quarta-feira, 31 de julho de 2024

"O Homem que contempla" - Poema de Rainer Maria Rilke


David Bailly (Dutch Golden Age, 1584–1657), Self-Portrait with Vanitas Symbols, c. 1651,
Museum De Lakenhal in Leiden, Netherlands.
 


O Homem que contempla
 
 
Vejo que as tempestades vêm aí
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos,
batem nas minhas janelas assustadas
e ouço as distâncias dizerem coisas
que não sei suportar sem um amigo,
que não posso amar sem uma irmã.

E a tempestade rodopia, e transforma tudo,
atravessa a floresta e o tempo
e tudo parece sem idade:
a paisagem, como um verso do saltério,
é pujança, ardor, eternidade.

Que pequeno é aquilo contra que lutamos,
como é imenso, o que contra nós luta;
se nos deixássemos, como fazem as coisas,
assaltar assim pela grande tempestade, —
chegaríamos longe e seríamos anónimos.

Triunfamos sobre o que é Pequeno
e o próprio êxito torna-nos pequenos.
Nem o Eterno nem o Extraordinário
serão derrotados por nós.
Este é o anjo que aparecia
aos lutadores do Antigo Testamento:
quando os nervos dos seus adversários
na luta ficavam tensos e como metal,
sentia-os ele debaixo dos seus dedos
como cordas tocando profundas melodias.

Aquele que venceu este anjo
que tantas vezes renunciou à luta.
esse caminha ereto, justificado,
e sai grande daquela dura mão
que, como se o esculpisse, se estreitou à sua volta.
Os triunfos já não o tentam.
O seu crescimento é: ser o profundamente vencido
por algo cada vez maior. 


Rainer Maria Rilke
, in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira 
 
 
"O Livro das Imagens" de Rainer Maria Rilke
Tradução: Maria João Costa Pereira
Editora: Relógio d'Água, 22/11/2005
Nº de páginas: 292


 
Descrição
 
«Enquanto Rilke escreveu muito rapidamente algumas das suas grandes obras, O Livro das Imagens demoraria sete anos a chegar à sua forma final. A primeira edição remonta a Julho de 1902 e recolhia quarenta e cinco poemas escritos entre 1898 e 1901, a maior parte dos quais retirados do diário do autor. Rilke tinha então 26 anos. Em Dezembro de 1906, seria publicada uma segunda edição que modificava e aumentava significativamente a anterior. Eram-lhe acrescentados trinta e sete novos poemas, a ordem inicial pela qual eram apresentados os poemas anteriores fora modificada, um poema foi eliminado, assim como o verso final de um outro, foram dados títulos a poemas que antes os não tinham, outros que se apresentavam separados seriam unificados num só e a obra foi finalmente dividida em dois livros, cada um dos quais com duas partes.
As circunstâncias do poeta desempenhariam igualmente um papel determinante nesta obra, cuja conceção foi pontuada por acontecimentos significativos na sua vida: a atribulada relação amorosa com Lou Andreas-Salomé, as duas viagens de ambos à Rússia, a estada em Worspwede durante a qual conheceria a escultora Clara Westhoff, sua futura mulher, e Paula Becker, com quem manteve uma relação ambivalente, o período que passou em Paris, o nascimento da filha Ruth e o seu progressivo distanciamento da família.
Podem seguir-se em O Livro das Imagens os indícios destes acontecimentos e respetivas influências, pois ele constitui como que uma compilação das diferentes fases criativas do autor, dando-lhe um carácter híbrido e algo desconcertante.» (daqui)
 

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