quarta-feira, 31 de julho de 2024

"O Homem que contempla" - Poema de Rainer Maria Rilke


David Bailly (Dutch Golden Age, 1584–1657), Self-Portrait with Vanitas Symbols, c. 1651,
Museum De Lakenhal in Leiden, Netherlands.
 


O Homem que contempla
 
 
Vejo que as tempestades vêm aí
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos,
batem nas minhas janelas assustadas
e ouço as distâncias dizerem coisas
que não sei suportar sem um amigo,
que não posso amar sem uma irmã.

E a tempestade rodopia, e transforma tudo,
atravessa a floresta e o tempo
e tudo parece sem idade:
a paisagem, como um verso do saltério,
é pujança, ardor, eternidade.

Que pequeno é aquilo contra que lutamos,
como é imenso, o que contra nós luta;
se nos deixássemos, como fazem as coisas,
assaltar assim pela grande tempestade, —
chegaríamos longe e seríamos anónimos.

Triunfamos sobre o que é Pequeno
e o próprio êxito torna-nos pequenos.
Nem o Eterno nem o Extraordinário
serão derrotados por nós.
Este é o anjo que aparecia
aos lutadores do Antigo Testamento:
quando os nervos dos seus adversários
na luta ficavam tensos e como metal,
sentia-os ele debaixo dos seus dedos
como cordas tocando profundas melodias.

Aquele que venceu este anjo
que tantas vezes renunciou à luta.
esse caminha ereto, justificado,
e sai grande daquela dura mão
que, como se o esculpisse, se estreitou à sua volta.
Os triunfos já não o tentam.
O seu crescimento é: ser o profundamente vencido
por algo cada vez maior. 


Rainer Maria Rilke
, in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira 
 
 
"O Livro das Imagens" de Rainer Maria Rilke
Tradução: Maria João Costa Pereira
Editora: Relógio d'Água, 22/11/2005
Nº de páginas: 292


 
Descrição
 
«Enquanto Rilke escreveu muito rapidamente algumas das suas grandes obras, O Livro das Imagens demoraria sete anos a chegar à sua forma final. A primeira edição remonta a Julho de 1902 e recolhia quarenta e cinco poemas escritos entre 1898 e 1901, a maior parte dos quais retirados do diário do autor. Rilke tinha então 26 anos. Em Dezembro de 1906, seria publicada uma segunda edição que modificava e aumentava significativamente a anterior. Eram-lhe acrescentados trinta e sete novos poemas, a ordem inicial pela qual eram apresentados os poemas anteriores fora modificada, um poema foi eliminado, assim como o verso final de um outro, foram dados títulos a poemas que antes os não tinham, outros que se apresentavam separados seriam unificados num só e a obra foi finalmente dividida em dois livros, cada um dos quais com duas partes.
As circunstâncias do poeta desempenhariam igualmente um papel determinante nesta obra, cuja conceção foi pontuada por acontecimentos significativos na sua vida: a atribulada relação amorosa com Lou Andreas-Salomé, as duas viagens de ambos à Rússia, a estada em Worspwede durante a qual conheceria a escultora Clara Westhoff, sua futura mulher, e Paula Becker, com quem manteve uma relação ambivalente, o período que passou em Paris, o nascimento da filha Ruth e o seu progressivo distanciamento da família.
Podem seguir-se em O Livro das Imagens os indícios destes acontecimentos e respetivas influências, pois ele constitui como que uma compilação das diferentes fases criativas do autor, dando-lhe um carácter híbrido e algo desconcertante.» (daqui)
 

terça-feira, 30 de julho de 2024

"Monólogo da Noite" - Poema de Ribeiro Couto



Jacob van Ruisdael (Dutch painter, draughtsman, and etcher, c. 1629 –1682),
Windmill at Wijk bij Duurstede, c. 1670. Rijksmuseum, Amsterdam.


Monólogo da Noite 


Esta noite estou triste e não sei a razão.
Vou, para espairecer minha melancolia,
Ouvir o mar, que o mar é uma consolação.
Paro junto do cais olhando a água sombria.
Intermitente, sob o véu da cerração,
Vejo uma luz vermelha a acenar-me... "Confia!"
Obrigado, farol que és como um coração...

A água negra, noturna, a bater contra o cais,
Ilude a minha dor fútil de vagabundo.
E o farol a acenar de longe... "Espera mais!"
Recordo... "António, que o paquete fosse ao fundo!"
Depois, fico a pensar nos que foram leais,
Nos que tiveram a coragem de ir do mundo
E numa noite assim se atiraram do cais.

Água eterna... água terrível... água imortal...
Apavora-me a sua aparência sombria.
Se eu pudesse acabar de uma vez o meu mal!
Mas tenho medo. "Não... A água está muito fria.
Além de fria é funda e tem gosto de sal."
E surpreendo-me, a chorar de covardia,
Dizendo ao vento esse monólogo banal.


Ribeiro Couto
, Poemetos de Ternura e de Melancolia, 1924.
  In Poesias reunidas, Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960.


 
 
 "Não tenho medo das tempestades porque sei como guiar meu navio". 

Louisa May Alcott,  in "As Mulherzinhas" (Little Women), 1868. 



Jacob van Ruisdael, Stormy Sea with Sailing Vessels, 1668, Thyssen-Bornemisza Museum.
 

Provérbios sobre o Mar

 
"Quem é do Mar, não enjoa."

"Grande nau, grande tormenta."

"Quem vai ao Mar, perde o lugar."

"Gaivotas em terra, tempestade no Mar."

"Não se afoga no Mar, o que lá não entrar."

"Os Mares mais calmos, são os mais profundos."

"O Mar aproxima, as terras que ele separa."

"Antes o Mar por vizinho, do que, cavaleiro mesquinho."

"O Mar que, é Mar, nem sempre dá, hoje não dá, amanhã haverá."

"Quando o Mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão."

"Alto Mar e não de vento, não promete seguro tempo."

"Sem razão se queixa do Mar, quem outra vez navega."

"Quem anda no Mar, não faz do vento o que quer."

"Não pude passar o Mar, sem de fortuna me queixar."

"Enquanto o Mar bonança, todos são bons pilotos."

"Quem não entrar no Mar, nele não se afogará."

"Nem com o Mar contar, nem a muitos fiar."

"Vista bela é ver o Mar e morar em terra."

"Quem o Mar gaba, não tem visto a praia."

"Nem muito ao Mar, nem muito à terra."

"Quem vai ao Mar, avia-se em terra."

"Não há Mar bravo, que não amanse."

"Repartiu-se o Mar e fez-se sal."

"No Mar bravo, às vezes há bonança."

"No Mar anda, para quem nós ganha."

"Jornada de Mar, não se pode taxar."

"Homem do Mar, cabeça no ar."

"Há Mar e Mar, há ir e voltar."

"Nau grande, pede Mar fundo."

"É inútil levar água ao Mar."
(daqui)
 
“O que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano.” — Isaac Newton físico e filósofo inglês 1643–1727 Em 1687, Explicando a sua Terceira Lei de Newton - Ação e Reação

Fonte: https://citacoes.in/topicos/mar/
“O que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano.” — Isaac Newton físico e filósofo inglês 1643–1727 Em 1687, Explicando a sua Terceira Lei de Newton - Ação e Reação

Fonte: https://citacoes.in/topicos/mar/
“O que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano.” — Isaac Newton físico e filósofo inglês 1643–1727 Em 1687, Explicando a sua Terceira Lei de Newton - Ação e Reação

Fonte: https://citacoes.in/topicos/mar/
 
 
 
“O que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano.” — Isaac Newton físico e filósofo inglês 1643–1727 Em 1687, Explicando a sua Terceira Lei de Newton - Ação e Reação

Fonte: https://citacoes.in/topicos/mar/
“O que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano.” — Isaac Newton físico e filósofo inglês 1643–1727 Em 1687, Explicando a sua Terceira Lei de Newton - Ação e Reação

Fonte: https://citacoes.in/topicos/mar/

segunda-feira, 29 de julho de 2024

"O convite à viagem" - Poema de Charles Baudelaire


 ("Luxury, Calm and Pleasure"), 1904. Oil on canvas, 98.5 cm × 118.5 cm,
   Musée d'Orsay, Paris, France.
 
[The painting's title comes from the poem L'Invitation au voyage, from Charles Baudelaire's volume Les Fleurs du mal (The Flowers of Evil).]
 

O convite à viagem

 
Minha doce irmã,
Pensa na manhã
Em que iremos, numa viagem,
Amar a valer,
Amar e morrer
No país que é a tua imagem!
Os sóis orvalhados
Desses céus nublados
Para mim guardam o encanto
Misterioso e cruel
De teu olho infiel
Brilhando através do pranto.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

Os móveis polidos,
Pelos tempos idos,
Decorariam o ambiente;
As mais raras flores
Misturando odores
A um âmbar fluido e envolvente,
Tetos inauditos,
Cristais infinitos,
Toda uma pompa oriental,
Tudo aí à alma
Falaria em calma
Seu doce idioma natal.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

Vê sobre os canais
Dormir junto aos cais
Barcos de humor vagabundo;
É para atender
Teu menor prazer
Que eles vêm do fim do mundo.
- Os sanguíneos poentes
Banham as vertentes,
Os canis, toda a cidade,
E em seu ouro os tece;
O mundo adormece
Na tépida luz que o invade.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.


Charles Baudelaire
, in "As flores do mal".
 Edição bilingue. Tradução de Ivan Junqueira
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
 
 
 
 Charles Baudelaire, "As flores do mal".
 Edição bilingue. Tradução de Ivan Junqueira
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
 
 
 L’invitation au voyage

 
Mon enfant, ma soeur,
Songe à la douceur
D'aller là-bas vivre ensemble!
Aimer à loisir,
Aimer et mourir
Au pays qui te ressemble!
Les soleils mouillés
De ces ciels brouillés
Pour mon esprit ont les charmes
Si mystérieux
De tes traîtres yeux,
Brillant à travers leurs larmes.

Là, tout n'est qu'ordre et beauté,
Luxe, calme et volupté.

Des meubles luisants,
Polis par les ans,
Décoreraient notre chambre;
Les plus rares fleurs
Mêlant leurs odeurs
Aux vagues senteurs de l'ambre,
Les riches plafonds,
Les miroirs profonds,
La splendeur orientale,
Tout y parlerait
À l'âme en secret
Sa douce langue natale.

Là, tout n'est qu'ordre et beauté,
Luxe, calme et volupté.

Vois sur ces canaux
Dormir ces vaisseaux
Dont l'humeur est vagabonde;
C'est pour assouvir
Ton moindre désir
Qu'ils viennent du bout du monde.
— Les soleils couchants
Revêtent les champs,
Les canaux, la ville entière,
D'hyacinthe et d'or;
Le monde s'endort
Dans une chaude lumière.

Là, tout n'est qu'ordre et beauté,
Luxe, calme et volupté. 


Charles Baudelaire
, "Les Fleurs du mal"
(1857 - 1861 - 1868) 
 

Charles Baudelaire, "As flores do mal".
Editora: Penguin-Companhia
 

Resumo 
 
 
Edição bilíngue de um dos mais influentes livros de poemas da modernidade. Obra poética completa de Baudelaire em nova tradução. 
Grafado pelo autor originalmente com letra maiúscula, o “Mal” de Baudelaire é um conceito, uma perceção que perpassa a sua obra e expõe o caráter humano. Livro inovador, que nas palavras de Marcel Raymond e Paul Valéry funda uma espécie de “movimento poético contemporâneo”, As flores do mal foi responsável por uma escandalosa transformação da literatura mundial ao misturar estilos elevados e populares, influenciando escritores como André Gide, Marcel Proust, James Joyce, Thomas Mann, entre outros. 
A primeira edição, publicada em 1857, quando Baudelaire tinha 36 anos, logo se torna objeto de um processo judicial que culmina na proibição de seis poemas. A segunda edição, de 1861, suprime os poemas censurados e inclui outros 35. O poeta também tradutor de Edgar Allan Poe e crítico de arte  foi alvo de discórdia também nos círculos literários. Conhecido por encarar a vida com uma paixão enfastiada, Baudelaire transformou o universo a sua volta em uma poesia forte, visceral e por vezes perniciosa. 
Este volume bilíngue reúne toda a poesia de Baudelaire: As flores do mal tal como publicado em 1861 e os poemas acrescidos à edição póstuma de 1868, em uma edição especial que demonstra toda a potência de um autor ainda hoje “maldito”. (daqui)
 
 

domingo, 28 de julho de 2024

"Encontro" - Poema de Almada Negreiros


Gregorio Prieto (Pintor español asociado a la generación del 27, 1897-1992),
Encuentro
, 1930-31
, Museo Gregorio Prieto.


Encontro 
 
 
Que vens contar-me
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá para o futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.
Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.
Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que não soube ensinar.
O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce à cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.
Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.
Para que me lastimas
se este é o meu auge?!
Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas
torres de marfim.
Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que faça da porta da torre
que dá para donde vim.
 

José Sobral de Almada Negreiros
(Poema "Encontro" publicado no Diário de Lisboa, 25 Nov. 1937) 
 

sábado, 27 de julho de 2024

"Unidade" - Poema de Raul de Leoni



Hanno Karlhuber (German-Austrian painter, 1946 - 2022), The fly, 1984, Private Collection.


Unidade 
 

Deitando os olhos sobre a perspetiva
Das cousas, surpreendo em cada qual
Uma simples imagem fugitiva
Da infinita harmonia universal

Uma revelação vaga e parcial
De tudo existe em cada coisa viva:
Na corrente do Bem ou na do Mal
Tudo tem uma vida evocativa.

Nada é inútil; dos homens aos insetos
Vão-se estendendo todos os aspetos
Que a ideia da existência pode ter;

E o que deslumbra o olhar é perceber
Em todos esses seres incompletos
A completa noção de um mesmo ser...
 

Raul de Leoni,
em "Luz Mediterrânea", 1922.
 
 

"Luz Mediterrânea e outros poemas" de Raul de Leoni
Editora: WMF Martins Fontes

 
 Luz mediterrânea, de Raul de Leoni, foi um dos livros de poesia brasileira mais reeditados do século XX - apesar de ser tão difícil de classificar. Publicado pela primeira vez em 1922, não era nem modernista nem “passadista”. Sua poesia irónica e meditativa ainda continha traços tanto do simbolismo quanto do parnasianismo, mas superava a ambos ao rejeitar a temática confessional e ao se exprimir em versos límpidos e contidos, de forte sugestão imagética.
O autor, filho das elites fluminenses da República Velha, morreu em 1926, aos 31 anos de idade, vítima de tuberculose. Não deixou outra obra, além de alguns poemas e escritos esparsos. (daqui)
 

sexta-feira, 26 de julho de 2024

"Evocação feminina" - Poema de Virgínia Schall



Claude Monet
 (French painter and founder of impressionist painting, 1840–1926).
Women in the Garden (Femmes au jardin), 1866, Musée d'Orsay.



Evocação feminina 
 
(Dedico este poema às poetas Bárbara Heliodora, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa (in memoria)
 e especialmente à poeta e amiga Stella Leonardos, através das quais evoco todas as mulheres poetas
 de todos os tempos, cujas vozes estiveram caladas por tantos séculos.)

 
Minha voz
rasga véus
cortinas
de dentro
de sempre
desfaz penumbras
e acorda
Bárbaras, Cecílias, Stellas
Henriquetas, Heliodoras.

E suas vozes
em minhas palavras
alteiam
celebram encontros
de amores tantos
salpicam sândalos
no ar.

Sagas passadas
chagas em sangue
vertem
e vibram
amantes perenes
somos todas
onipresentes.

Minhas mãos
tão femininas
mãos de mulher
madura, menina
sonham
acariciam ternas
lúcidas lembranças
pedaços de dias
franjas de ausências
melancolias.

Em suas palmas
conchas
de lágrimas oceânicas
verdejam prantos
horas molhadas
de sofrimento,
surdas, caladas.

O silêncio da solidão
é memória
reverbera
fantasias, ilusões,
onde desaguar
como abraçar
tamanha paixão?

Mãos entrelaçadas
tecem séculos
em teia
de fios farpados
prisão de anjos
eternizados.
Somos etéreas
flores fugazes
pirilampos da vida
pela vida
alinhavadas.

Assim evoco
Bárbara, Cecília, Stella
Henriqueta, Heliodora
cantemos juntas
à nossa felicidade
brindemos uníssonas
à nossa liberdade!
[Escritora, cientista, educadora e poetisa brasileira, 1954 - 2015]


Claude Monet, Le Parc Monceau, 1878, Metropolitan Museum of Art.


"Arte não é pureza; é purificação, não é liberdade; é libertação."

Clarice Lispector
(1920-1977), em crónica "O artista perfeito", 1969
e posteriormente publicada no livro "A Descoberta do Mundo", 1984.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

"O Tempo" - Poema de Eunice Arruda


William Ladd Taylor (American illustrator, 1854-1926), Awaiting His Return, 1889



O Tempo
 
 
Os olhos se resguardam
sob as pálpebras
mas o tempo passa

Junto de nossos passos cautelosos
que ultrapassam mas retornam
sempre
o tempo caminha
Na superfície calma dos retratos
inscreve seu itinerário
e passeia com cautela em nosso rosto
fala pela boca das crianças
murmura no cansaço nossas mortes

Em vão
se preenchem as horas
O tempo carrega em seu rio nossas sementes
para um mar. 


Eunice Arruda

(Poeta brasileira, 1939 - 2017)
 

terça-feira, 23 de julho de 2024

"Os rios" - Poema de João Cabral de Melo Neto


Henri Biva (French artist, 1848–1929), By the river, oil on canvas, 122 x 162 cm.
 


Os rios


Os rios que eu encontro
vão seguindo comigo.
Rios são de água pouca,
em que a água sempre está por um fio.
Cortados no verão
que faz secar todos os rios.
Rios todos com nome
e que abraço como a amigos.
Uns com nome de gente,
outros com nome de bicho,
uns com nome de santo,
muitos só com apelido.
Mas todos como a gente
que por aqui tenho visto:
a gente cuja vida
se interrompe quando os rios. 
 

[O Rio ou Relação da Viagem que Faz o Capibaribe de Sua Nascente à Cidade do Recife publicado em 1953 é um livro de João Cabral de Melo Neto, na sua linha mais popular, como Morte e vida severina.
O Rio é um poema narrativo que tem como narrador o próprio rio que narra a sua viagem, partindo da nascente na aridez do sertão, passando através da fértil zona da mata, até chegar à cidade de Recife.] (daqui)


Henri Biva, Les Nénuphar, oil on canvas, 82 x 65 cm.
 

Henri Biva, A sun drenched river view, oil on canvas, 64.8 x 54 cm.


Henri Biva, Punts moored on still waters, oil on canvas, 61 x 50 cm.
 

Henri Biva, La Rivère, oil on canvas, 61.5 x 50.5 cm.
 

"Os pais se perguntam porque os rios são amargos, quando eles mesmos envenenaram a fonte."
 
John Locke
, Some Thoughts Concerning Education. London: A. and J. Churchill, 1693. 

segunda-feira, 22 de julho de 2024

"Crioulo" - Poema de Manuel Lopes


The Young Man from the Coast (El Costeño), after 1843, Hispanic Society of America.


Crioulo


Há em ti a chama que arde com inquietação
e o lume íntimo, escondido, dos restolhos
— que é o calor que tem mais duração.
A terra onde nasceste deu-te a coragem e a resignação.
Deu-te a fome nas estiagens dolorosas.
Deu-te a dor para que nela
sofrendo, fosses mais humano.
Deu-te a provar da sua taça o agridoce da compreensão,
e a humildade que nasce do desengano...

E deu-te esta esperança desenganada
em cada um dos dias que virão
e esta alegria guardada
para a manhã esperada
em vão...


Manuel Lopes
de "Crioulo e outros poemas", 1964

 
Manuel Lopes, pintura de David Levy Lima (daqui)

Poeta, ensaísta, jornalista e pintor cabo-verdiano, Manuel Lopes nasceu a 23 de dezembro de 1907, na ilha de S. Nicolau, Cabo Verde, e faleceu a 25 de janeiro de 2005, em Lisboa.
Estudou em Coimbra e em S. Vicente, para onde regressou em 1923. Os seus primeiros trabalhos literários foram publicados em 1927, no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, tendo ganho o respetivo concurso de prosa anual. Entre 1931 e 1933, colaborou nos jornais locais Notícias de Cabo Verde e Ressurgimento. Em 1932, integrou o grupo de intelectuais que viria a fundar a revista Claridade quatro anos depois.
Por razões de ordem profissional, foi viver para a ilha açoriana do Faial, em 1944, publicando aí o seu primeiro livro de poemas. Durante os onze anos que lá residiu, fez duas exposições de pintura com trabalhos seus e ajudou a constituir o Núcleo de Cultura da Horta. Fixou-se em Portugal em 1955, onde deu a conhecer ao público as suas principais obras de ficção: Chuva Braba (que venceu o Prémio «Fernão Mendes Pinto», 1956), O Galo cantou na Baía (Prémio «Fernão Mendes Pinto», 1959) e Os Flagelos do Vento Leste (Prémio «Meio Milénio do Achamento das Ilhas de Cabo Verde», 1960). Chuva Braba constitui, sem dúvida, o romance mais marcante da sua obra, pelo estilo direto e coloquial, e também pelas personagens simples e reveladoras da pureza cabo-verdiana. A obra foi traduzida para diversas línguas.
Manuel Lopes é também autor de ensaios, entre os quais se destacam Os Meios Pequenos e a Cultura (1951) e As Personagens de Ficção e Seus Modelos (Separata de «Comunidades Portuguesas», 1973).
Por outro lado, através de obras como Poemas de Quem Ficou (1949) e Crioulo e Outros Poemas (1964), Manuel Lopes dá a conhecer a sua vertente poética. (daqui)

 
José Agustín Arrieta, Escena de Mercado: La Sorpresa (The Surprise), 1850.
Museo Nacional de Historia

"Os animais do mundo existem para os seus próprios propósitos. Não foram feitos para os seres humanos,
 do mesmo modo que os negros não foram feitos para os brancos, nem as mulheres para os homens."
 
Alice Walker, citado em "Vegetarian Times"‎ - Página 68, Revista - jul. 1989
 

domingo, 21 de julho de 2024

"Atração" - Poema de João de Deus


Fernand Toussain (Belgian painter and illustrator, 1873–1956), Contemplation.



Atração


Meus olhos sempre inquietos
Que posso até dizer,
Só acham na alma objetos
Que os possam entreter;

Meus olhos... coisa rara!
Porque hão de em ti parar
Como a corrente para
Em encontrando o mar!?

E penso nisto, cismo...
Mas é tão natural
Cair-se no abismo
Duma beleza tal!...

Olhei!... Foi indiscreta
A vista que te pus.
A pobre borboleta
Viu luz... caiu na luz!

Uma atração mais forte
Que toda a reflexão,
(É fado, é sina, é sorte!)
Me arrasta o coração...

in 'Ramo de Flores', 1868
 
"Ramo de Flores" é uma coletânea de poesias líricas, de João de Deus, onde sobressai a temática amorosa ("Sede de amor", "Enlevo", "Adeus", "Saudade"), centrada no motivo da mulher sedutora ("Sempre!", "Atração", "O seu nome"). Do ponto de vista formal, as composições primam pela musicalidade, frequentemente associada ao uso das formas métricas e estróficas tradicionais (vejam-se, a título de exemplo, os efeitos do uso do verso tetrassílabo em "Simpatia" ou "Saudade"). O volume contém apreciações críticas à coletânea Flores do Campo, assinadas por Alexandre da Conceição, Luciano Cordeiro, Guiomar Torrezão e Cândido de Figueiredo. (daqui)
 

sábado, 20 de julho de 2024

"Amor" - Poema de Edmundo Bettencourt


William-Adolphe Bouguereau (French painter, 1825 - 1905), Idylle, c. 1852.


Amor


Amas de mais, não possuis
o amor que a todos vem.
Quem ama tudo não pode
ser amado por alguém.

Amor de tudo! – ninguém,
mas coração mais fecundo
que, por beijar doutro modo,
só tarde vive no mundo!

De longe o sol nos aquece,
de longe nos abre focos.
– Ó cinco chagas de Cristo,
no espelho de misantropos!

Só chega ao Sol quem tem asas
para um voo longo e leve
– quem antes que a luz o cegue
chega lá desfeito em brasas!


Edmundo Bettencourt,
in "Poemas de Edmundo de Bettencourt"
Assírio & Alvim, 1999
 

William-Adolphe Bouguereau, The Idylle, 1850.


“Amar é a gente querer se abraçar como um pássaro que voa".

Guimarães Rosa (1908-1967), em "Ave, Palavra", 1970 (livro póstumo)
 

"A Esperança" - Poema de Augusto dos Anjos


Alessandro Turchi (Italian painter, 1578–1649), Allegory of Hope, c. 1617-18.



A Esperança


A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam sonhos nas asas da Esperança.

Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?

Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro – avança!

E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da morte a me bradar: descansa!


Augusto dos Anjos, "Eu e Outras Poesias".
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. 
 

sexta-feira, 19 de julho de 2024

"Filhos do Mar" - Poema de Francisco Carvalho


Harold Harvey (Newlyn School painter, 1874–1941), Unloading the boats, Newlyn Harbour, 1906.



Filhos do Mar


Somos do mar e ao mar regressaremos
quando passarem todos esses anos.
Nossas mãos são vestígios desses remos
de argonautas de antigos oceanos.

Somos do mar, das conchas, dos sargaços.
O mar nos rememora e nos inventa.
Ao mar estão ligados nossos braços
como se fossem restos de placenta.

Somos do mar, dos ventos, das procelas
dos bons augúrios, dos momentos maus.
Nossos corpos são mastros ou são velas
singrando as rotas de perdidas naus.

Somos do mar e ao mar, que nos inventa,
nos ligam seios, restos de placenta.


Francisco Carvalho, in Galope de Pégaso, 1994.
 
 
Harold Harvey, The Old Slip, Newlyn, 1908.
 
 
É agradável quando seres iguais se unem, mas é divino quando um grande homem
 eleva para si quem é inferior a ele. 
 
 

Harold Harvey, Orange Sellers, Newlyn, c. 1907.
 

"Quando jovem, o homem acredita estar tão próximo do seu objetivo! De todas as ilusões criadas
 pela natureza para socorrer a fragilidade do nosso ser, esta é a mais bela."

 

Harold Harvey, The Bathers, 1913.


"Você não quer nadar no pântano. Venha agora, venha e vamos tomar banho no mar!"
 
Friedrich Hölderlin
, Hyperion: Empedokles, Página 129 E. Lichtenstein, 1921, 398 páginas.
 

quinta-feira, 18 de julho de 2024

"Ergo meus olhos " - Poema de Armando Côrtes-Rodrigues


Anders Zorn (Swedish painter, sculptor, and etching artist, 1860–1920), Our Daily Bread, 1886.
["Our daily bread" depicts the artist's mother sitting at the edge of a ditch, cooking potatoes
for the harvesters.] Watercolor on paper, 68 cm x102 cm. Nationalmuseum, Stockholm.


Ergo meus olhos


Ergo meus olhos vagos, na distância
Da sombra do meu Ser...
Pairam de mim além, e a minha Ânsia
Cansa de me viver.

Meus olhos espectrais de comoção,
Olhos da alma, olhando-se a si,
Nimbam de luz a longa escuridão
Da vida que vivi.

Auréola de Dor, que finaliza
Na noite do abismo do meu nada;
Silêncio, prece, comunhão sagrada,
Sombra de luz que em Ti me diviniza,
Tortura do meu fim,
Alma ungida
E perdida
Na grandeza de Si. E já sem ver-me,
Maceração crepuscular de Mim,
Agonizo de Ser-me.


Armando Côrtes-Rodrigues
, in 'Revista Orpheu'

Anders Zorn (Swedish painter, sculptor, and etching artist, 1860–1920),
 Hugo Reisinger holding a fashionable grey Homburg hat, 1907. National Gallery of Art.
[Hugo Reisinger, 1856-1914, was a wealthy German-American businessman and art collector.]


"A obra só se completa e vive quando expressa. Nos meus quadros, o ontem se faz presente no agora. Lanço-me na pintura e na vida por inteiro, como um mergulhador na água. A arte é também história. E expressa a nossa humanidade. A arte é intemporal, embora guarde a fisionomia de cada época." 
 
Iberê Camargo (Pintor, professor e gravurista brasileiro, 19141994)
 

"A morte, o espaço e a eternidade" - Poema de Jorge de Sena


Antônio Parreiras (Pintor, desenhista, ilustrador, escritor e professor brasileiro, 1860–1937),
 "Fim de romance, 1912", 1915, Pinacoteca do Estado de São Paulo.


A morte, o espaço e a eternidade

(Ao José Blanc de Portugal,
em memória de um seu ente querido,
que eu muito estimava.)
 
De morte natural nunca ninguém morreu.
Não foi para morrer que nós nascemos,
não foi só para a morte que dos tempos
chega até nós esse murmúrio cavo,
inconsolado, uivante, estertorado,
desde que anfíbios viemos a uma praia
e quadrúmanos nos erguemos. Não.
Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.

Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. Quando aceitamos como natural,
dentro da ordem das coisas ou dos anjos,
o inominável fim da nossa carne; quando
ante ele nos curvamos como se ele fora
inescapável fome de infinito; quando
vontade o imaginamos de outros deuses
que são rostos de um só; quando que a dor
é um erro humano a que na dor nos damos
porque de nós se perde algo nos outros, vamos
traindo esta ascensão, esta vitória, isto
que é ser-se humano, passo a passo, mais.

A morte é natural na natureza. Mas
nós somos o que nega a natureza. Somos
esse negar da espécie, esse negar do que
nos liga ainda ao Sol, à terra, às águas.
Para emergir nascemos. Contra tudo e além
de quanto seja o ser-se sempre o mesmo
que nasce e morre, nasce e morre, acaba
como uma espécie extinta de outras eras.
Para emergirmos livres foi que a morte
nos deu um medo que é nosso destino.
Tudo se fez para escapar-lhe, tudo
se imaginou para iludi-la, tudo
até coragem, desapego, amor,
tudo para que a morte fosse natural.

Não é. Como, se o fora, há tantos milhões de anos
a conhecemos, a sofremos, a vivemos,
e mesmo assassinando a não queremos?
Como nunca ninguém a recebeu
senão cansado de viver? Como a ninguém
sequer é concebível para quem lhe seja
um ente amado, um ser diverso, um corpo
que mais amamos que a nós próprios? Como
será que os animais, junto de nós,
a mostram na amargura de um olhar
que lânguido esmorece rebelado?

E desde sempre se morreu. Que prova?
Morrem os astros, porque acabam. Morre
tudo o que acaba, diz-se. Mas que prova?
Só prova que se morre de universo pouco,
do pouco de universo conquistado.

Não há limites para a Vida. Não
aquela que de um salto se formou
lá onde um dia alguns cristais comeram;
nem bem aquela que, animal ou planta,
foi sendo pelo mundo este morrer constante
de vidas que outras vidas alimentam
para que novas vidas surjam que
como primárias células se absorvam.
A Vida Humana, sim, a respirada,
suada, segregada, circulada,
a que é excremento e sangue, a que é semente
e é gozo e é dor e pele que palpita
ligeiramente fria sob ardentes dedos.
Não há limites para ela. É uma injustiça
que sempre se morresse, quando agora
de tanto que matava se não morre.
É o pouco de universo a que se agarram,
para morrer, os que possuem tudo.
O pouco que não basta e que nos mata,
quando como ele a Vida não se amplia,
e é como a pele do ónagro, que se encolhe,
retráctil e submissa, conformada.
É uma injustiça a morte. É cobardia
que alguém a aceite resignadamente.
O estado natural é complacência eterna,
é uma traição ao medo por que somos,
àquilo que nos cabe: ser o espírito
sempre mais vasto do Universo infindo.

O Sol, a Via Láctea, as nebulosas,
teremos e veremos até que
a Vida seja de imortais que somos
no instante em que da morte nos soltamos.
A Morte é deste mundo em que o pecado,
a queda, a falta originária, o mal
é aceitar seja o que for, rendidos.

E Deus não quer que nós, nenhum de nós,
nenhum aceite nada. Ele espera,
como um juiz na meta da corrida
torcendo as mãos de desespero e angústia,
porque nada pode fazer nada e vê
que os corredores desistem, se acomodam,
ou vão tombar exaustos no caminho.
De nós se acresce ele mesmo que será
o espírito que formos, o saber e a força.
Não é nos braços dele que repousamos,
mas ele se encontrará nos nossos braços
quando chegarmos mais além do que ele.
Não nos aguarda – a mim, a ti, a quem amaste,
a quem te amou, a quem te deu o ser –
não nos aguarda, não. Por cada morte
a que nos entregamos ele se vê roubado,
roído pelos ratos do demónio,
o homem natural que aceita a morte,
a natureza que de morte é feita.

Quando a hora chegar em que já tudo
na terra foi humano — carne e sangue —,
não haverá quem sopre nas trombetas
clamando o globo a um corpo só, informe,
um só desejo, um só amor, um sexo.
Fechados sobre a terra, ela nos sendo
e sendo ela nós todos, a ressurreição
é morte desse Deus que nos espera
para espírito seu e carne do Universo.
Para emergir nascemos. O pavor nos traça
este destino claramente visto:
podem os mundos acabar, que a Vida,
voando nos espaços, outros mundos,
há de encontrar em que se continui.
E, quando o infinito não mais fosse,
e o encontro houvesse de um limite dele,
a Vida com seus punhos levá-lo-á na frente,
para que em Espaço caiba a Eternidade.

Assis, 1 de Abril de 1961, sábado de Aleluia

Jorge de Sena
, in “Metamorfoses”, 1963.