sexta-feira, 12 de julho de 2024

"O poema das crianças traídas" - Poema de Lindolf Bell


Ralph Hedley (British painter, woodcarver and illustrator, 1851–1913), The Tournament, 1898.
(It depicts poorer boys playing outdoors in a rural part of the Northeast of England.)



O poema das crianças traídas

I

Eu vim da geração das crianças traídas.
Eu vim de um montão de coisas destroçadas.
Eu tentei unir células e nervos, mas o rebanho morreu.
Eu fui à tarefa num tempo de drama.
Eu cerzi o tambor da ternura, quebrado.

Eu fui às cidades destruídas para viver os soldados mortos.
Eu caminhei no caos com uma mensagem.
Eu fui lírico de granas presas à respiração.
Eu visualizei as perspetivas de cada catacumba.
Eu não levei serragem ao corpo dos ditadores.
Eu recolhi as lágrimas de todas as mães numa bacia de sombra.
Eu tive a função de porta estandarte nas revoluções.
Eu amei uma menina virgem.

Eu arranquei das pocilgas um brado.
Eu amei os amigos de pés no chão.
Eu fui a criança sem ciranda.
Eu acreditei numa igualdade total.
Eu não fui canção, mas grito de dor.
Eu tive por linguagem materna, roçar de bombas, baionetas.
Eu fechei-me numa redoma para abrir meu coração triste.
Eu fui a metamorfose de Deus.

Eu vasculhei nos lixos para descobrir a pureza.
Eu desci ao centro da terra para colher o girassol que morava no eixo.
Eu descobri que são incontáveis os grãos no fundo do mar,
mas são raros os que sabem o caminho da pérola.
Eu tentei persistir para além e aquém do ser humano, o que foi errado.

Eu procurei um avião liquidado para fazer a casa
Eu inventei um brinquedo das molas de um tanque enferrujado.
Eu construí uma flor de arame farpado para levar na solidão.
Eu deixei um balde no poço para salvar o resto do mundo.
Eu nasci conflito para ser amalgama.

II

Eu sou da geração das crianças traídas.
Eu tenho várias psicoses que não me invalidam.
Eu sou o automóvel a duzentos quilómetros por hora
com o vento a bater-me na cara
na disputa da última loucura que adoeceu.
Eu sou o anti-mundo na medida em que se procura o não existir.
Eu faço de tudo a fonte para alimentar a não limitação.
Eu sei que não posso afastar o corpo que não transcende
mas sei que posso fazer dele a catapulta para sublimar-me.

Meu coração é um prisma.
Eu sou o que constrói porque e mais difícil.
Eu sou o que não é contra, mas o que se impõe.
Eu sou o que quando destrói, destrói com ternura.
E quando arranca, arranca até a raiz.
E põe a semente no lugar.

Eu sou o grande delta dos antros.
Os amigos mais atentos são as águas que me acorrem.

Eu sou o que está com você, solitário.
Quando evito a entrega, restrinjo-me.
Quando laboro a superfície é para exaurir-me.
Quando exploro o profundo é para encontrar-me.
Quando estribo os braços e pernas na praça sobre o não alterável
é para andar a galope sobre a não-liberdade.

III

Sem bandeiras que indiquem norte qualquer,
avanço das caliças.
Sem ponte fixo à espera, nem lar de maternas mãos
ou rua de reencontro.
Instalo os meus adeuses.
Sem credo a não ser a humanidade dos que nos amam e desamam,
anuncio a catarse numa sintaxe de construção.

Eu escreverei para um universo sem concessões.
Eu saberei que a morte não é esterco,
mas a infinita capacidade de colher no chão menos adubado,
que poderei sorvê-la como à laranja que esqueceu de madurar,
que serei alimento para o verme primeiro da madrugada,
que a vida é a face que se incorpora em forma de espasmo,
que tudo será diferente, que tudo será diferente, tão diferente…

Eu quero um plano de vida para conviver.
Eu ostentarei minha loucura erudita.
Eu manterei meu ódio a todos os cetros, cifras, tiranos e exércitos.
Eu manterei meu ódio a toda a arrogante mediocridade dos covardes.
Eu manterei meu ódio à hecatombe do pseudo-amor entre os homens.
Eu manterei meu ódio aos fabricantes das neuroses de paz.
Eu direi coisas sem nexo em cada crepúsculo de lua nova.
Eu denunciarei todas as fraudes da nossa sobrevivência.

Eu estarei na vanguarda para conferir esplendores.
Eu me abastardarei da espécie humana.
Eu farei exceções a todos aqueles que souberam amar.


Lindolf Bell, em "Os Ciclos",
São Paulo: Massao Ohno, 1964.
 

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