha muito esguia
e funda que nem um poço.

Só um bico, desta vez,
podia chegar ao fundo...
Foi o que a Cegonha fez:
rapou tudo num segundo.

E fula, de olhar em brasa,
a Raposa, como louca,
teve de voltar a casa,
fazendo cruzes na boca.

Vingança é coisa mesquinha!
Mas na vida quem faz mal
paga às vezes a continha
com juros e capital...





"Eu creio tanto na influência dos maus jantares como no das más companhias na índole dos indivíduos, e adoto para mim esta sentença: «Diz-me o que comes, dir-te-ei as manhas que tens»."



segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

"O Mar agita-se como um alucinado" - Poema de Alberto d'Oliveira



O Mar agita-se como um alucinado


O Mar agita-se, como um alucinado:
A sua espuma aflui, baba da sua Dor...
Posto o escafandro, com um passo cadenciado,
Desce ao fundo do Oceano algum mergulhador.

Dá-lhe um aspeto estranho a campânula imensa:
Lembra um bizarro Deus de algum pagode indiano:
Na cólera do Mar, pesa a sua Indiferença
Que o torna superior, e faz mesquinho o Oceano!

E em vão as ondas se lhe enroscam à cabeça:
Ele desce orgulhoso, impassível, sem pressa,
Com suprema altivez, com ironias calmas:

Assim devemos nós, Poetas, no Mundo entrar,
Sem nos deixarmos absorver por esse Mar
— Pois a Arte é, para nós, o escafandro das Almas!


Alberto d'Oliveira, in "Bíblia do Sonho"




"A guerra é um massacre entre pessoas que não se conhecem para proveito
 de pessoas que se conhecem mas não se massacram."
 
(Paul Valéry)
 
 
Paul Valery
 
 
 Paul Valéry

Poeta, ensaísta, filósofo e crítico francês da escola simbolista, Ambroise-Paul-Toussaint-Jules Valéry nasceu a 30 de outubro de 1871, em Sète (perto de Montpellier), de pai francês e mãe italiana, e morreu a 20 de julho de 1945, em Paris. 
 
Foi aluno do liceu Montpellier, pensou em fazer carreira na Marinha e estudou Matemática, mas acabou por se matricular em Direito. Cultivou o seu interesse pela poesia e arquitetura. No fim do curso, em 1892, foi para Paris. Nesta altura, o seu círculo de amigos eram poetas como Stéphane Mallarmé, André Gide e Gustave Flaubert. De entre os seus ídolos contavam-se Edgar Allan Poe, Joris-Karl Huysmans e Stéphane Mallarmé.

Valéry escreveu bastantes poemas entre 1888 e 1891, muitos dos quais foram publicados em revistas pertencentes ao movimento simbolista, onde receberam críticas favoráveis.
O seu desespero e frustração por um amor não correspondido, em 1892, levam-no a renunciar a todas as preocupações emocionais e a voltar-se para a "ideologia do intelecto". 
 
A partir de 1894 passou a escrever segundo o método científico, publicando estes escritos nos famosos Cahiers. O seu novo ídolo era agora Leonardo da Vinci. Passou a considerar a literatura como uma perigosa paixão. Inclinou-se então para a  matemática mas voltou a reencontrar a criação artística ao procurar estabelecer a unidade criadora do espírito com Introduction à la méthode de Léonard de Vinci, onde contrasta as infinitas potencialidades da mente com a inevitável imperfeição da ação. Elaborou uma ética puramente intelectual com la Soirée avec M. Edmond Teste, em 1895.

Em 1912, André Gide pressionou-o a rever os seus primeiros escritos para serem publicados. Elaborou então o programa daquilo a que chamou "poesia pura", em que o sentido dependia totalmente da musicalidade. 
 
Em 1917, publicou la Jeune Parque, considerado o seu melhor poema. Seguiram-se le Cimetière Marin e Album de vers anciens, em 1920 e Charmes em 1922, uma coleção que inclui a sua famosa meditação sobre a morte no cemitério de Sète, onde hoje se encontra o seu túmulo.
Em 1925 foi eleito para a Academia Francesa. A 20 de junho de 1935 foi eleito sócio da classe de letras da Academia das Ciências de Lisboa. 
 
Para Valéry, os versos devem produzir encantamento e o poeta tem de crer no poder da palavra e na eficácia do som do vocábulo. Os famosos poemas de la Jeune Parque e Charmes produziram um encantamento tal, que em breve muitos os sabiam de cor. 
Valéry criou uma nova sintaxe poética e anexou à literatura o domínio inexplorado da sensibilidade. O seu lirismo encontra-se também nos livros em prosa. Mais tarde escreveu vários ensaios e folhetins literários e interessou-se pelas descobertas científicas e pelos problemas políticos do seu tempo.

Paul Valéry não escreveu poesia após 1922, mas o seu lugar como um dos maiores escritores franceses estava assegurado. Passou a dedicar atenção aos problemas da escrita poética e à sua composição literária, assim como à matemática e à ciência. Tornou-se uma figura pública bastante importante. Encontrava-se com escritores, cientistas e chefes de Estado estrangeiros. 
Fortemente interessado pelo estado da física moderna, Valéry proferiu inúmeros discursos e fez viagens por toda a Europa.  (daqui)