segunda-feira, 26 de agosto de 2024

"Feira do livro" - Poema de Inês Lourenço


Charles Spencelayh (English painter, 1865–1958), A lover of Dickens, s.d.
 
 

Feira do livro


Enfunava a laringe, relendo
as tão editadas palavras
onde ornara a humanidade campestre
da sua infância, em
vibráteis reverberações
para os jovens de trémulas pestanas
atentos na assistência à cerimónia
que o pavimento suportava, enquanto
lá fora balouçavam as tílias
acima dos bancos vermelhos,
escurecidos pelas sombras
do fim de tarde.


Inês Lourenço, in "Teoria da Imunidade",
Felício & Cabral, 1996.
 

domingo, 25 de agosto de 2024

"Ode ao Ar" - Poema de Pablo Neruda

 


Jan van Kessel, the Elder
(Flemish painter, 1626-1679), Allegory of air, c. 1661.



Ode ao Ar


Andando por um caminho
encontrei o ar
cumprimentei-o e disse
respeitosamente:
"me alegro
pois, uma vez, pelo menos,
abandonas tua transparência
conversemos, então".

Ele, incansável,
dançou, revolveu as folhas
espanou com o sorriso
o pó dos meus sapatos
e içando todo
o azul de seu mastro,
seu esqueleto de vidro,
suas pálpebras de brisa,
imóvel como um cão
ficou me ouvindo.
Eu beijei seu manto
de rei do céu,
me enrolei em sua bandeira
de seda celestial
e disse:
monarca ou camarada,
fio, corola ou pássaro
não sei quem és. Mas
uma coisa te peço,
não te vendas.
A água se vendeu
e nos encanamentos
do deserto
eu tinha visto
extinguirem-se as gotas
e o mundo pobre, o povo
andar sedento
cambaleando na areia.

Vi a luz da noite
racionada,
a luz fulgurante da casa
dos ricos.
Tudo é aurora nos
novos jardins suspensos,
tudo é escuridão
na terrível
sombra do beco.
Daí, a noite,
mãe madrasta,
sai
com um punhal entre
os olhos de coruja,
e um grito, um crime,
se erguem e se apagam
engolidos pela sombra.

Não, ar,
não te vendas,
que não te canalizem,
que não te entubem,
que não te encaixotem
nem te comprimam,
que não te estraçalhem,
que não te engarrafem.
Cuidado!
Me chama
quando precisares de mim,
eu sou o poeta, filho
de pobres, pai, tio,
primo, irmão de carne
e cunhado
dos pobres, de todos,
de meu país e dos outros,
dos pobres que vivem perto do rio,
e dos que nas alturas
da cordilheira vertical
quebram pedra,
pregam tábuas,
costuram roupas,
cortam lenha,
aram a terra,
e por isso
eu quero que eles respirem,
tu és o único que eles têm,
por isso és
transparente,
para que vejam
o que virá amanhã
por isso existes,
ar,
deixa-te respirar,
não te aprisiones,
não confies em ninguém
que venha de automóvel
para te investigar,
deixa-os,
ria deles,
faça os chapéus deles voarem,
não aceites
suas propostas,
vamos juntos
dançando pelo mundo,
arrancando as flores
da macieira
entrando pelas janelas,
assoviando juntos,
assoviando
melodias
de ontem, de amanhã.

Há de vir o dia
em que libertaremos
a luz e a água,
a terra, o homem,
e tudo para todos
será, como tu és.
Então, agora
Cuidado!
E vem comigo
ainda nos resta muito
a dançar e a cantar.
Vamos
ao longo do mar,
ao pico dos montes,
vamos
aonde veremos florescer
a nova primavera
e um sopro de vento
e de canto
compartilharemos as flores,
o aroma, os frutos,
o ar
de amanhã.


Pablo Neruda
, in Odes Elementares, 1954
 Tradução de Roberto Medina

terça-feira, 20 de agosto de 2024

"Tu sentado à tua mesa" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


 
Peder Severin Krøyer (Danish painter, 1851–1909), Wine Harvest In The Tyrol, 1901.
Grohmann Museum


Tu sentado à tua mesa


 
Tu sentado à tua mesa
Bebes vinho comes pão
Quem é que plantou a vinha?
Quem é que semeia o grão?

Lá no socalco da serra
Anda a cavar teu irmão
Debruçado sobre a terra
P'ra que tenhas vinho e pão

Para além daquela serra
P'ra que tenhas vinho e pão
Abrindo o corpo da terra
Dobra o corpo o teu irmão

Sua mão concha do cacho
sua mão concha do grão
Em cada gesto que faz
Põe a vida em comunhão.
"Poemas Dispersos". In "Obra Poética",
 Caminho, 2010.
 
 
Peder Severin Krøyer, Artists' luncheon at Brøndum's Hotel, 1883.
[Depicted people: Eilif Peterssen, Michael Peter Ancher, Wilhelm Peters,
 
  
"A arte é a expressão da sociedade no seu conjunto: crenças, ideias que faz de si e do mundo.
 Diz tanto quanto os textos do seu tempo, às vezes até mais."

Georges Duby, citado em "Les enjeux de l'histoire culturelle‎" - Página 299,
 de Philippe Poirrier - Publicado por Seuil, 2004 - 448p. 
 

domingo, 18 de agosto de 2024

"O Homem e o Mar" - Poema de Charles Baudelaire



Walter Langley (English painter and founder of the Newlyn School of plein air artists,
 1852 – 1922), Between the Tides, Newlyn Harbour, 1901.


O Homem e o Mar 


 
Homem livre, o oceano é um espelho fulgente
Que tu sempre hás de amar. No seu dorso agitado,
Como em puro cristal, contemplas, retratado,
Teu íntimo sentir, teu coração ardente.

Gostas de te banhar na tua própria imagem.
Dás-lhe beijo até, e, às vezes, teus gemidos
Nem sentes, ao escutar os gritos doloridos,
As queixas que ele diz em mística linguagem.

Vós sois, ambos os dois, discretos tenebrosos;
Homem, ninguém sondou teus negros paroxismos,
Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos;
Os segredos guardais, avaros, receosos!

E há séculos mil, séculos inumeráveis,
Que os dois vos combateis numa luta selvagem,
De tal modo gostais da morte e da carnagem,
Eternos lutadores ó irmãos implacáveis! 
 


"As Flores do Mal" de Charles Baudelaire.
Tradução de Delfim Guimarães
Montecristo Editora 


Sinopse


As Flores do Mal (Les Fleurs du mal) do poeta francês Charles Baudelaire é considerado um marco da poesia moderna e simbolista e um dos mais influentes livros de poemas da modernidade.
Seus poemas, que foram em grande parte inspirados em sua paixão pela mulata Jeanne Duval, foram julgados imorais para a época. O livro levantou polémica e despertou hostilidades na imprensa, Baudelaire e seu editor foram processados e, além de pagar multa, tiveram que reimprimir a obra, excluindo poemas da primeira publicação. Nesta edição, disponibiliza-se para o leitor a versão completa de As flores do mal, com os poemas censurados e os incluídos posteriormente. A clássica e primorosa tradução é de Delfim Guimarães. (daqui)

 
Walter Langley, When the Boats are Away, 1903

 
"O que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano."

(Isaac Newton)
 

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

"Mania da Solidão" - Poema de Cesare Pavese


 Dining Table (Cuadro de Comedor), 1864, Museo Soumaya.
 


Mania da Solidão


Como um jantar frugal junto à clara janela,
Na sala já está escuro mas ainda se vê o céu.
Se saísse, as ruas tranquilas deixar-me-iam
ao fim de pouco tempo em pleno campo.
Como e observo o céu — quem sabe quantas mulheres
estão a comer a esta hora — o meu corpo está tranquilo;
o trabalho atordoa o meu corpo e também as mulheres.

Lá fora, depois do jantar, as estrelas virão tocar
a terra na ancha planura. As estrelas são vivas,
mas não valem estas cerejas que como sozinho.
Vejo o céu, mas sei que entre os tetos de ferrugem
brilha já alguma luz e que, por baixo, há ruídos.
Um grande golo e o meu corpo saboreia a vida
das árvores e dos rios e sente-se desprendido de tudo.
Basta um pouco de silêncio e as coisas imobilizam-se
no seu verdadeiro sítio, como o meu corpo imóvel.

Cada coisa está isolada ante os meus sentidos,
que a aceita impassível: um cicio de silêncio.
Cada coisa na escuridão posso sabê-la,
como sei que o meu sangue circula nas veias.
A planura é água que escorre entre a erva,
um jantar de todas as coisas. Cada planta e cada pedra
vivem imóveis. Escuto os alimentos e eles alimentam-me as veias
com todas as coisas que vivem nesta planura.

A noite importa pouco. O retângulo de céu
sussurra-me todos os fragores e uma estrela miúda
debate-se no vazio, longe dos alimentos,
das casas, distinta. Não se basta a si mesma
e precisa de muitas companheiras. Aqui no escuro, sozinho,
o meu corpo está tranquilo e sente-se soberano.
 

Cesare Pavese, in "Trabalhar cansa".
Tradução e introdução de Carlos Leite.
Lisboa; Edições Cotovia.


José Agustín Arrieta, Still Life with Cat and Birds, oil on canvas, 63 x 86 cm.
 

"Nada beneficiará tanto a saúde humana e aumentará as chances de sobrevivência da vida na terra quanto a evolução para uma dieta vegetariana. A ordem de vida vegetariana, por seus efeitos físicos, influenciará o temperamento dos homens de uma tal maneira que melhorará em muito o destino da humanidade.” 
 
Albert Einstein (Nobel de Física, 1921)
 
 
José Agustín Arrieta, Dining room (Cuadro de Comedor), c. 1857 - 1859.
 

"Ser vegetariano é discordar: discordar do curso que as coisas tomaram hoje. Fome, crueldade, desperdício, guerras - precisamos nos posicionar contra essas coisas. O vegetarianismo é a minha forma de me posicionar." 
 
 Isaac Bashevis Singer (Nobel de Literatura, 1978)
 

José Agustín Arrieta, Dining Table, c. 1840 - 1860Museo Soumaya
 
 
"Um jantar! Que horrível! Estão me usando como pretexto para matar todos aqueles pobres animais. Obrigado por nada. Agora se fosse um jejum solene de três dias, em que todos ficassem sem comer animais em minha honra, eu poderia pelo menos fingir que estou desinteressado. Mas não, sacrifícios de sangue não estão na minha lista."
 
George Bernard Shaw (Nobel de Literatura, 1925), em carta de 30 de dezembro de 1929,
perante a possibilidade de ser homenageado com um banquete com grande diversidade de carnes.
 
 

Jose Agustin Arrieta, Still Life, c. 1870, San Diego Museum of Art.


"Eu não tenho dúvidas de que é parte do destino da raça humana, na sua evolução gradual, parar de comer animais, tal como as tribos selvagens deixaram de se comer umas às outras quando entraram em contacto com os mais civilizados."

Henry David Thoreau, em "Walden ou A Vida nos Bosques", 1854.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

"Árvore" - Poema de Mia Couto


Henri Biva (French artist, 1848–1929), Forest in the spring, oil on canvas, 73 x 60 cm.



Árvore


Onde os frutos maduram:
sal e sol em minhas veias
luz e mel em boca alheia.

Onde plantei
a alta acácia das febres
eu mesmo me deitei,
para ser a raiz da semente,
e da madeira e seiva
se fez o meu corpo.

Agora,
chove dentro de mim,
em minhas folhas se demoram gotas,
suspensas entre um e outro Sol.

Em mim pousam
cantos e sombras
e eu não sei
se são aves ou palavras. 


Mia Couto
, in "Vagas e Lumes"



Henri Biva, Étang en Ile de France, oil on canvas, 54 x 65 cm.
 

"Quem voa depois da morte? É a folha da árvore."

Mia Couto, in "O Último Voo do Flamingo" 
 

terça-feira, 13 de agosto de 2024

"Última Folha" - Poema de Machado de Assis


Themistokles von Eckenbrecher (German landscape and marine painter, 1842–1921),
View of Lærdalsøyri, on the Sognefjord, 1901.



Última Folha
Tout passe,
Tout fuit
.

V. Hugo
Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia.

Dos teus cabelos de ouro, que beijavam
Na amena tarde as virações perdidas,
Deixa cair ao chão as alvas rosas
E as alvas margaridas.

Vês? Não é noite, não, este ar sombrio
Que nos esconde o céu. Inda no poente
Não quebra os raios pálidos e frios
O sol resplandecente.

Vês? Lá ao fundo o vale árido e seco
Abre-se, como um leito mortuário;
Espera-te o silêncio da planície,
Como um frio sudário.

Desce. Virá um dia em que mais bela,
Mais alegre, mais cheia de harmonias,
Voltes a procurar a voz cadente
Dos teus primeiros dias.

Então coroarás a ingénua fronte
Das flores da manhã, — e ao monte agreste,
Como a noiva fantástica dos ermos,
Irás, musa celeste!

Então, nas horas solenes
Em que o místico himeneu
Une em abraço divino
Verde a terra, azul o céu;

Quando, já finda a tormenta
Que a natureza enlutou,
Bafeja a brisa suave
Cedros que o vento abalou;

E o rio, a árvore e o campo,
A areia, a face do mar,
Parecem, como um concerto,
Palpitar, sorrir, orar;

Então sim, alma de poeta,
Nos teus sonhos cantarás
A glória da natureza,
A ventura, o amor e a paz!

Ah! mas então será mais alto ainda;
Lá onde a alma do vate
Possa escutar os anjos,
E onde não chegue o vão rumor dos homens;

Lá onde, abrindo as asas ambiciosas,
Possa adejar no espaço luminoso,
Viver de luz mais viva e de ar mais puro,
Fartar-se do infinito!

Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia! 


Machado de Assis, in 'Crisálidas',
Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1864.


Themistokles von Eckenbrecher, Raftsundet, 1906.


Vi já das altas aves a harmonia,
Que até aos montes duros convidava
A um modo suave de alegria.
 

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

"Janela do Sonho" - Poema de Carlos Melo Santos

 


Morgan Weistling
(American painter, b. 1964)
 


Janela do Sonho


Abri as janelas
que havia dentro de ti
e entrei abandonado
nos teus braços generosos.

Senti dentro de mim
o tempo a criar silêncio
para te beber altiva e plena.

Mil vezes
repeti teu nome,
mil vezes,
de forma aveludada
e era a chave
que se expunha
e fecundava dentro de mim.

Já não se sonha,
deixei de sonhar,
o sonho é poeira dos tempos
é a voz da extensão
é a voz da pureza
que dardejava na nossa doçura.

Quando abri as tuas janelas
e despi teus braços
perdi a vaidade
e a pressa,
amei a partida
e em silêncio abri,
(sem saber que abria)
uma noite húmida
em combustão secreta
desmaiado no teu ombro
de afrodite.


Carlos Melo Santos (1956-2021),
in "Lavra de Amor"
 

domingo, 11 de agosto de 2024

"Ao Luar" - Poema de Augusto dos Anjos


Joaquín Vayreda (Pintor espanhol, 1843 - 1894), Salida de la luna, 1883, Museo de Montserrat.
 
 

Ao Luar
 

Quando, à noite, o Infinito se levanta
A luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tátil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!

Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o Orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!

Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado,
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado...

Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria,
Encho o Espaço com a minha plenitude!


Augusto dos Anjos, Outras Poesias


 

“Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso ― o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. 
O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito ― por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.” 

Guimarães Rosa (1908-1967), Grande Sertão: Veredas, página 293.
 

Joaquín Vayreda, Campo de Alfalfa, 1880-83, Museo de Montserrat.
 
 
"Longe, sob o sol, estão minhas mais elevadas aspirações. Talvez não as alcance, mas posso ver sua beleza, crer nelas e procurar seguir seu rumo."

Louisa May Alcott, "Work: A Story of Experience", 1873.
 

sábado, 10 de agosto de 2024

"Os Velhos" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Charles Spencelayh (English genre painter and portraitist in the Academic style, 1865–1958),
Grandfather's and grandmother's treasures, 1945.
 


Os Velhos
 

Todos nasceram velhos — desconfio.
Em casas mais velhas que a velhice,
em ruas que existiram sempre — sempre
assim como estão hoje
e não deixarão nunca de estar:
soturnas e paradas e indeléveis
mesmo no desmoronar do Juízo Final. 

Os mais velhos têm 100, 200 anos
e lá se perde a conta.
Os mais novos dos novos,
não menos de 50 — enormidade.
Nenhum olha para mim.
A velhice o proíbe. Quem autorizou
existirem meninos neste largo municipal?
Quem infringiu a lei da eternidade
que não permite recomeçar a vida? 

Ignoram-me. Não sou. Tenho vontade
de ser também um velho desde sempre.
Assim conversarão
comigo sobre coisas
seladas em cofre de subentendidos
a conversa infindável de monossílabos, resmungos,
tosse conclusiva. 

Nem me veem passar. Não me dão confiança.
Confiança! Confiança!
Dádiva impensável
nos semblantes fechados,
nos felpudos redingotes,
nos chapéus autoritários,
nas barbas de milénios. 

Sigo, seco e só, atravessando
a floresta de velhos. 
 
 
Carlos Drummond de Andrade
, in 'Boitempo II'
São Paulo: Record, 1986.
 
 
Charles Spencelayh, Visitors Expected, s.d.
 
 
Charles Spencelayh, The Old Copyist, s.d.
 
 
Charles Spencelayh, The Latest News, s.d.
 
 
Charles Spencelayh, His Birthday, 1925.
 
 
 
Charles Spencelayh, Solitaire, s.d.
 
 
"Não honrar a velhice é demolir, de manhã, a casa onde vamos dormir à noite." 
 
"Ne pas honorer la vieillesse, c'est démolir le matin la maison où l'on doit coucher le soir."
 
Jean-Baptiste Alphonse Karr, "Une poignée de vérités: Mélanges philosophiques"‎
- Página 534, - Didier, 1853 - 344 páginas. 
 

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

"No mundo há muitas armadilhas" - Poema de Ferreira Gullar



Albert Edelfelt (Finnish-Swedish painter, 1854 - 1905), At Sea, 1883.



No mundo há muitas armadilhas


No mundo há muitas armadilhas
e o que é armadilha pode ser refúgio
e o que é refúgio pode ser armadilha.

Tua janela por exemplo
aberta para o céu
e uma estrela a te dizer que o homem é nada
ou a manhã espumando na praia
a bater antes de Cabral, antes de Troia
há quatro séculos Tomás Bequimão
tomou a cidade, criou uma milícia popular
(e depois foi traído, preso, enforcado).

No mundo há muitas armadilhas
e muitas bocas a te dizer
que a vida é pouca
que a vida é louca.
E por que não a Bomba? te perguntam.
Por que não a Bomba para acabar com tudo, já
que a vida é louca?

Contudo, olhas o teu filho, o bichinho
que não sabe
que afoito se entranha à vida e quer
a vida
e busca o sol, a bola, fascinado vê
o avião e indaga e indaga.

A vida é pouca
a vida é louca
mas não há senão ela.
E não te mataste, essa é a verdade.

Estás preso à vida como numa jaula.
Estamos todos presos
nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver
de fora e nos dizer: é azul.
E já o sabíamos, tanto
que não te mataste e não vais
te matar
e aguentarás até o fim.

O certo é que nesta jaula há os que têm
e os que não têm
há os que têm tanto que sozinhos poderiam
alimentar a cidade
e os que não têm nem para o almoço de hoje.

A estrela mente
o mar sofisma. De facto,
o homem está preso à vida e precisa viver
o homem tem fome
e precisa comer
o homem tem filhos
e precisa criá-los.
Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las.”


Ferreira Gullar
, Dentro da Noite Veloz, 1975.

 

Ferreira Gullar, "Dentro da Noite Veloz"
 Companhia das Letras, 2018
 
 
Resumo

 
Lançado em 1975, este volume de poemas de Ferreira Gullar é marcado pela intensa carga política.
Ao aliar excecional qualidade literária e aguda preocupação com as questões sociais, Dentro da noite veloz é um livro altamente engajado. Em poemas célebres como "Não há vagas" e "Homem comum", Ferreira Gullar, em tom questionador e inquieto, denuncia a realidade cruel e desigual do país.
No prefácio a esta edição, Armando Freitas Filho aponta: "É isso que este livro imenso nos mostra: a vida, a aventura, o perigo do universo que nos convida para a peripécia existencial de cada um de nós. Ninguém melhor que Ferreira Gullar para nos fazer viver e morrer, com sua experiência humana e destemida que passa dentro dessa noite feroz e veloz, sempre a postos para uma nova e — se necessário for — combativa manhã". (daqui)
 

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

"Aproximação do Terror" - Poema de Murilo Mendes

 
 
Rafael Romero de Torres (Pintor espanhol, 1865 - 1898), Los últimos sacramentos"
também conhecido como "El albañil herido", 1890.
Museo de Bellas Artes de Córdoba.
 

Aproximação do Terror

1

Dos braços do poeta
Pende a ópera do mundo
(Tempo, cirurgião do mundo):

O abismo bate palmas,
A noite aponta o revólver.
Ouço a multidão, o coro do universo,
O trote das estrelas
Já nos subúrbios da caneta:
As rosas perderam a fala.
Entrega-se a morte a domicílio.
Dos braços...
Pende a ópera do mundo.

2

Tenho que dar de comer ao poema.
Novas perturbações me alimentam:
Nem tudo o que penso agora
Posso dizer por papel e tinta.
O poeta já nasce conscrito,
Atento às fascinantes inclinações do erro,
Já nasce com as cicatrizes da liberdade.

O ouvido soprando sua trompa
Percebe a galope
A marcha do número 666.

Palpo as Quimeras,
O tremor
E os jasmins da palavra «jamais».

3

Dos telhados abstratos
Vejo os limites da pele,
Assisto crescerem os cabelos dos minutos
No instante da eternidade.
Vejo ouvindo, ouço vendo.

Considero as tatuagens dos peixes,
O astro monossecular.
Os rochedos colocam-se máscaras contra pássaros asfixiantes,
A grande Babilónia ergue o corpo de dólares.
Ruído surdo, o tempo oco a tombar...
A espiral das gerações cresce. 


Murilo Mendes
, in Poesia Completa,
Rio de Janeiro, 1994.


Rafael Romero de Torres, Sin trabajo!, 1888. (Realismo social)


"Um homem desejoso de trabalhar, e que não consegue encontrar trabalho, talvez seja o espetáculo mais triste que a desigualdade ostenta ao cimo da terra."
 
(Thomas Carlyle)
 

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

"A Fábrica" - Poema de Teixeira de Pascoaes

Peder Severin Krøyer (Danish painter, 1851–1909), Fra Burmeister og Wain's Iron Foundry, 1885.
 Statens Museum for Kunst



A Fábrica


As negras chaminés, quais bocas tenebrosas,
Cospem no azul negros escarros pestilentos
Dum fumo que envenena as paisagens nervosas
E que os lúcidos céus nos torna nevoentos...

A fábrica trabalha, e silvos estridentes
Cortam, como uma espada, a trágica atmosfera.
Há rodas a girar, grandes fornos ardentes,
Terríveis como o olhar sangrento da Quimera!

Lívidos rostos, como lágrimas, orvalham
Os vapores que vão mover as engrenagens.
Há negros vultos revoltados que trabalham.
Enquanto o sol fecunda o ventre das paisagens!

Vem visitar, ó Dante, este medonho inferno,
Os negros antros do Trabalho e da Miséria...
Cavernas onde geme o sofrimento eterno
Que tem no rosto magro a palidez funérea!

Anda ver, ó Poeta, os antros do Martírio,
Os modernos Titãs que hão de escalar os céus...
E nas forjas, a arder, as chamas em delírio,
Que, porventura, anima a cólera de Deus!..,

E a bigorna onde forja a Dor o raio ardente
Que há de o mundo imperfeito e injusto fulminar!
Mas nesta escuridão eu vejo claramente
O brando alvorecer dum místico luar...

E da Fábrica cruel, cheia de fumo e treva,
De grandes corações amargos, sofredores.
Um grande sonho, ó Deus, fantástico se eleva,
E envolvem a oficina estranhos esplendores!...


Teixeira de Pascoaes
, "Para a luz", 1904.
 

terça-feira, 6 de agosto de 2024

"Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia" - Poema de Ricardo Reis / Fernando Pessoa



Johann Erdmann Hummel
(German painter, 1769 - 1852), "Chess Players", c. 1818 / 1819. 
 
[The persons in the painting are: architect Hans Christian Genelli (with a pipe); archeologist Aloys Hirt (making a move on the chess board); Gustav Adolf von Ingenheim (son of King Friedrich Wilhelm II and countess Voss); painter Friedrich Bury (the other chess opponent); the artist himself (at the window). Count Friedrich Wilhelm von Brandenburg (son of King Friedrich Wilhelm II and countess Doenhoff).]


Ouvi contar que outrora

 
Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.

À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário,
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.

Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo do xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho. 

Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?

Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indiferentes.

Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida,
Os haveres tranquilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.

Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.

Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulsa dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranquila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.

O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória; a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...

O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.

Ah! sob as sombras que sem querer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez,
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá por fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença. 

1-6-1916 

Odes de Ricardo Reis. Fernando Pessoa.
(Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). - 57.
 

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

"A voz das coisas" - Poema de Fiama Hasse Pais Brandão


Léon Spilliaert (Belgian symbolist painter and graphic artist, 1881 - 1946),
The Gust of Wind, 1904. Mu.ZEE - Kunstmuseum aan Zee
 


A voz das coisas


Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.


Fiama Hasse Pais Brandão, in "As Fábulas"
Edições Quasi, 2002.
 
[Poemas escritos por Fiama Hasse Pais Brandão durante os anos 90 integram "As Fábulas". Conjunto de poemas onde a autora mostra a sensibilidade que a tornou uma figura de destaque na literatura deste país. Referem-se a uma realidade visualmente assumida, a qual fica a oscilar entre um lugar campestre, rural, e outro que é citadino (há várias referências a Lisboa), fazendo com que haja em tais poemas um sentido especial.]
 

Léon Spilliaert
 
Léon Spilliaert, Self-Portrait, 1907, Metropolitan Museum of Art.

[León Spilliaert (Oostende, 1882 - Bruxelas, 1946) foi um pintor simbolista belga e um artista gráfico.
Seu estilo se caracterizava pelo tenebrismo e simplicidade das formas, junto à expressão amargurada e misteriosa dos personagens e paisagens presentes nas obras.]
 
 
 
Léon Spilliaert, The Window of-the Studio on the Visserskaai, 1908–09.
 
 
Léon Spilliaert, Untitled (3 dark figures)
 
 
Léon Spilliaert, Attente, c. 1902-03.
 
 
Léon Spilliaert, The Absinthe Drinker (La Buveuse d’Absinthe), 1907.


Léon Spilliaert, Dike at night. Reflected lights, 1908, Musee d 'Orsay.
 
 
Léon Spilliaert, Vertigo, 1908, Mu.ZEE - Kunstmuseum aan Zee.
 
 
Léon Spilliaert, Young man with red scarf, 1908.
 

"A grandeza de uma obra de arte está fundamentalmente no seu caráter ambíguo, que deixa ao espectador decidir sobre o seu significado."

(Theodor W. Adorno)