domingo, 15 de setembro de 2024

"Carta de Guia" - Poema de Sebastião da Gama


Artur Franco (Artista plástico português, n. 1950), Leiria antiga, s.d. (Aguarela)
 


Carta de Guia


Mesmo com este calor eu quero ir.
Aos tropeções, aos bordos, de qualquer maneira,
porque há pessoas que estão à minha espera
e que nasceram pra eu me importar com elas.
Há vinte e dois anos que estou a falar de mim
e hei de falar de mim a vida inteira:
tanta coisa que eu tenho para dizer,
e passar ao papel!
A anatomia da minha alma, principalmente,
que há de ficar escrita,
pra que vejam como é esquisito um homem por dentro. 

Mas agora, neste momento,
e noutros iguaizinhos a este,
ponho de parte o binóculo com que me espreito
e graças ao qual tudo o que em mim é pequeno me parece grande
e vou pra frente, apesar do calor,
apesar de ir como um bêbado.
Há mãos estendidas, lábios secos.
Casas aonde o Sol tem pudor de entrar, de tão infectas.
Aonde Deus taparia o nariz, se chegasse à porta.
Quando as palavras são como pensos de linho,
não há nada melhor para a alma, feita de carne em chaga de um homem.
Por isso é que vou indiferente a este calor de Junho.
O binóculo fica à espera.
Eu fico à espera.
Largo barcos e redes,
não aconteça que os outros todos que estão à minha espera
tenham morrido já, quando eu chegar,
ou já não tenham ouvidos para as minhas palavras,
nem lábios que percebam
a frescura de água que eu levar...


Sebastião da Gama
, in Itinerário Paralelo
 
 
Artur Franco, Castelo de Leiria finais século XVIII. (Aguarela)


Castelo de Leiria
 
Dominando e vigiando silenciosamente a cidade do Lis que se estende a seus pés, o castelo medieval de Leiria foi edificado no topo de uma luxuriante e íngreme colina, constituindo um conjunto de rara beleza entre património construído e paisagem natural.
Para além da sua função militar, o castelo de Leiria integra, de forma soberba, uma ala do antigo Palácio de D. Dinis e acolhe ainda as ruínas da sua igreja gótica.
Os primórdios deste castelo - no período anterior à fundação de Portugal - encontram-se envoltos em bruma e esquecimento, dado que escassos ou nenhuns vestígios desse tempo sobreviveram até aos nossos dias.
Com efeito, no contexto das guerras da Reconquista do século XII, Leiria surgia como ponto-chave da estratégia militar de defesa da fronteira sul do Condado Portucalense. Este castelo situava-se numa área de permanentes sobressaltos, zona onde a guerra entre o Islão e o mundo cristão marcava o quotidiano das inseguras povoações localizadas a sul do Rio Mondego.
Ainda príncipe e jovem, D. Afonso Henriques conquista Leiria e o seu castelo aos Mouros. Pouco depois, em 1135, uma notícia informa que a fortaleza estava a ser erguida de raiz. Defendido por uma guarnição comandada pelo cavaleiro Paio Guterres, o castelo leiriense seria alvo, dois anos mais tarde, de um impiedoso assalto das tropas almóadas. Sem o auxílio de D. Afonso Henriques, em pleito na Galiza, Paio Guterres abandona o castelo, após feroz e sangrenta resistência.
O castelo de Leiria iria mudar de mãos ainda por mais duas vezes, colocado definitivamente sob as armas cristãs nos alvores da nacionalidade portuguesa. Em 1144, o castelo é restaurado, ao mesmo tempo que a sua guarnição era reforçada.
Entretanto, Leiria desenvolvia-se e viria a receber carta de foral, sendo-lhe igualmente concedido o título de vila. D. Sancho I confirmaria este estatuto através de novo foral, atribuído cerca de 50 anos depois. Por outro lado, as muralhas estendiam o seu manto protetor às novas áreas da urbe românica.
O castelo de Leiria torna-se importante nas Cortes de 1254, mandadas convocar por D. Afonso III. A parte residencial do Paço Real, que sofreu melhoramentos significativos, assume maior protagonismo no tempo de D. Dinis - altura em que este soberano e sua mulher, a Rainha Santa Isabel, elegem o castelo de Leiria como uma das suas residências sazonais.
Da reforma românica ao tempo de D. Sancho I subsistem ainda partes da barbacã e da cerca amuralhada, reforçada por torres de vigia.
No centro ergue-se o núcleo mais forte e imponente, sob o ponto de vista de defesa militar, destacando-se a poderosa Torre de Menagem, dividida em três andares e coroada por ameias quadrangulares, obra pertencente ao período de D. Dinis.
Debruçada sobre a cidade e solidamente assente na muralha exterior avulta a graciosa Loggia do Paço Real, constituída pelos seus oito belos arcos do gótico ogival - obra que foi reconstruída neste século pelo arquiteto Ernesto Korrodi. Este Paço Real é composto por corpo central de três pisos, ladeado por torreões com arcadas e cobertos por telhados. Interiormente, a clareza dos seus salões reflete uma certa simplicidade de formas e uma grandeza de espaços.
Os panos de muralha, com as suas torres defensivas, ocultam no seu interior outra das preciosidades da Leiria Medieval: a arruinada Igreja de Nossa Senhora da Pena, singular obra religiosa do gótico trecentista, ostentando um singelo portal ogival de cinco arquivoltas apoiadas em belos colunelos. A abside ainda resiste e mostra a sua cobertura de abóbadas nervuradas. Os panos laterais da capela-mor são rasgados por frestas ogivais de dois lumes, encimadas por quadrifólios. (daqui)
 

sábado, 14 de setembro de 2024

"A Canção da Vida" - Poema de Mário Quintana


Leopoldo Gotuzzo (Pintor brasileiro, 1887–1983), Paisagem, 1965.
 


A Canção da Vida

 
A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!) 


Mário Quintana
, in 'Esconderijos do Tempo'
 

Leopoldo Gotuzzo (Pintor brasileiro, 1887–1983), Paisagem,s.d.
 
 
Fundo de quintal...
Silêncio. No velho muro,
uns cacos de sol...


Jorge Fonseca Jr. (1912-1985)
Haicais em "Brasa Dormida" [inédito]

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

"Quase elegia" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Augusto Bracet (Pintor e professor brasileiro, 1881-1960), Paisagem serrana, 1932.



Quase elegia


No tempo dos afonsinhos
havia um homem Fiúza.
Tinha uma cara qualquer
e a engenharia confusa.

Vivendo só na montanha,
respirava ares lavados.
Supunham-lhe mente arguta,
pensamentos elevados.

Saberia as buenas-artes,
seus planos eram geniais.
Tiraram-no então da toca,
levaram-no aos maiorais.

Queremos — clamam as massas —
esse para presidente.
Por trás daqueles bigodes
uma alma palpita e sente.

Fiúza baixou da serra
qual novo homem do destino.
Sucede que aqui embaixo
as coisas piam mais fino.

Enquanto ele oferta às massas
o seu sorriso contente,
eis que surge na surdina
Lacerda, e ferra-lhe o dente.

Corre o pobre à sua furna
e muitos anos passaram.
Tal como os dias e as noites,
as águas surdas rolaram.

Não rolam mais hoje em dia
e os cristãos morrem de sede.
Pois vamos (diz o Velhinho)
tirar Fiúza da rede.

Que venha sem mais tardança
a esta terra comburida.
E aqui, como um taumaturgo,
faça reflorir a vida.

Seria o Velho ou o Capeta
a voz que assim lhe falava?
Se a tentação nos visita,
a razão torna-se escrava.

Descer o alcantil é doce
depois de tanto jejum.
Se der certo, muito bem;
se não, o risco é nenhum.

Chega Fiúza à planície
e vê as casas sem água.
Vê as escolas fechadas
e a moça sem sua anágua,

pois não a pode lavar,
e o jeito é vestir biquíni.
E na soalheira a cigarra,
irónica, tanto mais zine.

Viu os doentes sem banho
e os curumins sem asseio.
E tudo era triste e sujo,
e o belo tornou-se feio.

Isso para mim é sopa,
diz o sábio a seu bigode.
Quero dinheiro graúdo,
comigo a seca não pode.

Deram-lhe toda a pecúnia,
ele tirou o casaco.
Pegou de uma escavadeira,
começa a abrir um buraco.

Lá bem no centro da terra
tem água que é um desperdício.
Dentro, se tanto, de um mês,
quem não se banha é por vício.

Um mês passou-se e outro mês,
sem a menor esperança.
Água é a que corre dos olhos,
numa fluência bem mansa.

Abre-se um poço e outro poço,
a terra inteira se empoça;
mas a bica no ora-veja,
e a multidão geme: “Nossa!”

Sobre a garganta abissal
dos poços, quem se debruça
enxerga o lodo, o calcário,
ou talvez a mula ruça.

Mas água? Na Paulo Afonso,
no Niágara talvez.
(Ou mineral, na garrafa,
como um ovo para endez.)

As procissões ad petendam
comovem Nosso Senhor.
E só assim se tem água,
por obra do seu Amor.

Então, nas altas esferas
se perde a santa paciência.
Fiúza, que fim levou
a tua hidráulica ciência?

E chamando Edgard, conferem-lhe
(a história já chega ao fim)
plenos poderes: até
sobre o caudilho Delfim.

Do pensamento às palavras,
ou desta ao mundo das obras,
uma verdade indiscreta
surge: são tudo manobras.

Volta Fiúza a seu serro,
lá vai sem deixar saudade.
E fica Edgard, nesta história
sem a menor novidade.

Um dia desses o sábio
ressurge, pleno de luz.
(Diz Comte que o homem se agita,
mas a tolice o conduz.)

Edgard que se previna
para levar marretada:
em vez de nova adutora,
que faz o Governo? Nada.

18-02-1954

Carlos Drummond de Andrade,
in Versiprosa, 1967.

 

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

"Felinus" - Poema de Inês Lourenço


Julius Adam (German painter, 1852-1913), Mealtime, Private Collection.



Felinus


A Maria Tobias era preta
e branca. Na parte branca era
Tobias e era Maria na preta. Morou
connosco cinco anos. No sexto, numa
quinta-feira santa pôs-se a dormir
depois de um longo jejum. Ficaram-nos
nas mãos festas desabitadas e os poucos
haveres: uma malga, uma manta, um bebedouro,
que não logramos enviar
para a nova morada.


Inês Lourenço, in "Coisas que nunca",
Editor: &etc, 2010
 
 
 Julius Adam, Kittens at play, Private Collection.
 

 "Se você passar tempo com os animais, corre o risco de se tornar uma pessoa melhor."

Oscar Wilde
(Escritor, poeta e dramaturgo irlandês, 1854–1900)
 

domingo, 8 de setembro de 2024

"Retrato na Praia" - Poema de Carlos Pena Filho



Edward Cucuel (German-american Impressionist painter, 1875–1954),
Summer Dreaming, c. 1911-12.
 


Retrato na Praia

 
Ei-la ao sol, como um claro desafio 
ao tenuíssimo azul predominante. 
Debruçada na areia e assim, diante
 do mar, é um animal rude e bravio. 
 
Bem perto, há um comentário sobre estio, 
mormaço e sonolência. Lá, distante,
 muitos vagos indícios de um navio 
que ela talvez contemple nesse instante. 
 
Mas o importante mesmo é o sol, que esse desliza 
por seu corpo salgado, enxuto e belo, 
como se nuvem fosse, ou quase brisa. 
 
E desce por seus braços, e rodeia 
seu brevíssimo e branco tornozelo,
 onde se aquece e cresce, e se incendeia. 
 

Carlos Pena Filho
, "Livro Geral", 1959
 
 
Edward Cucuel, The bather, s.d.
 
 
Edward Cucuel, The bathers, s.d.
 
 
Edward Cucuel, On the shore, s.d.
 
 
Edward Cucuel, On the dock, s.d.
 
 
Edward Cucuel, Her Favourite Spot, s.d.
 
 
Edward Cucuel, Girl in a boat, s.d.
 
 
Edward Cucuel, An elegant lady by a lake, s.d.
 
 

Edward Cucuel

 
Edward Alfred Cucuel (1875-1954) was a newspaper illustrator turned Impressionist, known especially for his vibrant palettes and portraits of women in dappled landscapes.
Born in San Francisco, Cucuel began his training at the San Francisco School of Design in the late 1880s; his father was a newspaper publisher, and the young Cucuel worked for several newspaper art departments in his teenage years.
Cucuel moved to Paris in 1892 to continue his artistic studies at the Academy Julian and the Ecole des Beaux-Arts. He returned to the United States in 1896, working for half a year as an illustrator in New York, then left once more for Paris. After a couple of years spent painting in that city, Cucuel struck out to travel through France, Italy, and Germany to study the old masterworks in person.
In 1907 he moved to Munich to establish a more permanent residence, training with Leo Putz to more seriously develop his Impressionist painting practice.
Cucuel remained in Germany until 1939, gradually gaining recognition, with his works being shown in Paris salons and at the Art Institute of Chicago.
The outbreak of World War II forced Cucuel to come back to the United States; he lived in Pasadena for the remainder of his life. (daqui)

sábado, 7 de setembro de 2024

"Ode ao Caldo de Congro" - Poema de Pablo Neruda


Jan van Kessel, the Elder (Flemish painter, 1626-1679), Still life of fish in a harbor landscape,
possibly an allegory of the element of water, 1660
.



Ode ao Caldo de Congro


No mar
tormentoso
do Chile
vive o rosado congro,
enguia gigante
de nevada carne.

E nas panelas
chilenas,
na costa,
nasceu o caldo
grávido e suculento,
proveitoso.

Levem para a cozinha
o congro esfolado,
a sua manchada pele cede
como uma luva
e a descoberto fica
então
a uva do mar
o congro tenro
reluz
já nu,
preparado
para o nosso apetite.

Agora
pegas em
alhos,
acaricia primeiro
esse marfim
precioso,
cheira
a sua fragrância iracunda,
então
deixa o alho picado
cair com a cebola
e o tomate
até que a cebola
tenha cor de ouro.

Entretanto
cozem-se ao vapor
os régios
camarões marinhos
e quando estiverem a chegar
ao seu ponto,
quando se consolidar o sabor
num molho
formado pelo suco
do oceano
e pela água clara
que soltou a luz da cebola,
então
que entre o congro
e mergulhe na glória,
que na panela
se azeite,
se contraia e se impregne.

Já só é necessário
deixar no manjar
cair o creme
como uma rosa espessa
e ao lume
lentamente
entregar o tesouro
até que no caldo se aqueçam
as essências do Chile,
e à mesa
cheguem recém-casados
os sabores
do mar e da terra
para que nesse prato
tu conheças o céu.


Pablo Neruda, in Odes Elementares 
Tradução de Luis Pignatelli
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1977
 

 

Oda al Caldillo de Congrio
(Poema original)
 
 
En el mar
tormentoso
de Chile
vive el rosado congrio,
gigante anguila
de nevada carne.
Y en las ollas
chilenas,
en la costa,
nació el caldillo
grávido y suculento,
provechoso.
Lleven a la cocina
el congrio desollado,
su piel manchada cede
como un guante
y al descubierto queda
entonces
el racimo del mar,
el congrio tierno
reluce
ya desnudo,
preparado
para nuestro apetito.
Ahora
recoges
ajos,
acaricia primero
ese marfil
precioso,
huele
su fragancia iracunda,
entonces
deja el ajo picado
caer con la cebolla
y el tomate
hasta que la cebolla
tenga color de oro.
Mientras tanto
se cuecen
con el vapor
los regios
camarones marinos
y cuando ya llegaron
a su punto,
cuando cuajó el sabor
en una salsa
formada por el jugo
del océano
y por el agua clara
que desprendió la luz de la cebolla,
entonces
que entre el congrio
y se sumerja en gloria,
que en la olla
se aceite,
se contraiga y se impregne.
Ya sólo es necesario
dejar en el manjar
caer la crema
como una rosa espesa,
y al fuego
lentamente
entregar el tesoro
hasta que en el caldillo
se calienten
las esencias de Chile,
y a la mesa
lleguen recién casados
los sabores
del mar y de la tierra
para que en ese plato
tú conozcas el cielo.


Pablo Neruda,  
 

Os Pescadores

PEQUENAS NOTAS
 
PEIXES
 
       A raia, para ser boa, deve ser comida de caldeirada de pitau (Mira), menos em Maio, porque «raia em Maio, tumba à porta», e a faneca com três fff – fresca, fria e frita. Cada peixe tem a sua época: «a solha, no tempo do milho, come-a com o teu amigo», a sardinha antes da desova e o próprio caranguejo só lá para Agosto é que, assado na casca, atinge a perfeição. Mas todo o peixe regala quando sai da rede para o lume: tem um sabor único a mar, e até a reluzente savelha e o horrível cação, lavados e amanhados na maré, se tornam toleráveis. Quanto ao linguado, ao goraz, à corvina, à gordíssima sarda, à pescada e à saborosa sardinha, para não falar dos peixes hoje quase desaparecidos, do rodovalho, do peixe-rei, ignora-lhes o sabor e o delicado perfume quem os não trouxe do barco para casa, ainda a escorrer dentro do cabaz, sobre uma cama de algas e de limos. São então esplêndidos assados, fritos, de caldeirada, com um fio de azeite, ou preparados pelo próprio pescador sobre umas brasas. 
       Quando a maré vaza, os pescadores procuram a serrada para iscar os espinéis, e a praia fica a descoberto: as poças de água são joias cheias de reflexos entre o lodo, e cada penedo com a sua cabeleira escura de sargaço – verde húmido e translúcido – é um ser vivo. Em todas as poças faíscam as enguias que se metem nos aloques, o caranguejo traiçoeiro e voraz, que espera a presa na sua clausura de pedra, as mantas de pequenos peixes por criar, reluzindo quando, num movimento brusco, mostram ao mesmo tempo o ventre esbranquiçado, e um bicho mole como a lesma que se arrasta pelo limo. Há fragas enormes, roídas, veneráveis, cobertas de lapas aderentes, de mexilhões aos cachos que, sentindo gente, fecham logo a casa, e onde o azul empoça em buracos que refletem o universo: cabem lá dentro o céu, a luz e as estrelas.
 
       A toninha, que anda sempre atrás do banco da sardinha, afigura-se-me o ser mais feliz do mar. Tem a mesa sempre posta – e inesgotável. Folgam como um bando à solta de rapazes. Dão-me sempre uma impressão de liberdade e de vida deliciosa... Saltam, vê-se-lhes o dorso reluzente, mergulham e irrompem, com o costado azul a escorrer, quando menos se espera, lá ao fundo... Às vezes vêm pela barra dentro, na onda e na espuma, no jorro impetuoso, quando o mar, como um seio que cresce com volúpia e se dilata, se mete pela terra. Setembro – marés vivas.
       – As toninhas! – Alarido na Cantareira: os homens saltam nos barcos. Um à proa leva o arpão, espera o momento e joga-lho. Aquela morre, as outras fogem logo para o mar.
       Entre estes bichos e outros que conheço, pavorosos, há um salto enorme de pesadelo.
       Vi as tremelgas nos fundos espessos e lívidos entre os grandes penedos do Baleal, onde as águas têm a cor horrível das morgues. Pior que podridão – e lá para o fundo um remexer de vida misteriosa. Reparo, e de repente levanta-se de baixo uma revoada de pavor, panos vivos que arfam sacudidos, asas moles e disformes de morcegos que palpitam, dum verde indistinto e elétrico. São as tremelgas, que vêm aos milhares à superfície, não sei como nem para quê, vida que faz cismar e mete medo. Suponho o contacto com aquelas peles viscosas, com aquela vida obscura, nos subterrâneos esverdeados onde a luz não penetra – e fujo! fujo!...

Raul Brandão (1867-1930), em Os Pescadores, 1923.



Jan van Kessel, the Elder, Still Life with Fish and Marine Creatures in a Costal Landscape, 1661,
Städel Museum
 

"O primeiro homem que percebeu a analogia entre um grupo de sete peixes e um grupo de sete dias trouxe um notável avanço à história de pensamento."

Alfred North Whitehead
(1861-1947),
 in Alfred North Whitehead: An Anthology‎ - Página 381,
Filmer Stuart Cuckow Northrop - Macmillan, 1953 - 928 páginas.
 

Jan van Kessel, the Elder, Fighting dog and cat with a still life of marine animals and vegetables, c.1665.
 

"Contaram-me que os peixes não se importam de serem pescados, pois têm o sangue frio e não sentem dor. Mas não foi um peixe que me contou isso".


Heywood Broun
, Sitting on the World‎ - Página 17,
Publicado por G. P. Putnam's sons, 1924 - 276 páginas.
 
 
Jan van Kessel, the Elder, Cats with a still life of marine animals, fruit and vegetables, c.1665.
 

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

"O Coração" - Poema de Castro Alves



Madeleine Lemaire (Peintre, illustratrice et salonnière française, 1845 - 1928),
  An Afternoon Stroll, s.d.
 
 

O Coração

 
O coração é o colibri dourado
Das veigas puras do jardim do céu.
Um – tem o mel da granadilha agreste,
Bebe os perfumes, que a bonina deu.

O outro – voa em mais virentes balças,
Pousa de um riso na nubente flor.
Vive do mel – a que se chama – crenças –,
Vive do aroma – que se diz – amor. 

Recife, 1865. 
 
 

Madeleine Lemaire, Wildflowers in a Basket with a Butterfly, s.d
(Watercolor on paper)
 
 
Em honra da mais pura das violetas
a primavera abre as mais lindas rosas
e pinta de ouro e azul as borboletas.


Gustavo Teixeira (1881-1937),
  in "Os mais belos sonetos que o amor inspirou".
Volume 1, J. G. de Araújo Jorge - Página 166,
 Ed. Vecchi, 1965.
 
 
Madeleine Lemaire, Panier de Roses, 1874.
 
 
Ver um Mundo num Grão de Areia
E um Céu numa Flor silvestre,
Ter o Infinito na palma da sua mão
E a Eternidade numa hora.
 
 〰〰〰
 "To see a World in a Grain of Sand
And a Heaven in a Wild Flower
Hold Infinity in the palm of your hand
And Eternity in an hour." 
 
 

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

"Mar de Setembro" - Poema de Eugénio de Andrade


Édouard Bisson (French painter, 1856–1939), Sitting by the sea, 1882.
 
 

Mar de Setembro


Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves – só
ritmo e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto.
Puríssimo. Doirado.


Eugénio de Andrade,
In «Coração do Dia / Mar de Setembro»,

 
Coração do Dia - Mar de Setembro de Eugénio de Andrade
Edição/reimpressão: 02-2013. Editor: Assírio & Alvim.
Páginas: 80
 

SINOPSE 
 
O terceiro volume da coleção Obras de Eugénio de Andrade reúne os livros «Coração do Dia», publicado pela primeira vez em 1958, e «Mar de Setembro», de 1961. Esta edição respeita escrupulosamente a fixação do texto feita ainda em vida, pelo poeta, e conta com um prefácio do Professor Fernando J.B. Martinho, que nos diz, dos dois conjuntos de poemas que compõem este livro: «A limpidez, a luminosa simplicidade que nos oferta, em ambos estes conjuntos, há que aceitá-la como uma graça de que só a grande poesia é capaz.» 


Despertar

É um pássaro, é uma rosa,
é o mar que me acorda?
Pássaro ou rosa ou mar,
tudo é ardor, tudo é amor.
Acordar é ser rosa na rosa,
canto na ave, água no mar. 
(daqui)
 

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

“O último poema” - Poema de Manuel Bandeira



Leopoldo Gotuzzo (Pintor brasileiro, 1887–1983), Paisagem de Primavera Florida
na Ilha de Paquetá – RJ, 1931
. Óleo sobre tela, 55 X 33 cm.
 


O último poema

 
Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação. 


1930
 
Manuel Bandeira
,
50 poemas escolhidos pelo autor,
Ed. Cosac Naify, São Paulo, 2006. 
 

Manuel Bandeira - 50 poemas escolhidos pelo autor
 Ano de edição : 2006
Editora: Cosac Naify
 
 
 RESUMO
 
Numa obra que não ultrapassa 350 poemas, os cinquenta reunidos neste livro são claramente uma síntese da poética de Manuel Bandeira, feita por alguém que a conhece como ninguém, ou seja, o próprio poeta. O leitor se surpreenderá com os novos significados que brotam a partir do rearranjo (encomendado a Bandeira pelo poeta e editor José Simeão Leal, do antigo Serviço de Documentação do MEC) e com as articulações inesperadas entre poemas muitas vezes lidos, relidos e nem por isso já inteiramente desvendados. Do ácido "Os sapos" à tranquila "Consoada", estão presentes na antologia os temas dominantes em sua poética: a poesia, o erotismo, o Recife da infância, a religiosidade. 
A edição é acompanhada de um CD com 29 poemas lidos pelo próprio Bandeira, um material raro, que durante décadas ficou restrito aos colecionadores, e que sai agora em edição limitada. daqui
 

terça-feira, 3 de setembro de 2024

"Ao meu cão" - Poema de Cristovam Pavia



Andrew Wyeth (American visual artist, primarily a realist painter, working predominantly
 in a regionalist style, 1917 - 2009), "Master Bedroom", 1965.


Ao meu cão


Deixei-te só, à hora de morrer.
Não percebi o desabrigado apelo dos teus olhos
Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de aceitação
De tudo... e apesar disso, sem o pedir, tentando
Insinuar que eu ficasse perto,
Que, se me fosse, a mesma era a tua gratidão.

Não percebi a evidência de que ias morrer
E gostavas da minha companhia por uma noite,
Que te seria tão doce a minha simples presença
Só umas horas, poucas.

Não percebi, por minha grosseira incompreensão,
Não percebi, por tua mansidão e humildade,
Que já tinhas perdoado tudo à vida
E começavas a debater-te na maior angústia, a debater-te com a morte.
E deixei-te só, à beira da agonia, tão aflito, tão só e sossegado.

1966

Cristóvam Pavia ou Cristovam Pavia,
pseudónimo de Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho


Cristovam Pavia
 

Cristovam Pavia foi um poeta português, nascido em 7 de outubro de 1933, em Lisboa, e falecido a 13 de outubro de 1968, na mesma cidade, filho do poeta presencista Francisco Bugalho, oriundo de Castelo de Vide. 

A partir de 1940 reside em Lisboa, onde terminou os estudos liceais. Frequentou a Faculdade de Direito de Lisboa, que abandonará para ingressar na Faculdade de Letras. Entre 1960 e a sua morte, trabalhando na construção civil, viveu entre Lisboa, Castelo de Vide, Paris e Heidelberg, onde recebeu acompanhamento psicoterapêutico. A sua única obra poética publicada em vida, 35 Poemas, data de 1959, embora tenha publicado anteriormente colaboração poética em jornais e revistas, como Diário Popular, Árvore, Anteu, Távola Redonda, Serões

Além do pseudónimo Cristovam Pavia, António Flores Bugalho assinou composições com os pseudónimos, ou "semi-heterónimos" (cf. BENTO, José - introdução, notas e comentários a Poesia de Cristovam Pavia, Lisboa, 1982), Sisto Esfudo, Marcos Trigo e Dr. Geraldo Menezes da Cunha Ferreira.

Para José Bento, "A poesia de Cristovam Pavia é a revelação de si próprio, de uma personalidade em conflito com o mundo em que vive e que procura uma fuga pela recuperação da infância morta, pela aceitação do seu conhecer-se diferente e despojado do que lhe é mais caro (a infância, o amor, o espaço e o tempo em que ambos se situavam), a transformação do seu próprio ser pelo sofrimento, num movimento de ascese e de autodestruição, quando o poeta atinge a consciência de si próprio e da sua voz." ("Sobre a Poesia de Cristovam Pavia", in Poesia de Cristovam Pavia, Lisboa, 1982, p.15). (daqui)

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

"Sabedoria" - Poema de Francisco Bugalho


Frederic Edwin Church (American landscape painter, 1826–1900),
Morning in the Tropics, ca. 1858, Walters Art Museum.



Sabedoria 
 

Nos dias em que nada vale a pena,
E em que as árvores amigas
São iguais e estão vistas,
A vida é tão parada e tão serena
Que afinal já não há que contar mais,
E prevejo, com olhos anormais,
As coisas imprevistas... 

Nos dias em que são cinzentos os meus céus
— O de dentro e o de fora —
E é vaga esta noção de um velho Deus,
Que me não manda embora
Deste espetáculo estafado
Em que de cor sei dizer
O que me foi ensaiado
E o que todos vão fazer,
Tenho inveja dos homens convencidos
Que nem sequer sonharam
Que poderia haver paraísos perdidos,
Ainda não decifraram
Esta charada em que andam envolvidos,
E pensam que, vivendo, triunfaram
Da Vida em que os que sonham são vencidos. 


Francisco José Lahmeyer Bugalho
in "Canções de Entre Céu e Terra"
 

domingo, 1 de setembro de 2024

"Setembro" - Poema de Vasco Graça Moura

 


Damião Martins
(Pintor cubista brasileiro desde 1978), Colheita de uva, s.d.


Setembro


agora o outono chega, nos seus plácidos
meneios pelas vinhas, um dos vizinhos passa
um cabaz de maçãs por sobre a vedação:
redondas, verdes, o seu perfume vai
dentro de quinze dias ser mais forte.

a noite cai mais cedo e apetece
guardar certos vermelhos da folhagem
e amarelos e castanhos nas ladeiras
de setembro. a rádio fala no tempo variável
que vem aí dentro de dias. talvez caia

uma chuvinha benfazeja, a pôr no ponto certo
os bagos de uva. e há poalhas morosas, mais douradas.
aproveita-se o outono no macio
enchimento dos frutos para colhê-lo a tempo.
devagar, devagar. é mais doce no outono a tua pele. 


Vasco Graça Moura
, in "Poesia 2001/2005",
Quetzal Editores, 2006.


Damião Martins, Vindimas, s.d.
 
 
Vindimas

 
As vindimas consistem na colheita dos cachos de uvas, destinados à produção de vinho, quando estas atingem o grau indicado de amadurecimento. Os cachos são então enviados para os lagares, onde começa a produção de diversos tipos de vinhos. Para obter uma boa qualidade de vinho é necessário escolher a data exata em que se deve iniciar as vindimas.

As vindimas têm lugar, habitualmente, em setembro, após uma decisão nesse sentido tomada pelos enólogos, que desde o final de agosto anterior analisam amostragens para controlar a maturação das uvas, assim como a acidez, peso e cor. É necessário encontrar o grau de acidez indicado porque com o passar do tempo os ácidos transformam-se em açúcares, o que leva a um aumento do álcool.

Cabe aos produtores, em função da casta, determinar a relação que mais lhes convém em função do tipo de vinho que pretendem produzir. Posteriormente, deve ser feito o transporte dos cachos nas melhores condições, já que, devido ao calor próprio da época, as uvas amassadas começam a fermentar antes do tempo.

Também é possível prever a melhor altura para as vindimas através de um método popular que consiste em verificar quando murcham os pés das uvas e as peles dos bagos começam a contrair.

Marcada a data da vindima, a cada propriedade onde há cultivo de uvas acorrem então dezenas de trabalhadores sazonais, normalmente oriundos das terras vizinhas, e é iniciado um dos mais característicos momentos da etnografia portuguesa. Muitas vezes são famílias completas que se deslocam para as vindimas, numa tradição que atravessa gerações: as mulheres, auxiliadas pelas crianças, cortam os cachos, que são colocados em cestas de vime. Cabe então aos homens transportar estes cestos para os lagares. Antigamente eram grupos de homens que pisavam as uvas, sistema que gradualmente foi sendo substituído por métodos mecânicos.

Na época das vindimas são organizadas nas diferentes terras ou regiões onde existe esta atividade as chamadas Festas das Vindimas, uma tradição histórica que atrai imensos turistas, como acontece, por exemplo, na região do Douro, a mais antiga região demarcada de vinho do mundo. (daqui)
 
 
Damião Martins, Vindima, s.d.
 

Provérbios do Mês de Setembro
 
  • Trinta dias tem Novembro, Abril, Junho e Setembro; de vinte e oito, só há um, e os mais têm trinta e um.
  • Em Setembro, ardem os montes e secam as fontes.
  • Em Setembro, planta, colhe e cava que é mês para tudo.
  • Setembro a comer e a colher.
  • Setembro molhado, figo estragado.
  • Setembro ou seca as fontes ou leva as pontes.
  • Agosto, debulhar, Setembro, vindimar.
  • Corra o ano como for, haja em Agosto e Setembro calor.
  • Arranja bom Setembro, com a burra fico eu.
  • Chuvas verdadeiras, em Setembro as primeiras.
  • Em Setembro palha no palheiro e meninas ao candeeiro.
  • Em Setembro ramo curto, vindima longa.
  • Em Setembro secam as fontes e as chuvas lavam as pontes.
  • Em Setembro semeia o teu pão.
  • No pó semeia, que Setembro to pagará.
  • Se em Setembro a cigarra cantar, não compres trigo para guardar.
  • Setembro cara de poucos amigos, cara de figos.
  • Setembro é o Maio do Outono.
  • Setembro que enche o celeiro dá triunfo ao rendeiro.
  • Agosto tem a culpa, e Setembro leva a fruta.
  • Nuvens em Setembro: chuva em Novembro e neve em Dezembro.
  • Agosto madura, Setembro vindima.
  • Em Setembro tem Deus a mesa posta.
  • Para vindimar deixa o Setembro acabar.
  • Vindima molhada, pipa depressa despejada.
  • Agosto arder, Setembro beber.
  • Em Agosto secam os montes e em Setembro as fontes.