domingo, 28 de fevereiro de 2021

"Porquinho-da-Índia" - Poema de Manuel Bandeira



Alfred Richardson Barber (British, 1841-1925), Escaped: Two rabbits and a guinea pig, 1880



Porquinho-da-Índia

 
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…

– O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.
 
 
‘Three unknown Elizabethan children’ by unknown Anglo-Netherlandish artist, c.1580.
 Privately owned. Image courtesy of National Portrait Gallery. London. (Daqui)


Adotar um animal, seja de que espécie for, implica um compromisso do tutor, no sentido de lhe disponibilizar todos os recursos necessários para o seu bem estar físico e psicológico. O primeiro passo será o de se informar sobre a espécie escolhida, as suas necessidades alimentares, o seu comportamento social e reprodutivo, as suas características físicas e psicológicas. 
 
Os  porquinhos-da-índia são dos roedores mais populares como animais de companhia. São dóceis com os humanos, o seu tamanho permite serem facilmente manipulados, mesmo por crianças e não são trepadores ou escavadores, o que facilita a manutenção em ambiente doméstico. A sua domesticação tem aproximadamente 3000 anos, muito provavelmente porque começaram a aproximar-se dos aglomerados habitacionais para, oportunisticamente, inspecionarem as lixeiras humanas. Foram, inicialmente, criados para alimentação e mais tarde como animais de laboratório, tendo sido, durante anos, um dos animais mais utilizados em experimentação. 
 
São originários da América do Sul, onde vivem em grandes grupos, à superfície, apesar de se esconderam em buracos nas rochas ou em tocas abandonadas por outros animais, porque não as escavam eles próprios. São presas fáceis de carnívoros de maior tamanho, sendo, devido a este facto, animais tímidos e facilmente assustáveis. As crias nascem em zonas abertas, sem a proteção de um abrigo e estão por sua conta desde logo. Ao contrário da maioria das espécies, são, ao nascimento, pequenas cópias dos adultos, com a pelagem completa e os olhos abertos, depois de longas gestações de cerca de 63 dias (31 dias nos coelhos, 21 dias nos ratos, 16 dias nos hámster). Com dois dias de vida estão a comer o mesmo que os pais. 
 
Foram trazidos para a Europa pelos marinheiros espanhóis, que foram os primeiros a manter esta espécie como animais de estimação. Antes disso eram criados simplesmente para alimentação humana, pelos Incas e ainda hoje, algumas raças o são, mesmo no Reino Unido.

Permanece um mistério o nome dado à espécie, no nosso português, uma vez que a sua origem nada tem a haver com a Índia.

Os porquinhos-da-índia são animais de prado, muito fáceis de manter, quando corretamente acomodados. Precisam simplesmente de um local quente e seco, uma boa dieta herbívora, acesso regular a ervas frescas e espaço para se exercitarem regularmente. As raças de pelo longo, de aspeto mais exótico, exigem mais cuidados na manutenção de uma pelagem sã. Como animais sociais vivem em colónias familiares e esta característica deve ser respeitada quando os mantemos como animais de estimação. (Daqui)
 
 
Algumas raças de porquinhos-da-índia
(Daqui)
 Inglês
 
 
 Teddy
 
 
Abissínio


 Coroado Inglês
 
 
 Ridgeback
 
 
 Peruano
 
 
 Rex
 
 
 Alpaca
 
 
 Coronet
 
 
 Skinny
 
 
 Selvagem

[O porquinho-da-índia selvagem tem hábitos noturnos. Seu corpo é alongado assim como o nariz, que ao contrário do porquinho-da-índia doméstico é arredondado. A coloração  é sempre cinza, enquanto que os  domésticos são de variadas cores.]
 
 
Alfred Richardson Barber, A family of rabbits, c. 1890 
 
 
"Eu não tenho dúvidas que é parte do destino da raça humana, na sua evolução gradual, parar de comer animais." 
 
 
Henry David Thoreau foi um ensaísta e poeta norte-americano, nascido em 1817 e falecido em 1862. Viveu de acordo com as doutrinas existenciais do Transcendentalismo, em larga medida definidas por Ralph Waldo Emerson. Colaborou regularmente com a revista The Dial, onde publicou ensaios e poemas. O relato Walden (1854) expõe a sua experiência de ter vivido só e em contacto com a natureza entre 1845 e 1847 nas margens do lago que dá o nome ao livro. O ensaio Civil Disobedience (Desobediência Civil, 1849) mostra o seu apego e a sua defesa das liberdades civis. (Daqui)

 
ovolactovegetariano

"ovolactovegetariano", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/ovolactovegetariano [consultado em 27-02-2021].
ovolactovegetariano

"ovolactovegetariano", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/ovolactovegetariano [consultado em 27-02-2021].
Alfred Richardson Barber, A rabbit family with carrots and cabbages, 1886 


"Os animais são meus amigos...e eu não como meus amigos." (Daqui)
 


George Bernard Shaw foi um escritor e crítico literário irlandês, nascido a 26 de julho de 1856, em Dublin, e falecido a 2 de novembro de 1950. Foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1925. Oriundo de uma família de poucas posses, nunca frequentou a universidade. Em 1876 mudou-se para Londres e trabalhou como jornalista, embora o seu sonho fosse ser escritor. Nunca deixou de escrever apesar do insucesso dos seus primeiros trabalhos. Tornou-se crítico de teatro, de arte e de música em várias publicações como Saturday Review, Our Corner, The Pall Mall Gazette, The Wordl e The Star.
Como membro da Social Democratic Federation, teve a oportunidade de conhecer a obra de Karl Marx. Desde então tornou-se socialista ativo, membro do Fabian Society, deu palestras e distribuiu panfletos, alguns da sua autoria como The Fabian Manifesto (1884) e Socialism for Millionaires (1901). Participou em várias ações que mais tarde levaram ao aparecimento do Partido Trabalhista (Labour Party). Entretanto escreveu várias peças de carácter político como Arms and the Man (1894), Devil's Disciple (1897), Man and Superman (1902), Major Barbara (1905) e Pygmalion (Pigmalião, 1913). Como socialista convicto, foi um dos opositores à Primeira Guerra Mundial. Após a guerra, escreveu diversas peças de sucesso, como Heartbreak House (1919), Back to Methuselah (1921), St. Joan (1923), The Apple Cart (1929) e Too True to be Good (1932), que lhe proporcionaram o prémio Nobel. (Daqui)  

 
 Edgar Hunt (British, 1876–1953), In the farmyard, 1924 
 

"O que não concebo é degolar um cabrito, asfixiar uma pomba, cortar a nuca de uma galinha ou dar punhaladas num porco para que eu coma seus restos. Não é por uma questão de química biológica o motivo de eu me ter passado para as fileiras do ovolactovegetarianismo, mas pelo imperativo moral de que minha vida não seja mantida às custas da vida de outros seres."

Eduardo Alfonso (1894-1991), médico naturista espanhol 
 
 
 Edgar Hunt, Goats in a Farmyard
 
 
  "O princípio da moral humana começa pelo respeito a toda criatura vivente."
 
 
Albert Schweitzer foi um teólogo, filósofo, músico, organista e médico missionário alemão nascido em 1875, em Kaysersberg (atualmente parte da França), e falecido em 1965, no Gabão, na África. Estudou nas universidades de Estrasburgo, Paris e Berlim. Como médico missionário fundou o seu próprio hospital no Gabão. Recebeu o Prémio Nobel da Paz em 1952, pelo esforço a favor da Irmandade das Nações. Escreveu algumas obras sobre os Livros do Novo Testamento. (Daqui)
 
 
ovolactovegetariano

"ovolactovegetariano", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/ovolactovegetariano [consultado em 27-02-2021

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

"A Carolina" - Poema de Machado de Assis



Elaine Searle - Contemporary botanical painter
 
 

A Carolina

 
Querida, ao pé do leito derradeiro,
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro...

Trago-te flores, — restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos mal feridos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos. 
 
1906
 
Machado de Assis
 

[Em 1868, Machado de Assis (1839-1908) casou com a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais (1835- 1904), irmã de seu amigo e poeta Faustino Xavier de Novaes (1820-1869). A morte da mulher, em 20 de outubro de 1904, depois de 35 anos de convivência, inspirou-lhe o antológico soneto "A Carolina".
O soneto é considerado a melhor peça de sua obra poética. Manuel Bandeira afirmara, anos mais tarde, que é uma das peças mais comoventes da literatura brasileira.] 


Elaine Searle
 
 

Saudade 
 
A palavra “saudade”, genuinamente portuguesa “é um sentimento muito presente como consequência do distanciamento físico e, também, da rutura em relação às rotinas mais simples e banais.” (Porto Editora) 
 
 
Definição: 
(na Infopédia, dicionário da Porto Editora)
 
1. Saudade - Sentimento de mágoa, nostalgia e incompletude, causado pela ausência, desaparecimento, distância ou privação de pessoas, épocas, lugares ou coisas a que se esteve afetiva e ditosamente ligado e que se desejaria voltar a ter presentes;

2. Saudade e Saudades - Lembrança afetuosa de algo ou alguém ausente;

3. Saudades - Cumprimentos a uma pessoa ausente; lembranças;

4. SaudadesBotânica: designação comum, extensiva a diferentes plantas, de diferentes famílias, sobretudo da família das Dipsacáceas e da família das Compostas (Asteráceas), e às suas respetivas flores

Morrer de saudades 
- Sentir muito a falta (de)
 
 
Elaine Searle
 
 
Provérbios

  • O adeus é o fim da esperança e o começo da saudade. 
  • Um coração que tem saudade é um que não tem o que deseja.
  • A saudade é a companheira dos que não têm companhia.
  • A saudade não mata, mas sepulta o coração em vida.
  • Amor que volta é doçura; amor que parte é saudade.
  • A saudade torna presente o passado.
  • Saudade não mata, mas maltrata.
  • Saudade é a memória do coração.


Elaine Searle 


"Saudade é a lembrança de se haver gozado em tempos passados, que não voltam mais; a pena de não gozar no presente, ou de só gozar na lembrança; e o desejo e a esperança de no futuro tornar ao estado antigo de felicidade."

Carolina Michaëlis, "A Saudade Portuguesa"
 
 
saudade | n. f. | n. f. pl.

sau·da·de |au| ou |a-u|


(latim solitas, -atis, solidão)
nome feminino

1. Lembrança grata de pessoa ausente, de um momento passado, ou de alguma coisa de que alguém se privado.

2. Pesar, mágoa que essa privação causa.

3. [Botânica]  Planta (Scabiosa atropurpurea) da família das dipsacáceas. (Mais usado no plural.) = ESCABIOSA, SUSPIRO

4. [Botânica]  Nome de várias espécies de plantas com flores de cores variadas. (Mais usado no plural.)

5. [Botânica]  Flor de uma dessas plantas. (Mais usado no plural.)


saudades
nome feminino plural

6. Boas lembranças ou recordações (ex.: a antiga chefe não deixou saudades).

7. Cumprimentos a alguém (ex.: mande-lhe saudades minhas).


"saudade", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/saudade [consultado em 21-02-2021].

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

"Dualismo" - Soneto de Olavo Bilac


 
Peder Mørk Mønsted (Danish painter, 1859–1941), The Cloister, Taormina, 1885.
 


 Dualismo

 
Não és bom, nem és mau: és triste e humano...
Vives ansiando em maldições e preces,
Como se, a arder, no coração tivesses
O tumulto e o clamor de um largo oceano. 

Pobre, no bem como no mal, padeces;
E, rolando num vórtice vesano,
Oscilas entre a crença e o desengano,
Entre esperanças e desinteresses. 

Capaz de horrores e de ações sublimes,
Não ficas das virtudes satisfeito,
Nem te arrependes, infeliz, dos crimes: 

E, no perpétuo ideal que te devora,
Residem juntamente no teu peito
Um demónio que ruge e um deus que chora.
 

Olavo Bilac, in "Poesias"
 
 
Peder Mørk Mønsted, Temple of the Sibyl at Tivoli, 1884. 
 

Dualismo:
(dualismo in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa)
 
1. Carácter do que comporta duas realidades ou dois elementos independentes; dualidade

2. Reunião de dois estados autónomos sob a mesma autoridade

3. Filosofia - doutrina que admite, no domínio considerado, dois elementos irredutíveis e independentes (a natureza e a graça, a matéria e a energia, a alma e o corpo, o bem e o mal, etc.)

4. Doutrina metafísica que admite, no Universo, duas substâncias ou dois mundos irredutíveis 

 
Peder Mørk Mønsted, View from Kolding Lake towards Koldinghus, 1880, oil on canvas.

 
Ar
 
É da liberdade destes ventos 
que me faço.
 
Pássaro-meu corpo 
(máquina de viver), 
bebe o mel feroz do ar 
nunca o sossego. 
 
 
 

domingo, 21 de fevereiro de 2021

"Lágrimas de Cera" - Poema de Machado de Assis


Gabriel von Max, Portrait of  Friederike Hauffe (The Seeress of Prevorst), 1895



Lágrimas de Cera

 
 Passou; viu a porta aberta.
Entrou; queria rezar.
A vela ardia no altar.
A igreja estava deserta.

Ajoelhou-se defronte
Para fazer a oração;
Curvou a pálida fronte
E pôs os olhos no chão.

Vinha trémula e sentida.
Cometera um erro. A Cruz
É a âncora da vida,
A esperança, a força, a luz.

Que rezou? Não sei. Benzeu-se
Rapidamente. Ajustou
O véu de rendas. Ergueu-se
E à pia se encaminhou.

Da vela benta que ardera,
Como tranquilo fanal,
Umas lágrimas de cera
Caíam no castiçal.

Ela porém não vertia
Uma lágrima sequer.
Tinha a fé, — a chama a arder, —
Chorar é que não podia. 
 in 'Falenas'



Gabriel von Max, The Seeress of Prevorst (Friederike Hauffe, 1801–1829), 1892  
 

Misticismo

O misticismo é uma temática tão vasta que se perde nos tempos, perde-se também nos limites do espaço, pois aparece em todo o lugar da Terra. Dir-se-ia mesmo que onde quer que haja homens há místicos; não que se entenda que todo o homem é místico, mas, sem dúvida, todo o homem experimenta na sua vida um ou outro momento de misticismo, na medida em que seja confrontado com o grande mistério da existência, com o grande enigma da vida e da morte. Todavia, esta conceção tão geral não serve a uma definição de misticismo, vamos por isso restringir o seu sentido apenas àqueles homens que doaram a sua vida à busca do mistério. Neste sentido, mais restrito, encontramos místicos ao longo da história de toda a humanidade.

Antes de mais, o misticismo é uma via de conhecimento, quer dizer, uma via que procura desvelar o mistério do real, pois para o místico o real aparece como um mistério. Esta via, embora englobando em si a racionalidade, ao contrário do que muitas vezes de maneira apressada se tem dito, não se limita a ela e anseia por uma visão intuitiva direta, pois sabe que, em última instância, o mistério é suprarracional. São Tomás de Aquino, na linha do seu mestre, Santo Alberto Magno, definiu a mística como "conhecimento experimental de Deus". O objetivo, primeiro e último, do místico é encontrar Deus - em quem ele deposita a raiz do mistério. O místico entende que é o conhecimento que salva o homem e lhe permite voltar ao estado que tinha antes de ter decaído. Por esta razão o misticismo se associa frequentemente à religião, embora não possamos falar aqui de uma relação exclusiva, pois há místicos fora de uma religião instituída. Apesar de tudo, o misticismo mais elaborado e mais coerente é aquele que toma por base uma religião e no seio da sua doutrina explora, por uma hermenêutica profunda os textos sagrados da sua revelação.

A via que o misticismo assume para si próprio assenta numa constatação prática da teoria, numa vivência da crença. Tal como o místico não aceita a via da razão exclusivamente, também não aceita a via da teoria exclusivamente e, por isso, acentua o lado prático, quer dizer, vivencial, da experiência. Por esta razão, o místico é frequentemente um asceta.

Supõe-se que a pré-história teria uma vivência essencialmente mística, na medida em que, tanto quanto nos é dado saber, para esses povos o sagrado podia-se manifestar em qualquer lugar. A natureza era vista ela própria como uma teofania, determinados lugares "transbordavam" de sagrado, de poder divino. O místico aqui era sobretudo o feiticeiro, a quem cabia, depois de uma longa e terrível iniciação, a mediação entre Deus e os homens. Apesar de esta função mediadora se ver centralizada no feiticeiro, o homem primordial tinha a noção de que a liberdade divina se podia manifestar a qualquer momento e noutros membros da comunidade, sobretudo através do sonho.

Numa época mais recente encontramos um florescimento de místicos, numa espantosa quase simultaneidade do ocidente ao oriente: Lao-Tsé, Buda, Pitágoras, Moisés. Numa outra época mais recente ainda, depois de Cristo, encontramos o gnosticismo, os Padres do deserto e as diferentes heterodoxias, como o priscilianismo, para só dar um exemplo português. Outro ciclo importante é o que se segue ao século XIII e ao século XVII.

O místico interpreta o real como um símbolo de Deus, sob a sua forma dupla, quer dizer, na dupla revelação divina, na natureza ou sob a sua forma escrita, nos livros sagrados. Tanto a natureza como esses livros têm um lado exterior ou aparente e um lado interior ou oculto. Por isso, face a um texto como a Bíblia, um místico, não descurando a interpretação literal, prefere o sentido simbólico.

Há inúmeras formas de mística, mas podem ser metodologicamente dividas em duas grandes classes: aquela que acentua o lado do imanente e aquela que acentua o lado do transcendente da sua experiência. Por exemplo, no cristianismo encontramos S. Francisco ao lado da primeira e Mestre Eckhart ao lado da segunda. Todavia, transcendência e imanência estão ambas presentes em todos os místicos, mas em graus diferentes. Aliás, poder-se-ia dizer que o ponto nuclear do misticismo é precisamente a certeza paradoxal que o místico tem de que entre a transcendência de Deus e a imanência do homem há um ponto de contacto e é este ponto ou ponte que ele procura toda a sua vida.

Tem-se acusado os místicos de se encerrarem numa experiência puramente subjetiva, mas uma leitura atenta destes autores perceberá imediatamente que um dos seus primeiros e principais objetivos é o de vencerem a sua subjetividade, o seu ego, que consideram o seu grande inimigo. Estudiosos como Carl Gustav Jung, na psicologia, e Mircea Eliade, na história dos mitos e das religiões, têm ajudado a compreender que a linguagem dos místicos é universal, e que podemos encontrar as mesmas experiências desde o oriente ao ocidente, nas mais variadas épocas. (Daqui)
 
 

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

"Pedido" - Poema de Olga Savary


William McGregor Paxton (1869 – 1941), The green dress, 1875

 
Pedido
 
                                          A Manuel Bandeira 
 
Quando eu estiver mais triste
mas triste de não ter jeito,
quando atormentados morcegos
— um no cérebro outro no peito —
me apunhalarem de asas
e me cobrirem de cinza,
vem ensaiando de leve
leve linguagem de flores.
Traze-me a cor arroxeada
daquela montanha — lembra?
que cantaste num poema.
Traze-me um pouco de mar
ensaiando-se em acalanto
na líquida ternura
que tanto já me embalou.

Meu velho poeta, canta
um canto que me adormeça
nem que seja de mentira.

Caieiras, 25 de janeiro de 1954
 
 
 
 William McGregor Paxton, The Blue Book, 1914

 
Dize-me, traze-me, faze-me
Carlos Rocha

 William McGregor Paxton, The Blue Jar or The Oriental Jar, 1913


Paz
 
Assim tão exata
sem se assemelhar a nada
sendo vária e vaga.
 
 


Olga Savary (Daqui)
  
 
Olga Savary - o silêncio de uma poeta maior
por
Álvaro Alves de Faria  (Daqui) 
 

Delicada. Principalmente delicada. Assim era a linguagem poética de Olga Savary, uma mulher em muitas mulheres. Morreu no dia 15 de maio de 2020, em Teresópolis, Rio de Janeiro, aos 86 anos, vítima da Covid-19. Nasceu em Belém, no Pará, em 21 de maio de 1933. Mais uma vez, a literatura brasileira perde uma de suas vozes mais importantes. Especialmente em uma terra em que a poesia se transformou em quase nada nas mãos de muitos aventureiros. A poesia brasileira sente-se mais só. Costumava dizer que “no Brasil o poeta morre de fome. Mas sou apaixonada por um malandro chamado Literatura. Não posso viver sem ele”

A vida não foi fácil, especialmente agora, no final, nos últimos anos. Arrastava problemas financeiros, descuidou-se de si mesma, sua aparência era outra, não daquela bela mulher da juventude e mesmo já idosa, mas com seus traços de beleza perfeitos. Descuidou-se da vida e se deixou levar como fosse possível. Guardou muitos segredos, que contava só para os amigos íntimos. Trabalhou muito em favor da poesia, especialmente elaborando antologias de poetas brasileiros e os que traduziu. Uma mulher em muitas mulheres, com afazeres literários de toda ordem: poeta, escritora, contista, romancista, crítica de arte, tradutora e jornalista. E trabalhou nisso tudo até o fim da vida, mesmo enfrentando dificuldades difíceis de ultrapassar. A Convid-19 atingiu uma mulher já bastante frágil, física e psicologicamente. 

Olga Savary não gostava de ser chamada de “poetisa”. Não. Queria e exigia ser chamada de “poeta”. Era uma poeta e ponto final. Além de seus livros, traduziu mais de 40 obras de autores como Oscar Wilde, Jorge Luis Borges, Júlio Cortázar, Carlos Fuentes, Federico Garcia Lorca, Pablo Neruda, Ernesto Che Guevara, Omar Cabezas, Arturo Arias, Ronán Cano, Laura Esquível, Victor Álamo de la Rosa, Octávio Paz, Jorge Semprún, Mário Vargas Lllosa e vários outros. Some-se a isso seu intenso trabalho em traduzir os grandes mestres japoneses do haiku, como Bashô, Busun e Issa. 

Publicou muito, especialmente poesia e contos, livros como Espelho Provisório, Sumidouro, Altaonda, Magma, Éden Hades, Linha-d´água, O olhar dourado do abismo e muitos outros. Foi a primeira poeta brasileira a dedicar-se à poesia erótica e também a se dedicar ao haicai. Escreveu um livro inteiro de poemas eróticos, Magma, que lançou em 1982. Orgulhava-se em ser chamada de a musa de Carlos Drummond de Andrade. Mas esse é um dos segredos só para os amigos íntimos. 

Quando conheceu Drummond, Olga Savary era conhecida como a Mona Lisa de Copacabana. Tinha pouco mais de 20 anos de idade. Esbanjando beleza, desfilava sua figura pelas ruas e praias, sempre enaltecida por quem a cercava. Nos segredos envolvendo a figura de Drummond, o poeta não queria que se falasse em “amizade amorosa”. Não. Drummond exigia que se dissesse que se tratava de amor. Amor mesmo. De verdade. Certa vez Olga disse a Drummond que gostaria de pegá-lo no colo e mimá-lo como uma mãe. Mas o poeta não gostava dessas histórias. Preferia somente o amor, sem deslumbramentos. Drummond escreveu muitos poemas para Olga. E Olga prometeu que nunca os publicaria. E assim o fez. Os poemas estão guardados ninguém sabe onde. “Drummond é meu poeta do coração”, dizia sempre.

 Tinha a poesia de Drummond como seu livro de cabeceira. No entanto, o poeta que ela mais gostava de ler — e lia sempre — era T.S.Eliot. Para conceder uma entrevista, antes Olga procurava saber quem era o jornalista que ia entrevistá-la. Dizia, então, não suportar jornalista que escreve “pra” em vez de “para”. Foi casada com o cartunista Jaguar, do jornal “O Pasquim”, no regime militar, que ela ajudou a criar. Teve com ele dois filhos, Pedro e Flávia, que também é poeta. Um dos momentos mais terríveis que viveu na vida, foi quando seu filho morreu. Vítima das drogas. 

Dizia-se triste por ter descoberto a sexualidade tardiamente. Não se conformava. Dizia isso aos amigos íntimos. O poeta Ferreira Gullar comentou certa vez que essa descoberta tardia da sexualidade, exatamente isso, é que fez de Olga a grande poeta que ela é, capaz de falar do sexo com uma “cautela de veludo”. Olga afirmava que Clarice Lispector foi e é o maior escritor brasileiro, assim no masculino, porque — como observava — “Clarice é maior entre homens e mulheres”. Não aceitava essa conversa de que homem escreve melhor que mulher. Trata-se de uma afirmação sem cabimento. Diante de conversas assim mostrava-se desapontada. 

Seu livro erótico estava em sua cabeça havia muitos anos. Os poemas foram sendo elaborados no pensamento. Até que um dia resolveu passar um final de semana na Casa do Sol, onde vivia Hilda Hilst, em Campinas, interior de São Paulo. Foi visitar Hilda para ficar dois dias, mas ficou um mês. E enquanto Hilda se dedicava a gravar a voz dos mortos no seu sítio, Olga foi escrevendo e assim nasceu Magma, livro bastante discutido, publicado em 1982. 

Entre as longas entrevistas que fiz com Olga Savary, uma foi especial, para meu livro Palavra de Mulher, no qual reuni 20 das principais escritoras e poetas do Brasil. Escolhendo algumas frases, resumidamente ela me disse:

-Muita gente pergunta como cheguei até aqui e como consegui tanto, com um currículo que vai da letra A até a Z. Respondo que com muito emprenho, total dedicação, com a vida voltada só ao trabalho árduo, mas feito com prazer. Paixão mais compaixão, assim se cria.

-O ser humano não pode suportar tanta realidade. Precisamos todos de verdade e de beleza que a criação da arte nos dá. Se não for assim, nunca será possível ser feliz.

-O poeta é prestigiado e, ao mesmo tempo, não é remunerado à altura, como se vivesse de brisa.

-A palavra custa. Tudo tem um custo. Especialmente quando a palavra vai revelar universos íntimos, segredos, desassossegos, angústias.

-Como o amor, a poesia não é para amadores.

-Minha poesia sempre me alimentou, desde a mais tenra infância, e me alçou dos mais profundos sofrimentos da vida. Sem a poesia eu poderia ter enlouquecido de dor. À minha poesia certamente eu poderei chamar de todas as coisas boas, até mesmo de Deus.

-Deus sempre foi o mais adorável companheiro. Sempre presente, conversando comigo. Jamais me faltou. Não um deus externo, fora de mim, vingador e punitivo, mas um Deus internalizado, dentro de cada um de nós, amoroso e criativo. Assim, Deus é poesia, a própria criação. Não é um amontoado de bens terrenos cultuados por grande parte das pessoas.

-Creio que só a espiritualidade responsável tenha força de mudar e melhorar alguma coisa no mundo e nas pessoas. A poesia está imbuída nessa intenção. É um processo lento, porém eficaz, como um pequeno tijolo a construir uma torre em direção ao alto. É pouco, mas é muito também, uma vez que evoluímos devagar. Com toda a tecnologia, ainda estamos vivendo nas cavernas. Tudo deveria ser realizado com essa intenção de verticalidade indispensável. A meu ver, o homem não aproveita a lado bom do bicho, mas sim da fera. Daí o desequilíbrio, a falta de harmonia consigo mesmo, com seus semelhantes, com a natureza. A poesia restaura esse desequilíbrio perdido.

-O escritor começa só, cria em completa solidão. Todo poeta é “voyeur” e fingidor, mas sem mentir jamais. O escritor é imprescindível. O artista, em geral, é fundamental: não mata por dinheiro e faz o Brasil pensar em si mesmo. É assim que o Brasil se aprende. Não gosto muito de falar. O país está atolado em palavras. E não adianta nada. Fala-se demais no Brasil. Escrever é mais verdadeiro.

-Minha relação com a escrita, com a palavra, é uma relação apaixonada, de tesão, sensual, eu diria até carnal, uma relação sexual, em que há atração e rejeição, orgasmo e tudo o mais. Não há nada melhor do que fazer amor com o próprio trabalho. Nem melhor investimento. Acho que às vezes a gente escreve com raiva, revolta, indignação. Há tanto para consertar o mundo. E é aí que penso servir a literatura para uma melhoria espiritual do homem.

Esse era seu mundo, em palavras exatas. Dizia não ter medo da morte: “A morte para mim é um grande orgasmo”. E vivia seguindo sempre para algum lugar. Não tinha computador. Telefone, só atendia de madrugada. E as conversas atravessavam horas. Falava sem parar, emendando frases, criando situações, lembrando coisas. Nos primeiros livros, praticamente todos os poemas eram dedicados a Carlos Drummond de Andrade, caso de “Espelho provisório”, de 1970. Vejam este poema de janeiro 1969, “O menino, um dia, no retrato”, dedicado a Drummond:

Vou te descobrindo — ou redescobrindo –
atrás da fechada janela
na remota cidade que desconheço
(ou reconheço?) através da seta
de teu olho — bicho fugido, sigilo
de um silêncio úmido –
como vejo vagas formas que se movem
no escuro no interior da casa
que ficou guardada
sem uso, na memória)
e desse jogo obscuro e perigoso
de que fugimos mas retemos fórmulas
e de que tudo foi guardado do outro lado
das coisas que jamais podem ser ditas,
restou como tocável permanência
o menino, um dia, no retrato.

Os poemas dedicados a Carlos Drummond de Andrade são muitos, mas nem todos foram publicados. Há muitos outros que guardou, uma espécie de relíquia que só a ela pertencia. Só os considerados amigos íntimos leram. Entre os que foram publicados, há também este escrito em setembro de 1955, Cantilena em setembro:

E embora eu não quisesse
essa vontade estranha me anulou,
me fez somente desejo de sair
contigo pelo ar (na distância
uma cidade de pedra nos chamava)
te castigar de toda memória,
fugir com toda a memória que trouxesses
e nela te guardar como coisa secreta
nunca revelada.
E de roer pacientemente
como fera verde de teu passado
sem outro medo que o prolongamento
dessa impossível febre que me perturbara,
e por isso mesmo
depois de devastado embalar
teu sono de criança numa ilha
que a gente imagina e desenha-se no ar
ou nas ondas, e saber ficar
tão de manso como a flor pisada
ou passarinho morto à pedrada
na beira do caminho.

Vamos a mais um poema escrito para Carlos Drumnond de Andrade, publicado no seu primeiro livro, com palavras de despojamento. Chama-se Abstrata:

Há horas não sou — e me pressinto
no que não sou e me visito
no relógio, no vazio do tempo
onde, irmãos na solidão,
a confidência teceu um elo
invisível e nos unir.
E me pergunto se me começo a ver no escuro
Que não o desta casa mas de outra
- geografia vedada a um mesmo uso.
E penso que serei agora:
passeio de quartos a casa que não sei,
fantasma.

Olga Savary queixava-se muito dos rumos incertos da poesia brasileira, cada vez mais machucada por aventureiros que nada sabem de poesia, mas que têm promoção garantida fazendo aumentar no Brasil uma inversão de valores impossível de aceitar. O primeiro livro foi prefaciado por Ferreira Gullar, com palavras que valem até hoje:

-Olga Savary nos parece dizer que a multiplicidade dos fenómenos e das vozes mais encobre que revela a essência real da vida. Por isso mesmo, ela está sempre nos chamando para o silêncio, a quietude, para as coisas que dormem esquecidas ou abandonadas, para o que está aparentemente à margem do mundo. Ela busca, ali, aquela integridade, aquela unidade, que daria sentido à existência. Mas onde encontrá-la realmente, “se nada termina tudo se renova?” É uma angústia que a dilacera “como uma garra/ que fecha e abre dentro da fechada carne”. É quase o desespero.

No livro Repertório Selvagem, obra reunida em 1998, publicado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Olga Savary faz um depoimento sobre sua vida. A obra festejava 50 anos de sua produção poética e sua carreira na poesia brasileira. Olga Savary fala de sua poesia, o que de melhor existe no Brasil, poemas elaborados com o cuidado de um monge, palavras corretas no lugar certo, no verso exato. Uma poesia que deixa marcas, que sabe o que deseja, por onde caminha e até onde pode chegar, com aquela palavra delicada que a acompanhou a vida inteira. Ela escreveu:

-“O colega Fernando Pessoa, geminiano como eu, portanto múltiplo, tem razão: tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Acrescento: tudo vale a pena quando feito com paixão, seriedade, profissionalismo, amor à vida e ao próximo. E dignidade. Que, junto à alegria, são minhas palavras-chave. Vale dizer: a literatura em primeiro lugar. Sempre foi assim em toda minha vida. E assim será sempre”.


Álvaro Alves de Faria
(Jornalista, poeta e escritor — São Paulo, Brasil)