segunda-feira, 28 de março de 2022

"Fuga" - Poema de Luís Amaro


Henri Biva (French artist, 1848-1928), River Scene in Spring, France (View of Willow Trees 
on the Bank of a River with Waterlilies), oil on canvas, approx 60 x 49 cm.


Fuga



Numa nuvem de esquecimento
passar a vida,
sem mágoas, sem um lamento,
água correndo, impelida
pelo vento.

Ouvir a música do instante que passa
e recolhê-la no coração,
olhos fechados à dor e à desgraça,
os ouvidos atentos à canção
do instante que passa.

Beber a luz doirada que irradia
dos vastos horizontes,
e ver escoar-se o dia
entre pinhais e montes...
Doce melancolia.

Esquecer todas as agruras
que lá vão
e este negro mar de desventuras
em que voga ao sabor de torvas ondas
meu coração.


Luís Amaro
 
 

Luís Amaro (daqui)
 

Luís Amaro
(Aljustrel, 5 de maio de 1923 — Lisboa, 24 de agosto de 2018), poeta e crítico literário, co-dirigiu, com os poetas António Luís Moita, António Ramos Rosa, José Terra e Raul de Carvalho, entre 1951 e 1953, a revista Árvore, subscrevendo, no n.° 1, em "A Necessidade da Poesia", como imperativos da escrita poética, a liberdade e a isenção ("Não pode haver razões de ordem social que limitem a altitude ou a profundidade dum universo poético, que se oponham à liberdade de pesquisa e apropriação dum conteúdo cuja complexidade exige novas formas, o ir-até-ao-fim das possibilidades criadoras e expressivas."). 
 
Colaborou noutras publicações como Seara Nova, Távola Redonda e Portucale, e foi diretor-adjunto e consultor editorial da revista Colóquio/Letras. Mais conhecido pela sua atividade editorial e de investigação literária (organizou a edição de Ensaios Críticos Sobre José Régio, da Poesia Completa de Mário Beirão, entre outras iniciativas), desenvolveu uma atividade poética curta, mas significativa, tendo editado, em 1949, o volume Dádiva, reeditado com outros poemas, em 1975, sob o título de Diário Íntimo
 
Poeta predominantemente melancólico e disfórico, para António Ramos Rosa (cf. "Luís Amaro entre o sonho e a dor", in Rosa, António Ramos - A Parede Azul, Estudos sobre Poesia e Artes Plásticas, Lisboa, Caminho, 1991, pp. 75-78), "Luís Amaro é fiel a esse espaço interior a que se chama alma e a sua poesia é a tentativa permanente de se integrar nela ou de a habitar, mau grado todas as agressões do mundo exterior [...] o que ela diz é sempre a pureza do sonho irrealizado mas vivo na sua virtualidade permanente que ilumina a vida e secretamente a alimenta".(Daqui)
 
 
 Henri Biva, Matin à Villeneuve (From Waters Edge), c. 1905-06, oil on canvas, 153.7 x 127cm, 
painted at Villeneuve l'Etang, Marnes-la-Coquette (Seine-et-Oise), France, private collection


"A história provou a capacidade demolidora da poesia e nela me refugio incondicionalmente." 

(Pablo Neruda)

 
Henri Biva, Tranquility, oil on canvas, 61 x 74 cm, Signed and dedicated "a mes chers enfants 
Lison et Marcelle Maitre, Henri Biva."
 

"A poesia é um ato de paz. A paz entra dentro da composição de um poeta tal como a farinha
 entra na composição do pão."
 
in Confieso que he vivido. Memórias. (Autobiografia), Barcelona, Seix Barral, 1974.
[Prémio Nobel da Literatura em 1971]
 
 

quinta-feira, 24 de março de 2022

"Poema Agreste" - Glória de Sant'Anna


 
Rafael Senet Pérez (Spanish painter and watercolorist, 1856–1926), Rio San Trovaso, Venice
 

 
Poema Agreste


Não sei por que buscas palavras longas
para as coisas breves que nos assombram.

Não sei por que teces teias enormes
para as incertezas que nos envolvem.

Não sei por que insistes. Não sei porque insistes
em prender meus passos nesse limite. 
 

Glória de Sant'Anna,
in 'Poemas do Tempo Agreste'


Rafael Senet Pérez, Vista de la plaza de San Marco con Santa Maria della Salute al fondo.


"O silêncio, o que é o silêncio? perguntei ao mestre. 
- Uma floresta cheia de ruído."
 

Casimiro de Brito
, Arte da Respiração (1988)
 
 

terça-feira, 22 de março de 2022

"As Adolescentes" - Poema de António Osório


Constance Rea (British painter, c.1866–1952), Girl with a Mandolin, oil on canvas,
 
 
 
As Adolescentes 
 
 
A pele mosqueada da maçã reineta,
um ar vago e doce, feliz.
Subitamente correm como rapazes,
são a corda do arco
que se dilata e a seta do corpo
chega aos quinze anos,
quando abrem as ancas
e amam como se fossem mães.
 
 in 'A Raiz Afectuosa'
 


 
A Raiz Afetuosa
 
'A Raiz Afetuosa' reúne uma atividade poética que, estética e ideologicamente formada nos anos 50 e datada dos anos de 1965 a 1971, só foi publicada em volume no início dos anos 70. É assim que este livro de estreia, A Raiz Afetuosa, de António Osório, publicado em 1972, evocando afetos familiares e a solidariedade com todos os seres, animais ou plantas, numa voz aparentemente alheia ao percurso de fuga simultaneamente ao real e à subjetividade efetuado por vários poetas contemporâneos, surge como um caso singular no panorama literário em que se revela. Insólita, por natural, é nesta obra "a raiz afetuosa" que une o poeta a tudo o que vive e que ama, para além da vida e da morte, polos, aliás, relativos - "nem a vida cessa nem a morte sepulta" («Argos», in A Ignorância da Morte) -, quando o poema ressuscita os mortos («Dante», «Elegia», «In Memoriam», «Maiakovski»), quando indaga na natureza a muda testemunha que sobrevive ao tempo («A um Mirto»), quando renasce nos seus filhos ou desafia os "Vindouros", descortinando acima da caducidade e da efemeridade uma lógica superior pela qual "As marés chegam e partem, / tudo morre e começa (o vento, / o tumulto dos cais, a luta dos homens)" («Tejo, 26 de junho»). Mas, no espaço de uma poesia filha do modernismo, como é toda a poesia contemporânea, onde "um canto enraizado no ritmo imemorial do coração só pode ser «ingénuo» em segundo grau" (cf. LOURENÇO, Eduardo, p. 7), a reconciliação com a vida e com a simplicidade subtrai-se à prática romântica de um subjetivismo sentimental e óbvio, por um misto de "ternura" e "lucidez amarga" (idem, p. 10) que neutraliza a comoção, por uma espécie de "ironia que se transmuda em piedade, de repúdio, suma de montanhas e montanhas sobrepondo-se, de esconjurar a crueldade e, ainda de trazer consigo, piedosamente, a chave do jazigo de Deus" (cf. OSÓRIO, A. - «Dedicatória a meu tio Henrique», in Décima Aurora). No mesmo sentido, a depuração da escrita, característica que comunga com outros poetas revelados nos anos 60 e 70, como forma de uma lírica de regresso à celebração das coisas elementares, é, em António Osório, colocada, pela redução de figuras e de adjetivos e pela submissão da frase a processos elípticos, ao serviço, não da expressão obscura e crítica, mas de uma sobriedade pela qual a evidência se sobrepõe ao enigma (cf. LOURENÇO, ibid., p. 15), na conquista de uma essencial "humildade discursiva" (MAGALHÃES, Joaquim Manuel - prefácio a Décima Aurora, 1982). (Daqui)
 

domingo, 20 de março de 2022

"Agora" - Poema de Miguel Torga


 Sir Arthur Streeton (1867-1943, Australian landscape painter), Spring, 1890,
 
 
 Agora

 
Abre-te, Primavera!
Tenho um poema à espera
Do teu sorriso.
Um poema indeciso
Entre a coragem e a covardia.
Um poema de lírica alegria
Refreada,
A temer ser tardia
E ser antecipada.

Dantes, nascias
Quando eu te anunciava.
Cantava,
E no meu canto acontecias
Como o tempo depois te confirmava.
Cada verso era a flor que prometias
No futuro sonhado…
Agora, a lei é outra: principias,
E só então eu canto confiado.
 
São Martinho de Anta, 31 de Março de 1968.
in Diário X (5-10-1963 / 30-7-1968)

 
National Gallery of Victoria, Melbourne


Glória


Depois do Inverno, morte figurada,
A primavera, uma assunção de flores.
A vida
Renascida
E celebrada
Num festival de pétalas e cores.


Miguel Torga,
in Diário XIV (21-5-1982 / 11-1-1987)
 
 
Sir Arthur Streeton, Butterflies and Blossoms, 1980
 

Quando uma abelha
se enamora,
nasce uma flor.
(Haicai / Haikai / Haiku) 
 

quinta-feira, 17 de março de 2022

"Guerra" - Poema de Natércia Freire


Silvestro Lega (Italian realist painter, 1826-1895), Sharpshooters Leading Prisoners, 1861
(Episodio della guerra del 1859 - Ritorno di bersaglieri italiani da una ricognizione), Florence
Oil on canvas, 57,5 x 95, National Gallery of Modern Art, Palazzo Pitti
 

 
Guerra


São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Via-os chegar, às tardes, comovidos,
nupciais e trementes
do enlace da Vida com os sentidos.

Estiveram no meu colo, sonolentos.
Contei-lhes muitas lendas e poemas.
Às vezes, perguntavam por algemas.
Respondia-lhes: mar, astros e ventos.

Alguns, os mais ousados, os mais loucos,
desejavam a luta, o caos, a guerra.
Outros sonhavam e acordavam roucos
de gritar contra os muros que há na Terra.

São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Nove meses de esperança, lua a lua.
Grandes barcos os levam, lentamente... 
in 'Liberta em Pedra', 1964
 



Guerra Austro-Franco-Sarda


Tem as suas origens nas ambições da casa de Saboia; esta pretendia estender a sua influência na Itália, no desejo de os radicais italianos anularem os Estados da Igreja e na aceitação, por parte de Napoleão III, das "nacionalidades europeias", o seu desejo de obter Nice e a Saboia para a França, deixando a esta casa italiana a possibilidade de tomar a Lombardia. Os historiadores veem nesta ação uma demonstração da ambição política da Condessa de Castiglione (que era amante de Cavour, Primeiro-Ministro da Saboia).
A guerra terá envolvido cerca de 120 000 Franceses, que desembarcaram em Génova, 40 000 Sardos e 180 000 Austríacos (vindo este contingente a ascender aos 270 000 efetivos).
A guerra travou-se entre maio de 1859 e julho do mesmo ano. O primeiro registo bélico ocorreu a 20 de maio, na batalha de Montebello, onde Forey bateu o general austríaco Stadion. Em Palestro, a 30 do mesmo mês, as tropas de Vítor Emanuel II e do Coronel Chabron tomaram, à baioneta, as baterias austríacas de Gyulay. Este mesmo cabo de guerra será batido em Magenta (4 de junho) por Napoleão III e Mac-Mahon. No dia 8, Napoleão e Vítor Emanuel entraram em Milão
No dia 24 desse mês ocorreu o maior confronto desta guerra, a batalha de Solferino, na qual Napoleão III bateu Francisco José I da Áustria. Neste sangrento combate os Austríacos perderam 22 000 homens contra 17 000 baixas entre Sardos e Franceses. A guerra estava decidida. No dia 17 de junho foi assinado o armistício de Villafranca. A 10 de novembro, pelo Tratado de Zurique, acordou-se a paz: a França recebia a Lombardia, entregue depois ao Piemonte e a Áustria conservava Veneza. (daqui)
 
 

quarta-feira, 16 de março de 2022

"Homem para Deus" - Poema de Ruy Belo



Charles E. Weir 
(American, 1823–1845), The Wood Sawyer, 1842, 
Metropolitan Museum of Art, New York City



Homem para Deus
 
 
 Ele vai só ele não tem ninguém
onde morrer um pouco toda a morte que o espera
Se é ele o portador do grande coração
e sabe abrir o seio como a terra
temei não partam dele as grandes negações
Que há de comum entre ele e quem na juventude foi
que mão estendem eles um ao outro
por sobre tanta morte que nos dias veio?
E no seu coração que todo o homem ri e sofre
é lá que as estações recolhem findo o fogo
onde aquecer as mãos durante a tentação
é lá que no seu tempo tudo nasce ou morre
Não leva mais de seu que esse pequeno orgulho
de saber que decerto qualquer coisa acabará
quando partir um dia para não voltar
e que então finalmente uma atitude sua há de implicar
embora diminuta uma qualquer consequência
O que deus terá visto nele para morrer por ele?
Oh que responsabilidade a sua
Que não dê como a árvore sobre a vida simples sombra
que faça mais do que crescer e ir perdendo vestes

Oh que difícil não é criar um homem para deus 


Ruy Belo
in "Aquele Grande Rio Eufrates"
Editora: Assírio & Alvim 
 
 


'Aquele Grande Rio Eufrates' é a estreia poética de Ruy Belo, em 1961. O livro foi reeditado em 1972, com profundas modificações por parte do autor.
Acerca deste livro, escreve o autor no prefácio a edição de 1972: «É claro, até para mim, que de inocente pouco tenho pelo menos como poeta, que, ao longo de todos estes poemas, certas palavras afloram com maior frequência [...]. Citamos, mais ou menos ao acaso e sem a menor preocupação de ordem: morte, deus, folhas, homem, árvore, estações, primavera, palavras, chuva, cidade, manhã, dia, crianças, infância, coração, pássaros, mar. Poesia metafísica a deste livro? Decerto. Mas também – e não faltou quem o visse e o dissesse e me fizesse tomar consciência disso – poesia do quotidiano, onde de certa maneira sobressai um real que sucessivamente chega até nós, dessa forma humilde e comezinha que convém a realidade.» (daqui)

sexta-feira, 11 de março de 2022

"Viste o cavalo varado a uma varanda?" - Poema de António Ramos Rosa

 
 
George Stubbs (1724–1806), Whistlejacket, c. 1762, National Gallery, London
 

Viste o cavalo varado a uma varanda?



Viste o cavalo varado a uma varanda?
Era verde, azul e negro e sobretudo negro.
Sem assombro, vivo da cor, arco-íris quase.
E o aroma do estábulo penetrando a noite.

Do outro lado da margem ascendia outro astro
como uma lua nua ou como um sol suave
e o cavalo varado abria a noite inteira
ao aroma de Junho, aos cravos e aos dentes.

Uma língua de sabor para ficar na sombra
de todo um verão feliz e de uma sombra de água.
Viste o cavalo varado e toda a noite ouviste
o tambor do silêncio marcar a tua força

e tudo em ti jazia na noite do cavalo.


António Ramos Rosa,
in 'Ciclo do Cavalo', 1975 
 
 
'Ciclo do Cavalo' de António Ramos Rosa

 

[O desenvolvimento cíclico ou temático reveste-se de um valor especial, quando o autor considera, num texto seu de natureza ensaística, que "as palavras repetem, não se repetem". É o que acontece no Ciclo do Cavalo, com a palavra "cavalo", por vezes prolongada por outras que têm uma referência significativa comum: "garupa", "cascos", "galope", etc. Ela desencadeia ao longo de todos os poemas uma dispersão de sentido ou uma errância de natureza simbólica fundamentais, cujo limite poderá ser o próprio espaço da escrita poética: "porque há um chão de terra no poema / e um cavalo que pasta a solidão real".]


quinta-feira, 10 de março de 2022

"Álbum de Família" - Poema de Luiza Neto Jorge


Silvestro Lega (Italian realist painter, 1826-1895), Mother, 1884


Álbum de Família


Reconheço a mãe
comia legumes
vivia roendo
entre um cheiro
herbívoro
dizendo
«como vegetais
por vício»

a minha outra mãe
mansa provinha
do ventre polar
de sua mãe
deu-me à luz
elétrica
sob a luz solar

a terceira mãe
porque tinha fome
ou vertigem santa
tomba de onde mora
de um arranha-céus à hora 


Luiza Neto Jorge
,
in 'Corpo insurrecto e outros poemas (2008)'

 

 
Alexandre Legrand (French, 1822–1901)Maternal Love
(Mother and child after a bath)
, Date unknown 
 

"Assim somos nós, mãe. Pelo amor, eu a refletir-te e tu a refletires-me, eu a ser reflexo de ti e tu a seres reflexo de mim. Recebi o amor que me deste e com ele te fiz. Recebeste o amor que te dei e com ele me fizeste."
 José Luís Peixoto, in 'Em Teu Ventre', 2015



Charles West Cope
 (English, 1811-1890), George Herbert and his Mother


"A vida é pequena demais para perdermos tempo a gastar energias em algo que não envolva amor. "
Pedro Chagas Freitas, Prometo Falhar, 2014
 



"Prometo Falhar" é um livro de amor.
O amor dos amantes, o amor dos amigos, o amor da mãe pelo filho, do filho pela mãe, pelo pai, o amor que abala, que toca, que arrebata, que emociona, que descobre e encobre, que fere e cura, que prende e liberta.
O amor.
No seu estilo intimista, quase que sussurrado ao ouvido, Pedro Chagas Freitas leva o leitor aos estratos mais profundos do que sente. E promete não deixar pedra sobre pedra.
Mergulhe de cabeça numa obra que mostra sem margem para equívocos porque é que é possível sair ileso de tudo.
Menos do amor. (daqui)

quarta-feira, 9 de março de 2022

"Os papelotes" - Poema de Adília Lopes



Abbey Altson
(British, 1866-1949), Portrait of a Lady, c. 1916 
 


Os papelotes


Nunca choraremos bastante
termos querido ser belas
à viva força
eu quis ser bela
e julguei que para ser bela
bastava usar canudos
pedi para me fazerem canudos
com um ferro de frisar e papelotes
puxaram-me muito pelos cabelos
eu gritei
disseram-me para ser bela
é preciso sofrer
depois o cabelo queimou-se
não voltou a crescer
tive de passar a andar com uma peruca
para ser bela é preciso sofrer
mas sofrer não nos faz forçosamente belas
um sofrimento não implica como consequência
uma recompensa
uma dor de dentes pode comover a nossa mãe
que para nos consolar sem saber de quê
nos dá um rebuçado
mas o rebuçado ainda nos faz doer mais os dentes
a consequência de um sofrimento
pode ser outro sofrimento
a causa é posterior ao efeito
o motivo do sofrimento é uma das consequências
do sofrimento
os papelotes são uma consequência da peruca


Adília Lopes
,
in Decote da Dama de Espadas (Romances), 1988, pág. 160-161
Col. Plural. Poesia
Lisboa: Gota de Água 
 

 Abbey Altson, A Spanish Lady, Date unknown
 

«Eu levo a minha poesia muito a sério. Para mim é uma questão de vida ou de morte.»

(Adília Lopes)
 
 
Adília Lopes, poetisa, cronista e tradutora, é o pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, nascida em Lisboa a 20 de Abril de 1960. Tem vivido sempre nesta cidade e na mesma casa, habitada pela família de sua mãe desde 1916. Desde 1982 que vive com gatos. «A Adília surgiu com um poema que escrevi no meu diário quando uma gata minha, a Faruk, desapareceu», contou numa entrevista a Carlos Vaz Marques. A mãe foi bióloga, assistente de Botânica na Faculdade de Ciências de Lisboa, e o pai professor de Desenho e sub-diretor da Escola Secundária Pedro de Santarém, em Benfica, Lisboa.

Adília Lopes começou por frequentar dois colégios de freiras, no ensino primário, e acabou a cursar Física, na Faculdade de Ciências de Lisboa, licenciatura que abandonou, quase completa, devido a uma psicose esquizo-afetiva, doença da qual sempre falou abertamente, fosse na sua poesia, crónicas, conferências ou entrevistas a meios de comunicação social. Deixou de estudar por conselho médico e começou a escrever com o intuito de publicar.

Concorre em 1983 a um Prémio de Prosa da APE, para o qual um amigo lhe sugere o pseudónimo por que ficará conhecida, e envia poemas para a editora Assírio & Alvim, que remete dois deles para o seu Anuário de Poesia: Autores não Publicados de 1984. Começa uma nova licenciatura, de Literatura e Linguística Portuguesa e Francesa (1983-1988), na Faculdade de Letras de Lisboa, e publica o seu primeiro livro de poemas em edição de autor, Um jogo bastante perigoso (1985). O primeiro poema do livro evoca Esther Greenwood, a narradora de Câmpanula de vidro – um romance autobiográfico onde a poetisa norte-americana Sylvia Plath refletiu a depressão profunda que a afetou.

Ao longo do curso, Adília Lopes publicou outros quatro livros de poesia, entre os quais O Poeta de Pondichéry (1986) – a sua obra mais traduzida, baseada numa enigmática personagem de Jacques le fataliste, romance de Diderot – e O decote da dama de espadas (1988), reunião de poemas redigidos entre 1983 e 1987, louvado por vários críticos. Terminada a licenciatura, foi bolseira do Instituto Nacional de Investigação Científica (1989-1992), tendo trabalhado no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, no projeto de antroponímia de países de línguas românicas PatRom.

Não escreveu no período de 1987 a 1991 e, de certa forma, inicia nesse ano um novo ciclo, novamente em edição de autor, com Os 5 livros de versos salvaram o tio, 250 exemplares para distribuição gratuita. Recusado por seis editoras, tem na capa, simbolicamente, a data do primeiro livro (1985), já não em capa branca mas cor-de-rosa.

Entre 1992 e 1997 faz publicar cinco livros de poesia, um dos quais em prosa (A bela acordada), e especializa-se em Ciências Documentais (1995) na Faculdade de Letras de Lisboa. Trabalhou nos espólios de Fernando Pessoa, Vitorino Nemésio e José Blanc de Portugal, este último padrinho de crisma da autora.

A Adília Lopes foi atribuída, em 1999, uma bolsa de criação literária do IPLB [Instituto Português do Livro e das Bibliotecas], apoio que lhe permitiu trabalhar para o teatro e «arrumar» a sua «arca» de dispersos e inéditos. A companhia de teatro Sensurround, de Lúcia Sigalho, levou então à cena um espetáculo baseado em textos seus intitulado A Birra da Viva, obra central (e única a ser encenada) da trilogia A Caixa em Tóquio. A bolsa permitiu ainda a publicação de três livros, sendo Sete rios entre campos (1999), provavelmente, a obra mais autobiográfica de Adília Lopes.

No ano seguinte, foi publicado Obra, reunião dos quinze livros de poesia de Adília Lopes, com ilustrações de Paula Rego. A pintora, surpreendida, havia encontrado nos poemas um impressionante paralelo com o seu próprio imaginário: «fizeram-me logo lembrar a minha juventude, com as criadas, as bonecas, as mães ultraprotetoras. Adília Lopes é de um grande romantismo e ao mesmo tempo de um grotesco e de um cómico transbordantes.» Em resposta à cortesia, Adília traduziu para português Nursery Rhymes (Rimas de Berço), um álbum de gravuras de Paula Rego baseadas nas clássicas rimas infantis inglesas.

Após a publicação de Obra, Adília Lopes conheceu um relativo sucesso mediático, tendo participado em vários programas de televisão e recebido uma reforçada atenção de muitos críticos literários, embora desde 1998 já incluísse nos seus livros posfácios da autoria de académicos (Osvaldo M. Silvestre, Américo Lindeza Diogo, Manuel Sumares, aos quais se seguiram Elfriede Engelmayer e  Valter Hugo Mãe). É frequentemente inquirida sobre Adília Lopes ser uma personagem ou a própria Maria José.

As principais influências literárias assumidas por Adília Lopes são Sophia de Mello Breyner Andresen e Ruy Belo, mas também a Condessa de Ségur, Emily Brontë, Enid Blyton, Roland Barthes ou Nuno Bragança.  Por sua vez, Elfriede Engelmayer considera Mariana Alcoforado, das Cartas Portuguesas, como um «subterrâneo pseudónimo» na obra de Adília, ao qual ela regressa episodicamente.

O estilo da poetisa, aparentemente coloquial e naïf, está repleto de jogos fonéticos, associações livres, rimas infantis e idiomas estrangeiros. Os temas do quotidiano, principalmente femininos e domésticos, são tratados com humor e auto-ironia, candura e crueza, inteligência e intencionalidade: «há sempre uma grande carga de violência, de dor, de seriedade e de santidade naquilo que escrevo». É Adília, católica praticante que por vezes transporta uma profunda religiosidade para o que escreve, que se define a si própria como «tímida desenrascada» ou «freira poetisa barroca».

Colaborou com poemas, artigos ou poemas traduzidos, em diversos jornais e revistas, nacionais e estrangeiros. Está incluída em várias antologias e participou em inúmeros encontros de poesia. 

Centro de Documentação de Autores Portugueses,  09/2005 (Daqui)
 


Abbey Altson, The Potter’s Daughter, c. 1910


"- Senhor, o que é a poesia?
- Bem, senhor, é muito mais fácil dizer o que não é. Todos nós sabemos o que é a luz, mas não é fácil dizer o que é."
 

terça-feira, 8 de março de 2022

"Ode à Mentira" - Poema de Jorge de Sena

 
Jean Metzinger (France, 1883-1956), Landscape (Marine, Composition Cubiste), 1912,
oil on canvas, 51.4 x 68.6 cm,
Fogg Art Museum, Harvard University.
 

Ode à Mentira


Crueldades, prisões, perseguições, injustiças,
como sereis cruéis, como sereis injustas?
Quem torturais, quem perseguis,
quem esmagais vilmente em ferros que inventais,
apenas sendo vosso gemeria as dores
que ansiosamente ao vosso medo lembram
e ao vosso coração cardíaco constrangem.
Quem de vós morre, quem de por vós a vida
lhe vai sendo sugada a cada canto
dos gestos e palavras, nas esquinas
das ruas e dos montes e dos mares
da terra que marcais, matriculais, comprais,
vendeis, hipotecais, regais a sangue,
esses e os outros, que, de olhar à escuta
e de sorriso amargurado à beira de saber-vos,
vos contemplam como coisas óbvias,
fatais a vós que não a quem matais,
esses e os outros todos… – como sereis cruéis,
como sereis injustas, como sereis tão falsas?
Ferocidade, falsidade, injúria
são tudo quanto tendes, porque ainda é nosso
o coração que apavorado em vós soluça
a raiva ansiosa de esmagar as pedras
dessa encosta abrupta que desceis.
Ao fundo, a vida vos espera. Descereis ao fundo.
Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos?
Descereis, descereis sempre, descereis. 


31/3/49

Jorge de Sena,
in Pedra Filosofal, Poesia I

 

segunda-feira, 7 de março de 2022

"Quem disse alguma vez que há deuses lá nos céus?" - Poema de Eurípides


Canaletto [Venice, Venetian Republic (now Italy), 1697–1768], 
Bucentaur's return to the pier by the Palazzo Ducale. An 18th-century view of Venice.

 
Quem disse alguma vez que há deuses lá nos céus?
(Trecho de Belerofonte)


Quem disse alguma vez que há deuses lá nos céus?
Não há, não há, não há. Não deixem que ninguém,
mesmo crente sincero nessas velhas fábulas,
com elas vos engane e vos iluda ainda.
Olhai o que acontece, e dai a quanto digo
a fé que isto merece: eu afirmo que os reis
matam, roubam, saqueiam à traição cidades,
e, assim fazendo, vivem muito mais felizes
que quantos dia a dia pios são e justos.
Quantas nações pequenas, bem fiéis aos deuses,
sujeitas são dos ímpios com poder e força,
vencidas por exércitos que as escravizam.
E vós, se em vez de trabalhar rezais aos deuses,
e deixais de lutar para ganhar a vida,
aprendereis que os deuses não existem. Que
todas as divindades significam só
a sorte, boa ou má, que temos neste mundo. 
 
 in «Poesia de 26 Séculos».
Tradução de Jorge de Sena,
Antologias Universais, Edições ASA, 2002
 
 
Eurípides, dramaturgo grego
 

Eurípides
 
Trágico grego nascido em 480 a. C. e falecido em 406 a. C. na Macedónia.
Segundo os autores cómicos, a sua mãe teria sido hortaliceira. A verdade, porém, é que teve uma excelente educação complementada com leituras dos filósofos e contactos com pensadores de renome.
Dedicou-se exclusivamente à arte e nunca se preocupou com a política.
O seu carácter solitário e sombrio acentuou-se ainda com os ataques constantes dos autores cómicos e com os frequentes desaires da sua carreira literária.
Da sua obra, uma centena de peças, chegaram até nós dezassete tragédias, tidas como autênticas, das quais as mais célebres são: Alcestes, Medeia, Hipólito, Troianas, Andrómaca, Ifigénia em Áulide e Ifigénia em Táuride. É conhecido também o seu drama satírico Ciclope.
Embora não tenha trazido nada de novo à forma exterior da tragédia, o sistema dramático de Eurípides orienta-se para a variedade e o patético e nisto se distingue dos seus predecessores.
Do ponto de vista da estrutura, as peças de Eurípides são de valor bastante desigual, ou nos dá uma intriga bem ligada, como em Ifigénia em Áulide, como, mais frequentemente, nos fornece um desfiar de quadros independentes e sem nexo, como em Andrómaca.
A separação do coro e da ação é muito clara.
É evidente em Eurípides o desejo de comunicar emoções fortes ao espectador e de o manter em contínuo suspense.
Há uma chamada constante à piedade pela exposição do sofrimento moral, da dor física e da miséria.
Apesar de considerado um inimigo sistemático das mulheres, são os caracteres femininos que ele melhor consegue retratar.
O estilo de Eurípides distingue-se, nas partes líricas, pela sua leveza, quase inconsistência; nos diálogos da ação, pela linguagem simples, coloquial.
Eurípides viveu numa altura em que o poder de Atenas diminuía, a democracia se transformava em demagogia, e o ceticismo se espalhava através do ensino dos sofistas. Eurípides procurava, pela boca das suas personagens, contrariar estas tendências, com as suas ideias pessoais e ousadas.
As suas convicções religiosas não são tão fortes como as dos seus predecessores, mas é um defensor convicto da democracia. (Daqui)

 
 
 
Canaletto 

 
Pintor e gravador veneziano, nascido em 1697 e falecido em 1768, Canaletto é o nome pelo qual ficou conhecido Giovanni Antonio Canal. Com grande minúcia na exploração dos contrastes de luz, pintou principalmente paisagens urbanas, tanto de Veneza como de Londres, cidade à qual efetuou diversas viagens a partir de 1746. Entre outros trabalhos, Piazza S. Marco con la basilica di fronte e Casa della vecchia guardia di St James Park são merecedores de referência. (daqui)