segunda-feira, 31 de agosto de 2015

"Soneto a Vermeer" - Poema de Alberto da Costa e Silva



Johannes Vermeer also known as Jan Vermeer (Dutch painter, 1632–1675),
The Lacemaker, c. 1669/1670, Louvre Museum.



Soneto a Vermeer

 
De luto, a minha avó costura à máquina,
e gira um cata-vento em plena sala.
Vejo seu rosto, sombra que a janela
corrompe contra um pátio amarelado

de sol e de mosaicos. Sobre a mesa,
a tesoura, um esquadro, alguns retalhos
e a imóvel solidão. A minha avó,
com seus olhos azuis, o tempo acalma.

A minha avó é jovem, mansa e apenas
a limpidez de tudo. Sonho vê-la
no seu vestido negro, a gola branca,
contra o corpo de cão, negro, da máquina:

a roda, de perfil, parece imóvel
e a vida não se exila na beleza.


in 'A Roupa no Estendal, o Muro, as Pombas'


Johannes Vermeer, Woman with a balance, 1665


"Quem escrever a respeito de mulheres, deve molhar a pena nas cores do arco-íris e secar-lhe a tinta
 com a poeira dourada das borboletas."


domingo, 30 de agosto de 2015

"A Dádiva" - por Khalil Gibran


Pintura de Khalil Gibran, The Thinker



A Dádiva
(Do Livro "O Profeta")


Então um homem opulento disse: “Fala-nos da dádiva.”
E ele respondeu:

“Vós pouco dais quando dais de vossas posses. 
É quando dais de vós próprios que realmente dais.
Pois, o que são vossas posses senão coisas que guardais por medo de precisardes delas amanhã? 
E amanhã, que trará o amanhã ao cão ultraprudente que enterra ossos na areia movediça enquanto segue os peregrinos para a cidade santa? 
E o que é o medo da necessidade senão a própria necessidade? 
Não é vosso medo da sede, quando vosso poço está cheio, a sede insaciável? 
Há os que dão pouco do muito que possuem, e fazem-no para serem elogiados, e seu desejo secreto desvaloriza suas dádivas. 
E há os que têm pouco e dão-no integralmente. 
Esses confiam na vida e na generosidade da vida, e seus cofres nunca se esvaziam. 
E há os que dão com alegria, e essa alegria é já a sua recompensa. 
E há os que dão com pena, e essa pena é o seu batismo. 
E há os que dão sem sentir pena nem buscar alegria nem pensar na virtude: 
Dão como, no vale, o mirto espalha sua fragrância no espaço. 
Pelas mãos de tais pessoas, Deus fala; e através de seus olhos Ele sorri para o mundo. 
É belo dar quando solicitado; é mais belo, porém, dar sem ser solicitado, por haver apenas compreendido; 
E para os generosos, procurar quem recebe é uma alegria maior ainda que a de dar. 
E existe alguma coisa que possais guardar? 
Tudo o que possuís será um dia dado. 
Dai agora, portanto, para que a época da dádiva seja vossa e não de vossos herdeiros. 
Dizeis muitas vezes: 
“Eu daria, mas somente a quem merece”. 
As árvores de vossos pomares não falam assim, nem os rebanhos de vossos pastos. 
Dão para continuar a viver, pois reter é perecer. 
Certamente, quem é digno de receber seus dias e suas noites é digno de receber de vós tudo o mais. 
E quem mereceu beber do oceano da vida, merece encher sua taça em vosso pequeno córrego. 
E que mérito maior haverá do que aquele que reside na coragem e na confiança, mais ainda, na caridade de receber? 
E quem sois vós para que os homens devam expor o seu íntimo e desnudar seu orgulho a fim de que possais ver seu mérito despido e seu amor-próprio rebaixado? 
Procurai ver, primeiro, se mereceis ser doadores e instrumentos do dom. 
Pois, na verdade, é a vida que dá à vida, enquanto vós, que vos julgais doadores, são meras testemunhas. 
E vós que recebeis – e vós todos recebeis – não assumais encargo de gratidão a fim de não pordes um jugo sobre vós e vossos benfeitores. 
Antes, erguei-vos, junto com eles, sobre asas feitas de suas dádivas; 
Pois se ficardes demasiadamente preocupados com vossas dívidas, estareis duvidando da generosidade daquele que tem a terra liberal por mãe e Deus por pai.” 

Khalil Gibran, Excertos de O Profeta"

"Pedra Tumular" - Poema de António Manuel Couto Viana


Fortunato Depero, War-party, 1925. National Gallery of Modern Art, Rome


Pedra Tumular


A minha geração fugiu à guerra, 
Por isso a paz que traz não tem sentido: 
É feita de ignorância e de castigo, 
Tão rígida e tão fria como a pedra. 

Desfazem-se-lhe as mãos em gestos frágeis, 
Duma verdade inútil por vazia, 
E a língua imóvel nega o som à vida, 
Por hábito ou por falta de coragem. 

Se há rumores lá de fora, às vezes, lembra: 
Porque é que pulsa o coração do mundo, 
Precipitado, angustioso, ardente? 

Mas depressa submerge na indiferença 
- Que lhe deram um túmulo seguro; 
E o relógio dá-lhe horas certas, sempre. 


in 'Mancha Solar'


Fortunato Depero, The Chair’s Party, 1927


"A biblioteca é o templo do saber, e este tem libertado mais pessoas do que todas as guerras da história."


sábado, 29 de agosto de 2015

"Na Floresta do alheamento" - Texto de Bernardo Soares (Heterónimo de Fernando Pessoa)


[Forest and Dove (1927) é um quadro do pintor surrealista, Max Ernst. Mostra uma cena nocturna de uma floresta com árvores bizarras e abstractas. No meio da floresta encontra-se a representação de uma pomba como feita por uma criança. Quer a floresta quer a pomba aparecem várias vezes nos trabalhos de Ernst. De acordo com uma análise da Tate Gallery, em Londres, a imagem da floresta representa a floresta que existia perto da casa de infância do autor, que lhe inspiraria um sentimento de encantamento e terror. A mesma análise indica que a pomba representa o autor. Este quadro tem uma textura e aparência tridimensional fortes. Isto é devido a uma técnica denominada grattage. Esta ténica foi inventada por Ernst e pelo pintor surrealista Joan Miró.] (Daqui)



Na Floresta do alheamento


        Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver diz-me que é muito cedo ainda...
        Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei porquê...
Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção bóia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.
Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-me, como a brisa aos perfis das copas.
Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra. Sou todo confusão quieta... Para que há-de um dia raiar?... Custa-me o saber que ele raiará, como se fosse um esforço meu que houvesse de o fazer aparecer.
Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Bóio no ar, entre velar e dormir, e uma outra espécie de realidade surge, e eu em meio dela, não sei de que onde que não é este...
Surge mas não apaga esta, esta da alcova tépida, essa de uma floresta estranha. Coexistem na minha atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam.
Que nítida de outra e de ela essa trémula paisagem transparente! ...
E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia? Para que é que tenho um momento de mo perguntar?... Eu nem sei querê-lo saber...
A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele, vejo essa paisagem..., e a essa paisagem conheço-a há muito, e há muito que com essa mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela. Sinto em mim séculos de conhecer aquelas árvores e aquelas flores e aquelas vias em desvios e aquele ser meu que ali vagueia, antigo e ostensivo ao meu olhar que o saber que estou nesta alcova veste de penumbras de ver...
De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto um vento lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou actual, destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de nocturna. Depois esse vento passa e torna a ser toda só ela a paisagem daquele outro mundo...
Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte dessa terra diversa... E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta alcova visível...
Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher... Um grande cansaço é um fogo negro que me consome... Uma grande ânsia passiva é a vida falsa que me estreita...
Ó felicidade baça!... O eterno estar no bifurcar dos caminhos!... Eu sonho e por detrás da minha atenção sonha comigo alguém. E talvez eu não seja senão um sonho desse Alguém que não existe...
Lá fora a antemanhã tão longínqua! A floresta tão aqui ante outros olhos meus!
E eu, que longe dessa paisagem quase a esqueço, é ao tê-la que tenho saudades dela, é ao percorrê-la que a choro e a ela aspiro.
As árvores! As flores! O esconder-se copado dos caminhos!...
Passeávamos às vezes, braço dado, sob os cedros e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. A nossa carne era-nos um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte. Dávamo-nos as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria o ser sensual e o querer realizar em carne a ilusão do amor...
No nosso jardim havia flores de todas as belezas... — rosas de contornos enrolados, lírios de um branco amarelecendo-se, papoilas que seriam ocultas se o seu rubro lhes não espreitasse presença, violetas pouco na margem tufada dos canteiros, miosótis mínimos, camélias estéreis de perfume... E, pasmados por cima de ervas altas, olhos, os girassóis isolados fitavam-nos grandemente.
Nós roçávamos a alma toda vista pelo fresco visível dos musgos e tínhamos, ao passar pelas palmeiras, a intuição esguia de outras terras... E subia-nos o choro à lembrança, porque nem aqui, ao sermos felizes, o éramos...
Carvalhos cheios de séculos nodosos faziam tropeçar os nossos pés nos tentáculos mortos das suas raízes... Plátanos estacavam... E ao longe, entre árvore e árvore de perto, pendiam no silêncio das latadas os cachos negrejantes das uvas...
O nosso sonho de viver ia adiante de nós, alado, e nós tínhamos para ele um sorriso igual e alheio, combinado nas almas, sem nos olharmos, sem sabermos um do outro mais do que a presença apoiada de um braço contra a atenção entregue do outro braço que o sentia.
A nossa vida não tinha dentro. Éramos fora e outros. Desconhecíamo-nos, como se houvéssemos aparecido às nossas almas depois de uma viagem através de sonhos...
Tínhamo-nos esquecido do tempo, e o espaço imenso empequenara-se-nos na atenção. Fora daquelas árvores próximas, daquelas latadas afastadas, daqueles montes últimos no horizonte haveria alguma coisa de real, de merecedor do olhar aberto que se dá às coisas que existem?...
Na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho marcavam horas irreais... Nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena...
O movimento parado das árvores: o sossego inquieto das fontes; o hálito indefinível do ritmo íntimo das seivas; o entardecer lento das coisas, que parece vir-lhes de dentro a dar mãos de concordância espiritual ao entristecer longínquo, e próximo à alma, do alto silêncio do céu; o cair das folhas, compassado e inútil, pingos de alheamento, em que a paisagem se nos torna toda para os ouvidos e se entristece em nós como uma pátria recordada — tudo isto, como um cinto a desatar-se, cingia-nos, incertamente.
Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do Tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade do espaço... Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali!... Horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial, séculos interiores de paisagem externa... E nós não nos perguntávamos para que era aquilo, porque gozávamos o saber que aquilo não era para nada.
Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la ela estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo outonal...
Orlas de mares desconhecidos tocavam no horizonte de ouvirmos, praias que nunca poderíamos ver, e era-nos a felicidade escutar, até vê-lo em nós, esse mar onde sem dúvida singravam caravelas com outros fins em percorrê-lo que não os fins úteis e comandados da Terra.
Reparávamos de repente, como quem repara que vive, que o ar estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em cetins, o marulho esfregado das folhas estava mais entranhado em nós do que a consciência de o ouvirmos.
E assim o murmúrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo monótono e esquecido do mar eterno punham à nossa vida abandonada uma auréola de não a conhecermos. Dormimos ali acordados dias, contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da cor dos amores e do sabor dos ódios. Julgávamo-nos imortais...
Ali vivemos horas cheias de um outro sentimo-las, horas de uma imperfeição vazia e tão perfeitas por isso, tão diagonais à certeza rectângula da vida. Horas imperiais depostas, horas vestidas de púrpura gasta, horas caídas nesse mundo de um outro mundo mais cheio do orgulho de ter mais desmanteladas angústias...
E doía-nos gozar aquilo, doía-nos... Porque, apesar do que tinha de exílio calmo, toda essa paisagem nos sabia a sermos deste mundo, toda ela era húmida da pompa de um vago tédio, triste e enorme e perverso como a decadência de um império ignoto...
Nas cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de luz. Meus lábios, que eu sei que estão pálidos, sabem um ao outro a não quererem ter vida.
O ar do nosso quarto neutro é pesado como um reposteiro. A nossa atenção sonolenta ao mistério de tudo isto é mole como uma cauda de vestido arrastado num cerimonial no crepúsculo.
Nenhuma ânsia nossa tem razão de ser. Nossa atenção é um absurdo consentido pela nossa inércia alada.
Não sei que óleos de penumbra ungem a nossa ideia do nosso corpo. O cansaço que temos é a sombra de um cansaço. Vem-nos de muito longe, como a nossa ideia de haver a nossa vida...
Nenhum de nós tem nome ou existência plausível. Se pudéssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo riríamos sem dúvida de nos julgarmos vivos. O frescor aquecido do lençol acaricia-nos (a ti como a mim decerto) os pés que se sentem, um ao outro, nus.
Desenganemo-nos, meu amor, da vida e dos seus modos. Fujamos a sermos nós... Não tiremos do dedo o anel mágico que chama, mexendo-se-lhe, pelas fadas do silêncio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento...
E ei-la que, ao irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra vez, a floresta muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa tristeza. Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia do mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa floresta misteriosa enquadra...
As flores, as flores que ali vivi! Flores que a vista traduzia para seus nomes, conhecendo-as, e cujo perfume a alma colhia, não nelas mas na melodia dos seus nomes... Flores cujos nomes eram, repetidos em sequência, orquestras de perfumes sonoros... Árvores cuja volúpia verde punha sombra e frescor no como eram chamadas... Frutos cujo nome era um cravar de dentes na alma da sua polpa... Sombras que eram relíquias de outroras felizes... Clareiras, clareiras claras, que eram sorrisos mais francos da paisagem que se bocejava em próxima... Ó horas multicolores!... Instantes-flores, minutos-árvores, ó tempo estagnado em espaço, tempo morto de espaço e coberto de flores, e do perfume de flores, e do perfume de nomes de flores!...
Loucura de sonho naquele silêncio alheio!...
A nossa vida era toda a vida... O nosso amor era o perfume do amor... Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade...
Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer... Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria... E assim como ela era duas — de realidade que era, a ilusão — assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não ele próprio, se o incerto outro viveria...
Quando emergíamos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a querer soluçar...
Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados, cheios do tédio inúmero de ser... Cheios, sim, do tédio de ser, de ter de ser qualquer coisa, realidade ou ilusão — e esse tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos... E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto...
E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos... Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos coisa alguma... Não tínhamos vida que a Morte precisasse para matar. Éramos tão ténues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo duma palmeira.
Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das coisas e dos seres ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência. Imobilizara-se, para nos sentir senti-la, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a alma vergada dos frutos...
E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparámos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser...
Zumbe uma mosca, incerta e mínima...
Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza sossobra e o meu compreender-me, embalado de ópios, adormece...
A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora...
Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos...
Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que se quer e menos do que se espera.
Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é.
Não choremos, não odiemos, não desejemos...
Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto da nossa Imperfeição...
s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
  - 251.
"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986. (Daqui)

domingo, 23 de agosto de 2015

"Quem poderá calcular a órbita da sua própria alma?" - Texto de Oscar Wilde


 

«As pessoas cujo desejo é unicamente a auto-realização, nunca sabem para onde se dirigem. Não podem saber. Numa das acepções da palavra, é obviamente necessário, como o oráculo grego afirmava, conhecermo-nos a nós próprios. É a primeira realização do conhecimento. Mas reconhecer que a alma de um homem é incognoscível é a maior proeza da sabedoria. O derradeiro mistério somos nós próprios. Depois de termos pesado o Sol e medido os passos da Lua e delineado minuciosamente os sete céus, estrela a estrela, restamos ainda nós próprios. Quem poderá calcular a órbita da sua própria alma?»

Oscar Wilde, in 'De Profundis' 


"Nos dias de hoje existem professores de filosofia, mas não filósofos."
 
"There are nowadays professors of philosophy, but not philosophers." 

Henry David Thoreau, Walden, Volume 1, - Página 25,
Houghton, Mifflin, 1854 - 357 páginas


quarta-feira, 19 de agosto de 2015

"Manuel Bandeira" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


Katsushika Hokusai, The Great Wave off Kanagawa, 1831
(A Grande Onda de Kanagawa, a mais famosa Xilogravura de Hokusai, a primeira da série 36 vistas de Monte Fuji)



Manuel Bandeira


Este poeta está
Do outro lado do mar
Mas reconheço a sua voz há muitos anos
E digo ao silêncio os seus versos devagar

Relembrando
O antigo jovem tempo quando
Pelos sombrios corredores da casa antiga
Nas solenes penumbras do silêncio
Eu recitava
"As três mulheres do sabonete Araxá"
E minha avó se espantava

Manuel Bandeira era o maior espanto da minha avó
Quando em manhãs intactas e perdidas
No quarto já então pleno de futura
Saudade
Eu lia
A canção do "Trem de ferro"
E o "Poema do beco"

Tempo antigo lembrança demorada
Quando deixei uma tesoura esquecida nos ramos da cerejeira
Quando
Me sentava nos bancos pintados de fresco
E no Junho inquieto e transparente
As três mulheres do sabonete Araxá
Me acompanhavam
Tão visíveis
Que um eléctrico amarelo as decepava

Estes poemas caminharam comigo e com a brisa
Nos passeados campos da minha juventude
Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro
E foram parte do tempo respirado. 


in Geografia, 1967


Retrato de Manuel Bandeira, 1931, óleo sobre tela, de Candido Portinari


Manuel Bandeira (Recife, 19 de abril de 1886 — Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1968) foi um poeta, crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor brasileiro.
Considera-se que Bandeira faça parte da geração de 1922 da literatura moderna brasileira, sendo seu poema Os Sapos o abre-alas da Semana de Arte Moderna de 1922. Juntamente com escritores como João Cabral de Melo Neto, Paulo Freire, Gilberto Freyre, Clarice Lispector e Joaquim Nabuco, entre outros, representa o melhor da produção literária do estado de Pernambuco(Daqui)





"Ler um livro é para o bom leitor conhecer a pessoa e o modo de pensar de alguém que lhe é estranho. É procurar compreendê-lo e, sempre que possível, fazer dele um amigo." 



terça-feira, 18 de agosto de 2015

"Os Filhos" - Texto de Khalil Gibran


Frédéric Bazille (French Impressionist painter, 1841 – 1870), Scène d'été, 1869
 
 

Os Filhos
(Do Livro "O Profeta")

Uma mulher que carregava o filho nos braços disse: "Fala-nos dos filhos."
E ele falou:

"Vossos filhos não são vossos filhos.
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos,
porque eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;
Pois suas almas moram na mansão do amanhã,
que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós,
porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.
O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força
para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.
Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja vossa alegria:
Pois assim como Ele ama a flecha que voa,
ama também o arco que permanece estável."


Khalil Gibran


segunda-feira, 17 de agosto de 2015

"Desde a Aurora" - Poema de Eugénio de Andrade


Elizabeth Adela Forbes, The Leaf, 1897-1898, watercolour on paper



Desde a Aurora


Como um sol de polpa escura 
para levar à boca, 
eis as mãos: 
procuram-te desde o chão, 

entre os veios do sono 
e da memória procuram-te: 
à vertigem do ar 
abrem as portas: 

vai entrar o vento ou o violento 
aroma de uma candeia, 
e subitamente a ferida 
recomeça a sangrar: 

é tempo de colher: a noite 
iluminou-se bago a bago: vais surgir 
para beber de um trago 
como um grito contra o muro. 

Sou eu, desde a aurora, 
eu — a terra — que te procuro. 


Eugénio de Andrade, in "Obscuro Domínio



4 Non Blondes - What's Up

"Doce Certeza" - Poema de Florbela Espanca





Doce Certeza


Por essa vida fora hás de adorar 
Lindas mulheres, talvez; em ânsia louca, 
Em infinito anseio hás de beijar 
Estrelas d'ouro fulgindo em muita boca! 

Hás de guardar em cofre perfumado 
Cabelos d'ouro e risos de mulher, 
Muito beijo d'amor apaixonado; 
E não te lembrarás de mim sequer... 

Hás de tecer uns sonhos delicados... 
Hão de por muitos olhos magoados, 
Os teus olhos de luz andar imersos!... 

Mas nunca encontrarás p'la vida fora, 
Amor assim como este amor que chora 
Neste beijo d'amor que são meus versos!...


Florbela Espanca,
in "A Mensageira das Violetas"
 


à l'Abbaye-aux-Bois (1826), Paris, musée du Louvre.

domingo, 16 de agosto de 2015

"Remoinho" - Poema de Sebastião da Gama


Pablo Picasso, l’Acteur ( The Actor), 1904-05, oil on canvas


Remoinho


Enrodilhei-me no Vento...
Vou e venho,
vou e venho,
e o Vento sempre a rolar-me,
e agora quero agarrar-me,
lanço a mão a procurar-me,
e é só o Vento que apanho...


(1924-1952), 
In " SERRA-MÃE" 


Pablo Picasso, Woman with a shirt sitting in a chair, 1913


"Pintar é libertar-se, e isso é o essencial."

(Pablo Picasso)


Pablo Picasso, Figures at the seaside , 1931

sábado, 15 de agosto de 2015

"A máscara da palavra" - Poema de Ana Hatherly


A Poesia Visual de Ana Hatherly


“[…] No nosso século, a Poesia Visual, quando surge por intermédio da Poesia Concreta, o que ela propõe não é uma solução de continuidade ou de metamorfose de tendências do passado: muito pelo contrário representa uma posição de ruptura”. (Hatherly 1989, 3)


A máscara da palavra


A máscara da palavra
revela-esconde
o rosto vago
de um sentido mundo

Paraíso acidental
metódico exercício
a máscara da palavra
colou-se ao rosto:
agora é
o nosso mais vital artifício

Com a máscara da palavra
reinventamos
o som da voz amada
que nos inunda
com seu luar de espuma 


Ana Hatherly,
in A idade da escrita, 1998




Poeta de vanguarda, membro destacado do grupo da Poesia Experimental Portuguesa, Ana Hatherly foi um dos teorizadores desse movimento, iniciado nos anos 60 em Lisboa. 
Em 1958 iniciou a sua carreira literária e acabou por produzir uma extensa obra poética, traduzida nas principais línguas europeias e incluída em numerosas antologias internacionais. 
Dedicou-se também à investigação e divulgação da cultura portuguesa do período barroco, tendo publicado numerosos estudos sobre essa matéria e fundado a revista Claro-Escuro.
Doutorada pela Universidade da Califórnia em Berkeley, foi Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa onde fundou e dirigiu o Instituto de Estudos Portugueses. 
O nome Ana Hatherly aparece sempre ligado às vanguardas artísticas portuguesas e, neste campo, a autora deixou uma vasta produção nas áreas das artes visuais, pintura, desenho e cinema. 
O início da sua carreira artística data da década de 1960, tendo exposto os seus trabalhos, pela primeira vez, em 1967. 
Realizou várias exposições individuais e participou em numerosas exposições colectivas portuguesas e internacionais. 
Faleceu a 5 de agosto de 2015, em Lisboa. Tinha 86 anos. (Daqui)






"O meu trabalho começa com a escrita – sou um escritor que deriva para as artes visuais através da experimentação com a palavra. A Poesia Concreta foi um estádio necessário, mas mais importante foi o estudo da escrita, impressa e manuscrita […]. O meu trabalho também começa com a pintura – sou um pintor que deriva para a literatura através dum processo de consciencialização dos laços que unem todas as artes, particularmente na nossa sociedade. […] Em suma, posso dizer que o meu trabalho diz respeito a uma investigação do idioma artístico, particularmente do ponto de vista da representação – mental e visual."

 (Hatherly 1992, 75)



sexta-feira, 14 de agosto de 2015

"Até Amanhã" - Poema de Eugénio de Andrade


Elizabeth Adela Forbes, On a Fine Day, 1903, oil on canvas, Guildhall Art Gallery
 


Até Amanhã


Sei agora como nasceu a alegria, 
como nasce o vento entre barcos de papel, 
como nasce a água ou o amor 
quando a juventude não é uma lágrima. 

É primeiro só um rumor de espuma 
à roda do corpo que desperta, 
sílaba espessa, beijo acumulado, 
amanhecer de pássaros no sangue. 

É subitamente um grito, 
um grito apertado nos dentes, 
galope de cavalos num horizonte 
onde o mar é diurno e sem palavras. 

Falei de tudo quanto amei. 
De coisas que te dou 
para que tu as ames comigo: 
a juventude, o vento e as areias. 


Eugénio de Andrade, in "Até Amanhã"



Bruno Mars - Just The Way You Are