quarta-feira, 30 de outubro de 2019

"Estive pensando hoje de manhã" - Poema de José Godoy Garcia


Filippo Palizzi (1818 – 1899), Spring, 1868 
 

Estive pensando hoje de manhã


 
Estive pensando hoje de manhã
que fino trabalho fez o céu?
para amanhecer com cara de romã?
Estive pensando hoje de manhã
onde será que nascem os ventos?
para viverem assim de déu em déu?
que nuvem é como pensamento
sai andando sem poder parar.
Estive pensando hoje de manhã
enganoso pensar que o mar
vive sozinho parado sonhando.
Estive pensando hoje de manhã
que tudo na terra vive amando:
mar, nuvem, vento, ideia, romã.


José Godoy Garcia
,
in 'Antologia Poética' 


quarta-feira, 23 de outubro de 2019

"Anjo da noite" - Poema de Deborah Brennand

Roberto Ploeg, Retrato de Deborah Brennand, 2008 



Anjo da noite

“Dá-me a ilha de Samos como brinde de noivado.”
Bengierd


E sendo o ser todo ser
eu, vetusta ou jovem lusa,
dei o meu olhar de claridade
à vastidão única das brumas
e só no coração uma saudade
era de havidos campos,
campos quase não vistos,
ó enamorado de minha formosura.

Sombria ou ruiva foi a cabeleira
o pouso da coroa em garras.
Abutre no alvor da minha fronte
cravando unhas de diamantes
assim eu disse que as mulheres
não deviam usar trajes escarlates.
Talvez dez dias e oito noites passassem
nas distantes florestas de Lorvão.

E o meu reino era cinzento em culpas,
o meu legado agouro e mal.
Ó enamorado da minha póstuma formosura,
por que de mim tão pouco sabes?


 em "Poesia reunida", 2007


sábado, 19 de outubro de 2019

"Os Limões" - Poema de Eugenio Montale





Os Limões


Escuta-me, os poetas laureados
circulam apenas entre plantas
de nomes pouco usados: buxeiros alienas ou acantos.
Eu, por mim, prefiro os caminhos que levam às valas
cheias de mato onde em lamaçais
já meio secos meninos apanham
alguma esquálida enguia:
as trilhas que bordejam os taludes descem por entre os tufos de caniços
e se metem nas hortas, entre os pés de limão.

Tanto melhor se a algazarra dos pássaros
se dissipa engolida pelo azul:
mais claro se escuta o sussurro
dos galhos amigos no ar que mal se move,
e as sensações deste cheiro
que não se larga da terra
e faz chover no peito uma doçura inquieta.
Aqui se cala por milagre
a guerra das desencontradas paixões,
aqui até a nós, os pobres, toca uma parcela de riqueza
e é o cheiro dos limões.

Vê, neste silêncio no qual as coisas
se entregam e parecem prestes
a trair o seu último segredo,
às vezes esperamos
descobrir um defeito da Natureza,
o ponto morto do mundo, o elo que não prende,
o fio a desenredar que enfim nos leve
ao centro de uma verdade.
O olhar perscruta em volta,
a mente indaga concerta desune
em meio ao perfume que se espalha
enquanto o dia enlanguesce.
São os silêncios em que se vê
em cada sombra humana que se afasta
alguma Divindade surpreendida.

Mas a ilusão se desfaz e o tempo nos devolve
à cidade ruidosa onde o azul mostra-se
apenas por retalhos, no alto, entre as cimalhas.
Castiga a chuva a terra, então; se espessa
o tédio do inverno sobre as casas,
a luz torna-se avara — a alma, amarga.
Quando um dia de um portão malfechado
entre as árvores de um pátio
nos surge o amarelo dos limões;
e no coração o gelo se dissolve,
e no peito estalam
suas canções
as trombetas de ouro da solaridade.


Eugenio Montale
(Tradução: Geraldo H. Cavalcanti)



Edward Seago, A Calm Summer Day (Alkmaar, Late Afternoon)



Avesso


Seu olhar profundo
olha na poça d’água
e enxerga estrelas no fundo.


Helena Kolody
(Haicai)


Edward Seago, North Holland Canal, Alkmaar 


Acaso


A inspiração
irmã do vento
sopra onde quer.


Helena Kolody
(Haicai)

terça-feira, 15 de outubro de 2019

"Amantia Verba" - Poema de Azevedo Cruz


 


Amantia Verba

                     Ao Pereira Nunes
"Esta é a ditosa Pátria minha amada”
(Camões

Campos formosa, intrépida amazona
Do viridente plaino Goitacás!
Predileta do Luar como Verona,
Terra feita de luz e madrigais!

Na planura sem fim do teu regaço
Quem poderá dizer que o sol se esconde?
Para subir aqui — sobra-lhe espaço!
Para descer aqui — não tem por onde!

Oh Paraíba, oh mágica torrente
Soberana dos prados e vergéis!
Por onde passas, como um rei do oriente,
Os teus vassalos vêm beijar-te os pés!

De Otelo tens a cólera, alteroso,
E o quebranto das pérfidas sereias:
Ora revel, nas formidáveis cheias,
Ora em tranquilo e plácido repouso!

Pelo teu dorso quérulo e undiflavo
Vogam lamentos como nunca ouvi...
Ecos talvez das lágrimas do Schiavo,
Ou dos tristes amores de Peri!

Quanta vez fui contar-te as minhas mágoas
(Tu, rio, és meu irmão, tu também penas!)
Embalavam-me as tuas cantilenas,
O doce arfar monótono das águas!

Os meus passeios preferidos lembro :
Beirando o rio, a Lapa, a Igreja, o Asilo,
Toda aquela paisagem, tudo aquilo,
Nas luminosas tardes de Dezembro!

O sol, tamanho gasto e desperdício
De tons e tintas, pródigo, fazia,
Que todo o Paraíba parecia
Iluminado a fogo de artifício!

Nos tempos do Liceu horas inteiras,
Ao pôr do sol, passava-as no mirante:
Monologavam pelo azul distante
Os perfis solitários das palmeiras!

E vinha-me a ilusão que era o rei mouro
O último rei que governou Granada:
Sobre a cidade a púrpura abrasada
E as torres altas, minaretes de ouro!

Em caprichosa curva em face, a franca,
A límpida caudal do Paraíba;
E ao largo, alvissareiro, rio arriba,
O traço alegre de uma vela branca!

Parecias-me muito mais estreito
Visto dali, talvez pela distância,
Companheiro fiel da minha infância,
Rio que rolas dentro do meu peito!

Faixa de opala que a cidade enlaça
Pela cintura, — cíngulo de neve!
Vendo-te, — vê-se bem que a vida é breve!
Corre, vai, rio amigo, tudo passa!

Torres de usinas fumegando a um lado,
Para o poente o Itaoca e em cima e ao fundo,
Diáfano sempre, — um céu imaculado,
Céu de safira sem rival no mundo!

Noite! A esfera armilar da lua cheia
Do sudário das águas surge ao lume,
E tudo ao luar o estranho aspecto assume
Dos castelos da Espanha sobre a areia!

A extrema-unção do luar como que invade
A alma das coisas, sobre tudo esvoeja:
Faz-se toda de mármore a cidade,
Vê-se uma catedral em cada Igreja!

Junho, mês dos noctívagos, corria...
Julieta à varanda debruçada
Vinha escutar a flauta enamorada,
Nas horas mortas, pela noite fria...

Tudo no olvido cai, tudo fenece,
Banco das Cismas, tudo cai no olvido!
Teu nome hoje é vazio de sentido,
A nova geração não te conhece!

Eras outrora o nosso confidente,
O Parnaso da Roda, a nossa Ermida!
Banco das Cismas, quanto sonho ardente
Desfeito em fumo no correr da vida!

Como o rei Harfagar, meu derradeiro
Sono, em teu seio, mude-se em vigília!
Abrigo e lar dos que não têm família!
Meu amado torrão hospitaleiro!

Campos formosa, intrépida amazona
Do viridente plaino Goitacás!
Predileta do Luar como Verona,
Terra feita de luz e madrigais!

Nada iguala os teus dons, os teus primores,
Vai de delícias, o teu céu azul!
Minha terra natal, ninho de amores,
Urna de encantos, pérola do sul!

1901
(Profissão de Fé, págs. XV-XXVII.)


“Amantia Verba” (Declaração de Amor) é um poema dedicado a Campos dos Goytacazes.
Versos desse poema foram utilizados pelo professor e musicista Newton Périssé Duarte ao criar a melodia do “Hino a Campos”. Seu livro póstumo, “Sonho”, reúne outros textos de alta qualidade, tendo sido editado pela Academia Campista de Letras, em 1943.


Garcia Bento, Saveiros, 1925


António Garcia Bento, (1897, Campos dos Goytacazes, RJ - 1929, Rio de Janeiro, RJ). De origem pobre, foi funcionário da Estrada de Ferro Central do Brasil e desenhista contratado pela firma Haust e Cia. Estudou pintura ao ar livre com Levino Fânzeres, na Colmeia dos Pintores do Brasil, curso livre, sempre aos domingos, na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro. No Salão Nacional de Belas Artes, conquistou menção honrosa em 1918, pequena medalha de prata em 1921 e prémio de viagem ao exterior em 1925. Acompanhado da mulher e dos filhos, viajou por dois anos pela Europa, visitando, entre outros países, Portugal, Espanha e Holanda. Os quadros que realizou na Europa, entre os melhores que produziu em sua curta carreira, foram expostos em São Paulo e no Rio de Janeiro em 1928, com sucesso de venda e de crítica. Em 1952, numa grande retrospectiva, o Museu Nacional de Belas Artes expôs mais de sessenta obras de sua autoria. O catálogo da mostra estampa um texto crítico de Gustavo Corção, que foi amigo do artista. No mesmo museu, integrou a mostra 150 Anos de Pintura de Marinha na História da Arte Brasileira (1982). Destacou-se sobretudo como marinhista. (Daqui)



Garcia Bento, Luar
 

"Um fim de mar colore os horizontes."
 
 

domingo, 13 de outubro de 2019

"Ode à Diferença" - Poema de Ana Luísa Amaral


Eri Iwasaki, A light from afar, the beginning of the world, 2014


Ode à Diferença



Felizmente.
Somos todos diferentes. Temos todos
o nosso espaço próprio de coisinhas
próprias, como narizes e manias,
bocas, sonhos, olhos que vêem céus
em daltonismos próprios. Felizmente.
Se não o mundo era uma bola enorme
de sabão e nós todos lá dentro
a borbulhar, todos iguais em sopro:
pequenas explosões de crateras iguais.
Assim e felizmente somos todos
diferentes. Se não a terapia
em grupo era um sucesso e o que é certo
é sermos mais felizes a explorar
solitários o nosso próprio espaço
de manias, de traumas, de unhas dos pés
invaloradas pela nossa cultura
(que lá no Oriente o pé é o caso sério,
motivo sensual e explorativo).
Começa por aí: o mundo di-
vidido por atávicos ritmos
– e outras coisas somenos como guerras
ou fomes (Note Bem: a criatura
é céptica e tem um gosto péssimo,
mas veja-se outros textos que redimem
em sério o que aqui diz. Cf. por ex.
o que quiser, mas deixe a criatura
regalar-se por se pensar – coitada –
incómoda e sonora). Prova evidente
de que somos diferentes, felizmente.
Começa por aí: no mundo divi-
dido – e continua em raças e
raízes. Nós somos portugueses,
tão felizes, com tanta história atrás
e tantos feitos, tantas coisinhas próprias
de delícia: o mar que nos gerou,
e o resto tudo, são bolas pequeninas
de sabão a atestar da diferença
do nosso irmão do lado, esse infeliz
cheio de recalques de tradições e línguas,
paella e calamares. Tem boca como
nós: não canta o fado. Tem pernas como
nós: não dança o vira. Contenta-se
– coitado – com flamencos chorados
e falanges doridas. Somos todos
diferentes, felizmente (Note Bem:
[se a sua paciência ainda não
fugiu despavorida – é sem dê,
mas ela insiste em respeitar
o ritmo –]: isto que a criatura
repete e reafirma, quando em quando,
não deve ser tomado em ligeireza
como sinal senil [aliterou!],
mas como tentativa suicida
de oferecer unidade ao que o não tem,
moralizar o texto a pouco e pouco,
dar-lhe uma ideia igual, ser um mote
formal a contrabalançar a tal
prova evidente. Que de diferenças
estamos todos cheios e isto
pretendia-se uma ode e não foi).
Felizmente


Ana Luísa Amaral


Eri Iwasaki


"O mundo é isso. Um montão de gente, um mar de fogueirinhas. Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras."

Eduardo Galeano,
em "Amares"


quinta-feira, 10 de outubro de 2019

"A visita" - Poema de Deborah Brennand


Peder Mørk Mønsted (1859–1941), The Woodland Glade, 1898



A visita


Longos e longos anos esperei uma visita,
mas só os ramos agitaram a ventania.
Disseram-me - o longe é sem fim.
Todavia, voltei àquele bosque
e lá só estava uma lua de cinzas.

Redisse então tudo o que foi dito:
o nome de flores clandestinas
À mais funda das raízes eu disse
- ermos são de almas vivas
e toda volta é um descaminho.

Felizmente, só estava no bosque uma lua de cinzas.


Deborah Brennand
,
em "Poesia reunida", 2007

domingo, 6 de outubro de 2019

"Anoitecer em Outubro" - Poema de Ferreira Gullar


Théophile Alexandre Steinlen (1859-1923), Siamese Cat and her kitten, 1920
 


Anoitecer em Outubro


A noite cai, chove manso lá fora
meu gato dorme
enrodilhado
na cadeira

Num dia qualquer
não existirá mais
nenhum de nós dois
para ouvir
nesta sala
a chuva que eventualmente caia
sobre as calçadas da rua Duvivier


Ferreira Gullar,
Em alguma parte alguma


 
Louis Wain, Blue Cat, 1932

 

"Perde o gato" - Crónica de Carlos Drummond de Andrade
 

Um jornal é lido por muita gente, em muitos lugares; o que ele diz precisa interessar, senão a todos, pelo menos a um certo número de pessoas. Mas o que me brota espontaneamente da máquina, hoje, não interessa a ninguém, salvo a mim mesmo. O leitor, portanto, faça o obséquio de mudar de coluna. Trata-se de um gato.

Não é a primeira vez que o tomo para objeto de escrita. Há tempos, contei de Inácio e de sua convivência. Inácio estava na graça do crescimento, e suas atitudes faziam descobrir um encanto novo no encanto imemorial dos gatos. Mas Inácio desapareceu — e sua falta é mais importante para mim, do que as reformas do ministério.

Gatos somem no Rio de Janeiro. Dizia-se que o fenómeno se relacionava com a indústria doméstica das cuícas, localizada nos morros. Agora ouço dizer que se relaciona com a vida cara e a escassez de alimentos. À falta de uma fatia de vitela, há indivíduos que se consolam comendo carne de gato, caça tão esquiva quanto a outra.

O fato sociológico ou económico me escapa. Não é a sorte geral dos gatos que me preocupa. Concentro-me em Inácio, em seu destino não sabido. Eram duas da madrugada quando o pintor Reis Júnior, que passeia a essa hora com o seu cachimbo e o seu cão, me bateu à porta, noticioso. Em suas andanças, vira um gato cor de ouro como Inácio — cor incomum em gatos comuns — e se dispunha a ajudar-me na captura. Lá fomos sob o vento da praia, em seu encalço. E no lugar indicado, pequeno jardim fronteiro a um edifício, estava o gato. A luz não dava para identificá-lo, e ele se recusou à intimidade. Chamados afetuosos não o comoveram; tentativas de aproximação se frustaram. Ele fugia sempre, para voltar se nos via distantes. Amava. Seria iníquo apartá-lo do alvo de sua obstinada contemplação, a poucos metros. Desistimos. Se for Inácio — pensei — dentro de um ou dois dias estará de volta. Não voltou.

Um gato vive um pouco nas poltronas, no cimento ao sol, no telhado sob a lua. Vive também sobre a mesa do escritório, e o salto preciso que ele dá para atingi-la é mais do que impulso para a cultura. É o movimento civilizado de um organismo plenamente ajustado às leis físicas, e que não carece de suplemento de informação. Livros e papéis, beneficiam-se com a sua presteza austera. Mais do que a coruja, o gato é símbolo e guardião da vida intelectual.

Depois que sumiu Inácio, esses pedaços da casa se desvalorizaram. Falta-lhes a nota grave e macia de Inácio. É extraordinário como o gato “funciona” em uma casa: em silêncio, indiferente, mas adesivo e cheio de personalidade. Se se agravar a mediocridade destas crónicas, os senhores estão avisados: é falta de Inácio. Se tinham alguma coisa aproveitável era a presença de Inácio a meu lado, sua crítica muda, através dos olhos de topázio que longamente me fitavam, aprovando algum trecho feliz, ou através do sono profundo, que antecipava a reação provável dos leitores.

Poderia botar anúncio no jornal. Para quê? Ninguém está pensando em achar gatos. Se Inácio estiver vivo e não sequestrado, voltará sem explicações. É próprio do gato sair sem pedir licença, voltar sem dar satisfação. Se o roubaram, é homenagem a seu charme pessoal, misto de circunspeção e leveza; tratem-no bem, nesse caso, para justificar o roubo, e ainda porque maltratar animais é uma forma de desonestidade. Finalmente, se tiver de voltar, gostaria que o fizesse por conta própria, com suas patas; com a altivez, a serenidade e a elegância dos gatos.


Carlos Drummond de Andrade, "Perde o gato". In: Cadeira de Balanço (1966)