domingo, 25 de agosto de 2024

"Ode ao Ar" - Poema de Pablo Neruda

 


Jan van Kessel, the Elder
(Flemish painter, 1626-1679), Allegory of air, c. 1661.



Ode ao Ar


Andando por um caminho
encontrei o ar
cumprimentei-o e disse
respeitosamente:
"me alegro
pois, uma vez, pelo menos,
abandonas tua transparência
conversemos, então".

Ele, incansável,
dançou, revolveu as folhas
espanou com o sorriso
o pó dos meus sapatos
e içando todo
o azul de seu mastro,
seu esqueleto de vidro,
suas pálpebras de brisa,
imóvel como um cão
ficou me ouvindo.
Eu beijei seu manto
de rei do céu,
me enrolei em sua bandeira
de seda celestial
e disse:
monarca ou camarada,
fio, corola ou pássaro
não sei quem és. Mas
uma coisa te peço,
não te vendas.
A água se vendeu
e nos encanamentos
do deserto
eu tinha visto
extinguirem-se as gotas
e o mundo pobre, o povo
andar sedento
cambaleando na areia.

Vi a luz da noite
racionada,
a luz fulgurante da casa
dos ricos.
Tudo é aurora nos
novos jardins suspensos,
tudo é escuridão
na terrível
sombra do beco.
Daí, a noite,
mãe madrasta,
sai
com um punhal entre
os olhos de coruja,
e um grito, um crime,
se erguem e se apagam
engolidos pela sombra.

Não, ar,
não te vendas,
que não te canalizem,
que não te entubem,
que não te encaixotem
nem te comprimam,
que não te estraçalhem,
que não te engarrafem.
Cuidado!
Me chama
quando precisares de mim,
eu sou o poeta, filho
de pobres, pai, tio,
primo, irmão de carne
e cunhado
dos pobres, de todos,
de meu país e dos outros,
dos pobres que vivem perto do rio,
e dos que nas alturas
da cordilheira vertical
quebram pedra,
pregam tábuas,
costuram roupas,
cortam lenha,
aram a terra,
e por isso
eu quero que eles respirem,
tu és o único que eles têm,
por isso és
transparente,
para que vejam
o que virá amanhã
por isso existes,
ar,
deixa-te respirar,
não te aprisiones,
não confies em ninguém
que venha de automóvel
para te investigar,
deixa-os,
ria deles,
faça os chapéus deles voarem,
não aceites
suas propostas,
vamos juntos
dançando pelo mundo,
arrancando as flores
da macieira
entrando pelas janelas,
assoviando juntos,
assoviando
melodias
de ontem, de amanhã.

Há de vir o dia
em que libertaremos
a luz e a água,
a terra, o homem,
e tudo para todos
será, como tu és.
Então, agora
Cuidado!
E vem comigo
ainda nos resta muito
a dançar e a cantar.
Vamos
ao longo do mar,
ao pico dos montes,
vamos
aonde veremos florescer
a nova primavera
e um sopro de vento
e de canto
compartilharemos as flores,
o aroma, os frutos,
o ar
de amanhã.


Pablo Neruda
, in Odes Elementares, 1954
 Tradução de Roberto Medina

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