quinta-feira, 11 de julho de 2024

"Quem Sonha Mais?" - Poema de Alexander Search (Heterónimo de Fernando Pessoa)


 
Édouard Manet (French modernist painter, 1832–1883), A Bar at the Folies-Bergère, 1882,


Quem Sonha Mais?


Quem sonha mais, vais-me dizer —
Aquele que vê o mundo acertado
Ou o que em sonhos se foi perder?

O que é verdadeiro? O que mais será —
A mentira que há na realidade
Ou a mentira que em sonhos está?

Quem está da verdade mais distanciado —
Aquele que em sombra vê a verdade
Ou o que vê o sonho iluminado?

A pessoa que é um bom conviva, ou esta?
A que se sente um estranho na festa?


Alexander Search, in "Poesia", 1999.
 Assírio & Alvim, edição e tradução de Luisa Freire.
(Heterónimo de Fernando Pessoa)

Alexander Search, "Poesia". Editor: Assírio & Alvim
Edição/reimpressão: 10-1999

 

Alexander Search foi a primeira criação importante do pulso de Pessoa e representa praticamente toda a poesia da sua juventude, escrita entre 1903 e 1910, mas sobretudo entre 1904 e 1908 (dos 16 aos 20 anos), pois aí se situa a maior e a melhor parte da sua produção.

À semelhança do seu irmão Charles James Search, existe no espólio uma ficha biográfica, também escrita em inglês: “Nascido a 13 de Junho de 1888, em Lisboa. Tarefa: tudo o que não seja da competência dos outros três.” A descoberta desta gemelaridade com o próprio Fernando Pessoa, nascido realmente na mesma data e no mesmo local, veio conferir um interesse diferente a esta personagem e ao estudo da poesia assinada com o seu nome. A partir daí e com base em alguns poemas que entretanto foram dados a público nas últimas décadas do século XX, acompanhando breves ensaios temáticos, os estudiosos consideraram-no pseudónimo, heterónimo, pré-heterónimo, semi-heterónimo, sub-heterónimo ou personalidade literária, consoante o modo como viam esta figura misteriosa e intrigante.

A posterior publicação de toda a sua obra veio provar que A. Search não teria sido para Pessoa mais uma personalidade literária, mas uma peça importante do seu “drama em gente”, em que ocupa o papel de precursor ou anunciador de toda a temática futura e das diferentes mundivisões que enformariam os heterónimos, o que lhe confere, quanto a nós, o estatuto de pré-heterónimo. Mas para além da data comum de nascimento, no mesmo local, podemos assinalar a escrita de cartas e a receção de correspondência na morada de F. Pessoa; a assinatura aposta em 18 livros em inglês, francês e português da biblioteca pessoana; a colaboração literária com escritores da vida real, saindo da ficção para intervir publicamente; a passagem da produção atribuída a outras personalidades literárias (David Merrick e Charles Robert Anon) para o seu nome fixando apenas nele um tipo de poesia mais subjetiva e confessional; o grande volume de produção poética (131 poemas e quatro conjuntos de fragmentos) realizada em seu nome ao longo do tempo de juventude, substituindo Pessoa nos anos difíceis do seu regresso a Portugal e da sua adaptação ao meio e registando em inglês as crises, os medos, as aspirações.

Cremos assim que este irmão gémeo, na simplicidade da sua poesia, representa o embrião poético que, em sua “busca” já contém as preocupações metafísicas e os temas recorrentes que irão nortear a obra de Pessoa adulto. Aliás, se alguns dos nomes atribuídos às suas “criaturas” podem ter um sentido e uma qualquer simbologia, Alexander Search, tanto pela raiz grega do primeiro nome como pelo significado do apelido inglês é bem representativo da intenção do seu “criador” e da tarefa que lhe estava destinada de pesquisador do mundo e de explorador do seu Eu mais profundo. É de 1903 a pergunta “Who am I?” inserida nos fragmentos da juventude – Early Fragments – e que seria a pergunta que acompanhou, no seu percurso poético, o próprio Pessoa e os outros dele em que se escreveu, repetindo em múltiplas variantes a temática iniciada pela sua primeira ficção A. Search: a incapacidade de se dizer; a obsessão do tempo e da morte; o destino e nele o sentido de missão, como predestinado; o sonho como realidade; a dúvida permanente e a perceção de um mistério que tudo envolve; o excesso de ser e de pensar que o impede de sentir e de ter paz; o sentimento de exclusão e de diferença em relação aos outros; a tristeza constante em oposição à felicidade alheia; o medo do génio e da loucura que sente em si e a busca incessante da poesia, da beleza, da verdade, do absoluto.

Esta fixação temática, que se repete obsessivamente na produção deste “proto-Pessoa” e se prolongará, embora com menor insistência, ao longo de toda a obra pessoana, levaria Eduardo Lourenço a declarar (em antecipação quase profética em relação à escassa documentação da altura) que, perante “a permanência temática do tempo e da morte”, a poesia de A. Search “contém em germe ou já em versão não retocável […] o essencial de Pessoa definitivo”. O mesmo autor adianta ainda a hipótese de estarmos, desde o começo, “na presença de uma atemporalidade essencial, uma espécie de imobilidade ontológica”. Na impossibilidade de, neste curto espaço, estabelecermos o diálogo entre A. Search e as restantes “vozes” provando a pertinência das afirmações transcritas, apontamos apenas alguns exemplos dos temas acima registados.

Em F. Pessoa o ser anda ligado ao dizer. Ser para se dizer e dizer para se sentir ser foi, já no tempo de Search, um dos grandes objetivos da sua existência. Assim coube a esta primeira “voz” iniciar a busca da razão de ser do próprio ser e da palavra capaz de exprimir e definir esse ser. Em 1904 o jovem deseja: Pudesse o que penso exprimir e dizer […] Pudesse a alma verter, confessar / Os segredos íntimos em meu ser; em 1906 ainda diz que A alma em vão tateia a expressão certa. Curiosamente, em 1933 Fernando Pessoa continua a perseguir esse poema impossível em que me vá o ser.

Mas a busca de si através da expressão que o defina só será possível vencendo a dor que pesa em meu ser, ou despegando-se do inferno do ser, vencendo as suas limitações e fugindo de si mesmo. A sua poesia escreve-se então entre o abismo e a altura, numa dinâmica que vai do descer, do afundarDesço no próprio inferno até ao fim – até ao romper, voar, ultrapassar, fugir, subir, mostrando a força com que o poeta, desde sempre, foi vencendo as crises e as depressões.

Oh, um desejo, uma sede / De minh’alma ultrapassar, / Da consciência romper, / Não sei como, as asas ter / Da lua e nelas voar […]

Também data desse tempo a ideia, tantas vezes expressa em inglês e depois em português, de que o pensamento representa um bem e uma maldição –  Pensar e escrever foi praga e desgraça –  e que esse infernal pensar pode converter-se numa doença, numa prisão ou num veneno, destruidor da alma e da paz, para quem caia Nas malhas do pensamento envenenado. Ao pensamento, o jovem poeta associa também a sua diferença em relação aos outros e a distância que o separa do seu semelhante. Num epitáfio de 1907 e num poema de 1908 o sujeito poético junta ao crime de ter nascido ou ao pecado já de ter vivido esse outro crime de ter pensado.

Em vários poemas deste período encontramos expressa essa incompatibilidade com os outros ou com a realidade circundante: exclusão, diferença, solidão versus sociedade, normalidade, felicidade alheia. Estas contradições geram no poeta atitudes defensivas de rejeição e superação: ao desejo de felicidade, opõe a renúncia; à cobiça do calor humano, opõe o desdém; à angústia da sua solidão, o poeta opõe o orgulho de um bem maior, só seu. Assim, Eu, o eternamente excluído / De todo o convívio e do prazer tem, no seu reverso Não sei o que é que aspiro a ter / Mas isto sei que não posso querer exatamente porque Os homens irmãos, o mundo meu lar, /  São prisões, cadeias de prender e atar.

Datam também do tempo de Pessoa-Search o pensamento analítico e o pensamento lógico que iriam impedir o poeta, presente e futuro, de usufruir as coisas e viver os sentimentos sem os questionar. Assim, se por um lado confessa orgulhoso que Aprendi bem novo a pensar friamente, logo noutro poema podemos ver a desilusão nos versos Oh, que louco fui ao pensar que a lógica / Poderia meu coração acalmar / E que a razão abrandaria o sofrimento; este coração, que em Search aparece frio, cansado, rasgado, destroçado, insensível, não parece realmente destinado ao amor, pois ele mesmo nos diz que Para a alegria e o amor não nasci.

Decorrentes, portanto, de um pensamento constante e de um permanente duvidar e questionar, sobrepondo-se ao simples sentir de qualquer prazer imediato, irão nascer, desde cedo, as conhecidas dicotomias – pensamento / sentimento, razão / coração, raciocínio / sensação – das quais ficam aqui alguns breves registos, como Pensar e sentir, perpétua cisão ou como A fenda entre razão e sentimento ou ainda Esta elisão abrupta que se deu / Entre o pensar das coisas e a sensação.

Também a visão, interior e exterior, envolve, já ao tempo de Search, uma série de relações antinómicas muito pessoanas – o aparente e o real, o oculto e o visível, o sonho e a realidade. Assim ele perguntará: O que é verdadeiro? O que mais será – / A mentira que há na realidade / Ou a mentira que em sonhos está?

 Para Search (e para Fernando Pessoa e Bernardo Soares) o sonho é a verdade, sendo mentira, ainda que consciente dessa mentira. Pela intensidade com que se sonha e se idealiza, o sonho converte-se em verdade e em realidade. É que eu amo o Real meus sonhos amando.

O fascínio que o sonho exerce naquele que vê o sonho iluminado leva-o a viver dentro de si a realidade irreal das suas ficções – imaginadas, vividas e registadas – convertendo essa irrealidade na realidade da sua obra. Também pelo sonho criativo, único meio de sobrevivência, Pessoa-Search resiste ao niilismo ou à loucura. No entanto, ao voltar à realidade da vida comum e dececionante, o poeta tem consciência de que o sonho é apenas a ilusão a que se prende: Tenho envelhecido / A ver os sonhos passar e desaparecer.

Em A. Search, e de uma maneira geral em toda a poesia inglesa de Pessoa, vemos que o mistério atravessa a maioria das composições e está presente em qualquer tema, sobrepondo-se ao real e ao concreto, pois Tudo contém mais do que aparenta. É o mistério do ser, do mundo, da existência, da natureza, das coisas, do tempo, da morte, do Além. Contudo, todos estes diferentes mistérios estão contidos, segundo o jovem Search (em 1904), num mistério único, chave de todos os porquês e de toda a inquietação: Uma cifra imensa / Da qual a chave é a morte. É esse mistério, sentido como prenúncio de outro Mistério maior que o poeta não consegue captar, que o leva a embrenhar-se, desde muito cedo, na filosofia hermética em busca de uma resposta para as suas inquietações, procurada também nas religiões e na filosofia ocidental.

As coisas são e parecem e o nada sustém / O segredo da vida que contém

Opondo a sensibilidade à sensação e a intuição à visão concreta, o jovem pressente que só pela imaginação poderá chegar a essa verdade oculta, que se esconde no real visível e encontrar / Mais do que as coisas em si revelam ser, / Mas que elas, por si só, não deixam ver.

O mundo é assim um lugar de conflito, onde o espaço exterior dialoga com o espaço interior, este mais real e mais importante para o poeta – um mundo a preto e branco, oculto no escuro ou então de cor oculta, quase sempre de conotação negativa e salpicado de expressões sombrias a refletir o estado de espírito que acompanhou o jovem: sombra noturna, manto sombrio, sombras temidas, sombrios enigmas ou então negros céus, negra escuridão, negro silêncio, etc. Só nos raros poemas em que é descrita a natureza, a cor e a alegria se juntam em curtos momentos de plenitude. Numa obra onde o tempo e a morte dominam, não admira que a sua sombra perpasse em toda a escrita, pois já que De todos na terra triste é a sorte, assim nós Caminhamos do nascimento à morte / Sombrios no riso e no tormento. A consciência do passar do tempo e do curto fio que liga a juventude à morte, deste percurso inevitável que nos levará, através do tempo, Do desconhecido ao desconhecido, faz o jovem preferir a dor de viver à incerteza dos espaços temidos de um Além ignorado. Isso leva-o a escrever, em 1904, que Na morte não vejo libertação - / É melhor o mau que o desconhecido. Desde cedo, portanto, o tempo foi olhado como uma riqueza / De um bem grande de mais para fartar, daí que a tortura do tempo não tenha sido apenas em função da morte, mas também em função da obra. Presentes estão já em Search a consciência do seu valor, por enquanto Sempre aquém do que podia alcançar, a convicção de ter uma tarefa, uma missão a cumprir e a noção de destino superior, de predestinação em relação à escrita. Um dia mais passou e ao passar / Que pensei ou li, que foi criado? […] Nada fiz. O tempo me fugiu / E à Beleza nem uma estátua ergui

 Pessoa-Search deseja já nesta altura o domínio perfeito dos seus instintos, dos seus desejos, das suas fraquezas. É de 1907 o conhecido Pacto (em inglês) que “Alexander Search, residente no Inferno” estabelece com “Jacob Satan, dono, mas não rei desse lugar.” Também ai o jovem poeta se compromete a realizar a sua missão na observância da moral, da decência, da verdade e do bem da humanidade, pois nele a ânsia de conhecimento anda ligada à ânsia de perfeição do iniciado. De notar que para Pessoa nem sempre Satan se identifica com o espírito do mal. Em muitos textos ele é apresentado, seguindo as tradições herméticas, como um espírito de luz, provocador e questionante, libertador das prisões terrenas.

E concluímos esta breve passagem pela obra em nome de A. Search com a primeira estrofe do poema “Nirvana”, onde a consciência adormecida pela imersão no Ser, lhe traz a fruição do não-ser e a fusão, finalmente, dos polos em que se divide. Um não-existir dentro do Ser, / Um etéreo não-ser fundo sentido, / Uma mais que real Idealidade, / Sujeito e objeto um todo unido. Nos breves excertos de poemas que fomos lendo e nas oposições neles contidas parece patente uma outra contradição fundamental, em torno da qual gira toda a estrutura da obra de Pessoa-Search: subjetividade / objetividade. O aspeto dialogante e dicotómico em que se apresentam os poemas de A. Search (e terá interesse assinalar que mais de metade da sua produção se processa em diálogo) já anuncia um diálogo mais amplo, intertextual e intratextual, fruto de um diálogo interior subjacente a eles e correspondente à mundivisão bipartida do poeta, que explodiria em 1914 em português e da qual resultariam os representantes de Aquele que vê o mundo acertado e os continuadores do jovem poeta, o que em sonhos se foi perder.

Esta produção em nome de A. Search vem trazer, além do já apontado, mais algumas revelações que nos parece de interesse sublinhar: uma é o perfeito conhecimento que o poeta tinha, já nessa altura, de si mesmo e das suas capacidades, fruto de uma introspeção constante através dos exercícios de autognose que os poemas de Pessoa-Search representam. A sua poesia juvenil tem assim a função dupla de catarse e também de uma hermenêutica, primeiro passo para atingir um nível superior de conhecimento. Outra é a surpreendente intuição premonitória que Pessoa teve, pela mão de A. Search, do que seria o resto da sua vida, como demonstram os epitáfios de 1907, sobretudo “The story of Solomon Grundy”, que poderia ter sido escrito 28 anos mais tarde, no ano da sua morte. Ainda uma possível revelação é de que o tempo-Search, como momento de pesquisa e de reflexão, representa não só a fixação de uma temática que irá ultrapassar esse tempo, desdobrada e desenvolvida em “tempos-seres”, mas ainda a fixação desse mesmo tempo como matriz do amplo diálogo, feito de diálogos, que ele iniciou, incluindo o diálogo entre as duas línguas. Temos assim, no conjunto da obra pessoana, alguns registos que se situam no prolongamento desta primeira “voz”, concordantes com ela – Fernando Pessoa ortónimo (sobretudo em Fausto), Álvaro de Campos, Bernardo Soares; outros manifestam-se em (aparente) oposição – Alberto Caeiro, Ricardo Reis mas, no fundo, sempre em função desta voz inicial, representada por Alexander Search.

Eduardo Lourenço, Poesia e Metafísica, Lisboa, Sá da Costa, 1983.
Y. K. Centeno e Stephen Reckert, Fernando Pessoa (Tempo. Solidão. Hermetismo), Lisboa, Moraes, 1978.
Luísa Freire, Fernando Pessoa – Entre Vozes, entre Línguas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004.
(daqui)

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