domingo, 15 de setembro de 2024

"Carta de Guia" - Poema de Sebastião da Gama


Artur Franco (Artista plástico português, n. 1950), Leiria antiga, s.d. (Aguarela)
 


Carta de Guia


Mesmo com este calor eu quero ir.
Aos tropeções, aos bordos, de qualquer maneira,
porque há pessoas que estão à minha espera
e que nasceram pra eu me importar com elas.
Há vinte e dois anos que estou a falar de mim
e hei de falar de mim a vida inteira:
tanta coisa que eu tenho para dizer,
e passar ao papel!
A anatomia da minha alma, principalmente,
que há de ficar escrita,
pra que vejam como é esquisito um homem por dentro. 

Mas agora, neste momento,
e noutros iguaizinhos a este,
ponho de parte o binóculo com que me espreito
e graças ao qual tudo o que em mim é pequeno me parece grande
e vou pra frente, apesar do calor,
apesar de ir como um bêbado.
Há mãos estendidas, lábios secos.
Casas aonde o Sol tem pudor de entrar, de tão infectas.
Aonde Deus taparia o nariz, se chegasse à porta.
Quando as palavras são como pensos de linho,
não há nada melhor para a alma, feita de carne em chaga de um homem.
Por isso é que vou indiferente a este calor de Junho.
O binóculo fica à espera.
Eu fico à espera.
Largo barcos e redes,
não aconteça que os outros todos que estão à minha espera
tenham morrido já, quando eu chegar,
ou já não tenham ouvidos para as minhas palavras,
nem lábios que percebam
a frescura de água que eu levar...


Sebastião da Gama
, in Itinerário Paralelo
 
 
Artur Franco, Castelo de Leiria finais século XVIII. (Aguarela)


Castelo de Leiria
 
Dominando e vigiando silenciosamente a cidade do Lis que se estende a seus pés, o castelo medieval de Leiria foi edificado no topo de uma luxuriante e íngreme colina, constituindo um conjunto de rara beleza entre património construído e paisagem natural.
Para além da sua função militar, o castelo de Leiria integra, de forma soberba, uma ala do antigo Palácio de D. Dinis e acolhe ainda as ruínas da sua igreja gótica.
Os primórdios deste castelo - no período anterior à fundação de Portugal - encontram-se envoltos em bruma e esquecimento, dado que escassos ou nenhuns vestígios desse tempo sobreviveram até aos nossos dias.
Com efeito, no contexto das guerras da Reconquista do século XII, Leiria surgia como ponto-chave da estratégia militar de defesa da fronteira sul do Condado Portucalense. Este castelo situava-se numa área de permanentes sobressaltos, zona onde a guerra entre o Islão e o mundo cristão marcava o quotidiano das inseguras povoações localizadas a sul do Rio Mondego.
Ainda príncipe e jovem, D. Afonso Henriques conquista Leiria e o seu castelo aos Mouros. Pouco depois, em 1135, uma notícia informa que a fortaleza estava a ser erguida de raiz. Defendido por uma guarnição comandada pelo cavaleiro Paio Guterres, o castelo leiriense seria alvo, dois anos mais tarde, de um impiedoso assalto das tropas almóadas. Sem o auxílio de D. Afonso Henriques, em pleito na Galiza, Paio Guterres abandona o castelo, após feroz e sangrenta resistência.
O castelo de Leiria iria mudar de mãos ainda por mais duas vezes, colocado definitivamente sob as armas cristãs nos alvores da nacionalidade portuguesa. Em 1144, o castelo é restaurado, ao mesmo tempo que a sua guarnição era reforçada.
Entretanto, Leiria desenvolvia-se e viria a receber carta de foral, sendo-lhe igualmente concedido o título de vila. D. Sancho I confirmaria este estatuto através de novo foral, atribuído cerca de 50 anos depois. Por outro lado, as muralhas estendiam o seu manto protetor às novas áreas da urbe românica.
O castelo de Leiria torna-se importante nas Cortes de 1254, mandadas convocar por D. Afonso III. A parte residencial do Paço Real, que sofreu melhoramentos significativos, assume maior protagonismo no tempo de D. Dinis - altura em que este soberano e sua mulher, a Rainha Santa Isabel, elegem o castelo de Leiria como uma das suas residências sazonais.
Da reforma românica ao tempo de D. Sancho I subsistem ainda partes da barbacã e da cerca amuralhada, reforçada por torres de vigia.
No centro ergue-se o núcleo mais forte e imponente, sob o ponto de vista de defesa militar, destacando-se a poderosa Torre de Menagem, dividida em três andares e coroada por ameias quadrangulares, obra pertencente ao período de D. Dinis.
Debruçada sobre a cidade e solidamente assente na muralha exterior avulta a graciosa Loggia do Paço Real, constituída pelos seus oito belos arcos do gótico ogival - obra que foi reconstruída neste século pelo arquiteto Ernesto Korrodi. Este Paço Real é composto por corpo central de três pisos, ladeado por torreões com arcadas e cobertos por telhados. Interiormente, a clareza dos seus salões reflete uma certa simplicidade de formas e uma grandeza de espaços.
Os panos de muralha, com as suas torres defensivas, ocultam no seu interior outra das preciosidades da Leiria Medieval: a arruinada Igreja de Nossa Senhora da Pena, singular obra religiosa do gótico trecentista, ostentando um singelo portal ogival de cinco arquivoltas apoiadas em belos colunelos. A abside ainda resiste e mostra a sua cobertura de abóbadas nervuradas. Os panos laterais da capela-mor são rasgados por frestas ogivais de dois lumes, encimadas por quadrifólios. (daqui)
 

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