domingo, 27 de dezembro de 2015

"Velho do Restelo" - personagem introduzido por Luís de Camões no canto IV da sua obra "Os Lusíadas".




Velho do Restelo

Personagem de Os Lusíadas, que constitui uma espécie de defensor da antítese à tese expansionista. Com efeito, este velho «de aspeto venerando», com «um saber de experiência feito», e, como tal, «digno de ser ouvido» - para usar as expressões de Luís de Camões - interveio junto dos navegadores portugueses que se aprestavam para partir para a empresa marítima da Índia, no sentido de lhes alertar contra os perigos da ambição em excesso e da cobiça pelas riquezas vindas do Oriente. Como solução alternativa, advogava a ida para o Norte de África, onde havia praças fortes a conquistar aos Mouros.
Deste modo, o Velho do Restelo representa a voz da razão num momento de euforia e deslumbramento, a voz da experiência perante a irreverência. Em certa parte, os seus conselhos acabaram por se revelar proféticos, pois a prosperidade das Descobertas cedo se revelou fugaz, seguindo-se a decadência económica e territorial. Além disso, as contrapartidas da Expansão eram óbvias: jovens viúvas esperaram eternamente pelos maridos, a sociedade portuguesa tornou-se ociosa e cega pela ganância. [ CITI ]

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

"Romance" - Poema de José Santiago Naud




Romance

Fruto de solidão 
preso à fronde do vento, 
lua, tu nos dás 
a medida do eterno, 
essa altura que jogas 
contra o espaço celeste 
em nós refere a terra, 
que em nossa ânsia integras. 
E ao nosso amor integras 
tudo o que não sofremos, 
tudo o que não tivemos 
e apenas pressentimos, 
em tua marcha sentimos 
tudo o que não teremos 
e tudo o que já viveram 
corações noutros tempos. 
Flanco de solidão, 
maçã casta e sensual 
presa ao ramo oscilante 
entre a alma e o carnal, 
em ti, suprema altura, 
os olhos vão reunindo 
as trilhas do abandono 
e alguns ecos da infância. 

Pata branca de touro 
extraviada no azul. 


in 'Antologia Poética' 

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Arte Religiosa - "Imaculada Conceição"


Bartolomé Esteban Murillo, "A Imaculada Conceição dos Veneráveis", 1678



A Imaculada Conceição é, segundo o dogma católico, a concepção da Virgem Maria sem mancha (em latim, macula ) do pecado original. O dogma diz que, desde o primeiro instante de sua existência, a Virgem Maria foi preservada por Deus, da falta de graça santificante que aflige a humanidade, porque ela estava cheia de graça divina. Também professa que a Virgem Maria viveu uma vida completamente livre de pecado.

A festa da Imaculada Conceição, comemorada em 8 de dezembro, foi definida como uma festa universal em 28 de Fevereiro de 1476 pelo Papa Sisto IV.

A Imaculada Conceição foi solenemente definida como dogma pelo Papa Pio IX em sua bula Ineffabilis Deus em 8 de Dezembro de 1854. A Igreja Católica considera que o dogma é apoiado pela Bíblia (por exemplo, Maria sendo cumprimentada pelo Anjo Gabriel como "cheia de graça"), bem como pelos escritos dos Padres da Igreja, como Irineu de Lyon e Ambrósio de Milão. Uma vez que Jesus tornou-se encarnado no ventre da Virgem Maria, era necessário que ela estivesse completamente livre de pecado para poder gerar seu Filho. (Daqui)


Bartolomé Esteban Murillo, Imaculada Conceição, 1650


Imaculada Conceição de Peter Paul Rubens, 1627, no Museu do Prado.


Diego Velázquez, Imaculada Conceição, 1618


Imaculada Conceição de Piero di Cosimo, de 1505


Imaculada Conceição de Juan Antonio de Frías y Escalante (1633-1669) 


Imaculada Conceição de Juan Antonio de Frías y Escalante, 1663


Imaculada Conceição de Juan Antonio de Frías y Escalante, 1667


Juan Carreño de Miranda, The Assumption of the Virgin, 1657


Imaculada Conceição de Francisco de Zurbarán, de 1630

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

"Converteu-se-me em Noite o Claro Dia" - Soneto de Luís Vaz de Camões


Baldassare Peruzzi (1481–1537), Muses Dancing with Apollo (c.1514/1523)



Converteu-se-me em Noite o Claro Dia 


Apolo e as nove Musas, descantando 
Com a dourada lira, me influíam 
Na suave harmonia que faziam, 
Quando tomei a pena, começando: 

Ditoso seja o dia e hora, quando 
Tão delicados olhos me feriam! 
Ditosos os sentidos que sentiam 
Estar-se em seu desejo traspassando! 

Assim cantava, quando Amor virou 
A roda à esperança, que corria 
Tão ligeira, que quase era invisível. 

Converteu-se-me em noite o claro dia; 
E, se alguma esperança me ficou, 
Será de maior mal, se for possível. 


Luís de Camões, in "Sonetos"



Atena junto às Musas, de Frans Floris (c. 1560)



"Ó que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã, e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo."


A Ilha dos Amores,
Na estrofe LXXXIII do Canto IX de “Os Lusíadas


domingo, 6 de dezembro de 2015

"O Julgamento de Páris " - Mitologia Grega



(Julgamento de Páris é um conto da mitologia grega que é um prelúdio para a Guerra de Tróia.)


De acordo com o mito grego, a Guerra de Tróia viria a ser causada por um simples evento, normalmente chamado "O Julgamento de Páris", cujos contornos gerais descrevo em seguida:

Apesar de terem sido muitos os convidados para um banquete em que se celebrava o casamento de Peleu e Tétis, Éris, deusa da discórdia, não foi uma das divindades convidadas. Irritada, a deusa enviou ao evento um maçã de ouro, na qual se podia ler a inscrição "Para a mais bela". Três deusas - Hera, Atena e Afrodite - responderam a esse desafio.
Zeus, incapaz de escolher uma vencedora, atribuiu tal honra a Páris, um mortal cujos dotes já estavam comprovados. Aparecendo a este herói, cada uma das deusas tentou atribuir um suborno a Páris: Hera dar-lhe-ia o trono da Ásia e Europa, Atena torná-lo-ia mais sábio e Afrodite dar-lhe-ia o amor da mais bela mulher, caso ele escolhesse cada uma delas para vencedora.
Talvez movido pela luxúria, Páris deu a maçã a Afrodite, com os efeitos desta decisão (e o posterior rapto de Helena, a mais bela mulher) a originarem a Guerra de Tróia.

Apesar de trivial, a decisão de Páris foi bastante importante para o desenvolvimento da Guerra de Tróia. São poucos os mitos que referem os dotes físicos de Atena, uma divindade associada ao dom da sabedoria, mas em termos de beleza física Hera é, normalmente, considerada como superior a Afrodite, uma deusa cujos atributos são mais ligados ao dom da paixão e do complexo amor. Poderão ter sido muitas as razões para a decisão que Páris tomou, mas o interesse no amor de uma bela mulher parece ser o mais óbvio.

É importante constatar que ambas as deusas preteridas apresentaram um papel fundamental na Guerra de Tróia, com Atena a participar diretamente no conflito. A escolha do herói apresenta, também, um papel claramente metafórico, em que a este é proposta uma escolha entre dons físicos e atributos mentais, altura em que Páris parece favorecer o amor em detrimento da riqueza ou sabedoria. Também o famoso rei Midas, um mito referido anteriormente, teria opções similares, vindo a sofrer terríveis consequências.

Vítima da promessa de Afrodite, Helena tornar-se-ia amante de Páris, razão pela qual seria levada para Tróia e originaria o mais famoso conflito da Grécia Clássica. O tema de uma mulher causadora de infelicidade, seja diretamente ou de forma indireta, é frequente nesta mitologia, como também pode ser visto no mito de Pandora. 

Apenas para dar uma nota final, é importante frisar que esta maçã de ouro pouco tem a ver com outros famosos frutos, as Maçãs das Hespérides, apesar de partilharem algumas características físicas.

"O Mundo está prestes a rebentar" - Poema de Harold Pinter


Joachim Wtewael, The Deluge, 1595, 148 x 184.6 cm, Germanisches Nationalmuseum
 


O Mundo está prestes a rebentar


Não olhes. 
O mundo está prestes a rebentar. 

Não olhes. 
O mundo está prestes a despejar a sua luz 
E a lançar-nos no abismo das suas trevas, 
Aquele lugar negro, gordo e sem ar 
Onde nós iremos matar ou morrer ou dançar ou chorar 
Ou gritar ou gemer ou chiar que nem ratos 
A ver se conseguimos de novo um posto de partida. 


Harold Pinter, in "Várias Vozes"
Tradução de Jorge Silva Melo e Francisco Frazão
Quasi Edições
 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

"Sonhar" - Poema de Helena Kolody


Anton Melbye, The Eddystone Lighthouse (1846)


Sonhar


Sonhar é transportar-se em asas de ouro e aço
Aos páramos azuis da luz e da harmonia;
É ambicionar o céu; é dominar o espaço,
Num voo poderoso e audaz da fantasia.

Fugir ao mundo vil, tão vil que, sem cansaço,
Engana, e menospreza, e zomba, e calunia;
Encastelar-se, enfim, no deslumbrante paço
De um sonho puro e bom, de paz e de alegria.

É ver no lago um mar, nas nuvens um castelo,
Na luz de um pirilampo um sol pequeno e belo;
É alçar, constantemente, o olhar ao céu profundo.

Sonhar é ter um grande ideal na inglória lida:
Tão grande que não cabe inteiro nesta vida,
Tão puro que não vive em plagas deste mundo.


Helena Kolody


Helena Kolody


Helena Kolody (Cruz Machado, 12 de outubro de 1912 — Curitiba, 15 de fevereiro de 2004) foi uma poetisa brasileira.
Seus pais foram imigrantes ucranianos que se conheceram no Brasil. Helena passou parte da infância na cidade de Rio Negro, onde fez o curso primário. Estudou piano, pintura e, aos doze anos, fez seus primeiros versos.
Seu primeiro poema publicado foi A Lágrima, aos 16 anos de idade, e a divulgação de seus trabalhos, na época, era através da revista Marinha, de Paranaguá.
Aos 20 anos, Helena iniciou a carreira de professora do Ensino Médio e inspetora de escola pública. Lecionou no Instituto de Educação de Curitiba por 23 anos. Helena Kolody, segundo o que consta em seu livro Viagem no Espelho, foi professora da Escola de Professores da cidade de Jacarezinho, onde lecionou por vários anos.
Seu primeiro livro, publicado em 1941, foi Paisagem Interior, dedicado a seu pai, Miguel Kolody, que faleceu dois meses antes da publicação.
Helena se tornou uma das poetisas mais importantes do Paraná, e praticava principalmente o haicai, que é uma forma poética de origem japonesa, cuja característica é a concisão, ou seja, a arte de dizer o máximo com o mínimo. Foi a primeira mulher a publicar haicais no Brasil, em 1941. (Daqui)


Anton MelbyeSea at Night


Dom

Deus dá a todos uma estrela.
Uns fazem da estrela um sol.
Outros nem conseguem vê-la.



Helena Kolody
in: "Viagem no espelho : e vinte e um poemas inéditos" - página 46


quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

"Revelando a mágica" - Poema de Charles Bukowski


Robert Panitzsch (Dinamarquês, 1879-1949)



Revelando a mágica


um bom poema é como uma cerveja gelada
quando você está a fim
um bom poema é como um misto
quente quando você está
faminto,
um bom poema é uma arma quando
a multidão te cerca,
um bom poema é algo que
te permite atravessar as ruas da morte,
um bom poema pode fazer a morte derreter como
manteiga quente,
um bom poema pode emoldurar a agonia e 
pendura-la na parede,
um bom poema permite teus pés tocarem
a China,
um bom poema pode fazer uma mente despedaçada 
voar,
um bom poema te permite cumprimentar
Mozart,
um bom poema te permite jogar dados
com o diabo
e ganhar,
um bom poema pode fazer quase qualquer coisa, 
e o mais importante
um bom poema sabe quando
acabar.


Poema de Charles Bukowski
Tradução de Fernando Koproski
do livro "Essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não ser a mim mesmo amém" 

domingo, 29 de novembro de 2015

"Amanhecimento" - Poema de Elisa Lucinda


Jean-Honoré Fragonard, The Stole Kiss, 1780



Amanhecimento


De tanta noite que dormi contigo
no sono acordado dos amores
de tudo que desembocamos em amanhecimento
a aurora acabou por virar processo.
Mesmo agora
quando nossos poentes se acumulam
quando nossos destinos se torturam
no acaso ocaso das escolhas
as ternas folhas roçam
a dura parede.
nossa sede se esconde
atrás do tronco da árvore
e geme muda de modo a
só nós ouvirmos.
Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos
o pio de todas as asneiras
todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha
Para um dia partirem em revoada.
Ainda que nos anoiteça
tem manhã nessa invernada
Violões, canções, invenções de alvorada…
Ninguém repara,
nossa noite está acostumada.



sábado, 28 de novembro de 2015

"Soneto de Contrição" - Poema de Vinicius de Moraes


Friedrich von Amerling, A Pensive Moment, 1835

 

Soneto de Contrição 


Eu te amo, Maria, eu te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
Mais cresce na minha alma teu encanto. 

Como a criança que vagueia o canto
Ante o mistério da amplidão suspensa
Meu coração é um vago de acalanto
Berçando versos de saudade imensa. 

Não é maior o coração que a alma
Nem melhor a presença que a saudade
Só te amar é divino, e sentir calma… 

E é uma calma tão feita de humildade
Que tão mais te soubesse pertencida
Menos seria eterno em tua vida.


 in 'Antologia Poética'
 

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

"E assim em Nínive" - Poema de Ezra Pound


Marcus Stone (1840-1921), The End of the Story, 1900
 


E assim em Nínive


Sim! Sou um poeta e sobre minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.

Vê! não me cabe a mim
Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou um poeta e sobre minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul.

Não é, Raana, que eu soe mais alto
Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho. 
 
do livro "Ezra Pound Antologia De Poemas" 
(tradução de Augusto de Campos)

"Operário em construção" - Poema de Vinicius de Moraes

Grenade by Banksy  (Daqui)



O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO
Rio de Janeiro, 1959
E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo: — Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu. E Jesus, respondendo, disse-lhe: — Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás (Lucas, cap. IV, versículos 5-8).

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

Vinicius de Moraes

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

"O Cemitério Marinho" - Poema de Paul Valéry


William Orpen, Grace Reading at Howth Bay, 1902



O Cemitério Marinho


Esse teto tranquilo, onde andam pombas,
Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
O meio-dia justo nele incende
O mar, o mar recomeçando sempre.
Oh, recompensa, após um pensamento,
Um longo olhar sobre a calma dos deuses!

Que lavor puro de brilhos consome
Tanto diamante de indistinta espuma
E quanta paz parece conceber-se!
Quando repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas obras de uma eterna causa
Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria.

Tesouro estável, templo de Minerva,
Massa de calma e nítida reserva,
Água franzida, olho que em ti escondes
Tanto de sono sob um véu de chama,
— Ó meu silêncio!… Um edifício na alma,
Cume dourado de mil, telhas, teto!

Templo do Templo, que um suspiro exprime,
Subo a este ponto puro e me acostumo,
Todo envolto por meu olhar marinho.
E como aos deuses dádiva suprema,
O resplendor solar sereno esparze
Na altitude um desprezo soberano.

Como em prazer o fruto se desfaz,
Como em delícia muda sua ausência
Na boca onde perece sua forma,
Aqui aspiro meu futuro fumo,
Quando o céu canta à alma consumida
A mudança das margens em rumor.


Trecho de “O Cemitério Marinho”
Tradução de Darcy Damasceno






Poema

Um dia, eu e meu sonho a sós,
Eu e meu sonho.
Deitei na areia a cabeça derrotada por mares vingativos
E tormentas abatidas sobre crepúsculos macios.
No bojo de meu sonho rolava um canto de vencido,
Um mar se debatia entre as minhas mãos crispadas.
Sobre a areia eu e meu sonho, derrotados,
E sobre a vida e sobre a morte
Um céu de exílio se abateu.


Darcy Damasceno
1922-1988
poeta, crítico e tradutor


domingo, 22 de novembro de 2015

"Dispersão" - Poema de Mário de Sá-Carneiro


Retrato do pintor Paulus Potter (1654) por Bartholomeus van der Helst
 


Dispersão 


Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto, 
E hoje, quando me sinto, 
É com saudades de mim. 

Passei pela minha vida 
Um astro doido a sonhar. 
Na ânsia de ultrapassar, 
Nem dei pela minha vida... 

Para mim é sempre ontem, 
Não tenho amanhã nem hoje: 
O tempo que aos outros foge 
Cai sobre mim feito ontem. 

(O Domingo de Paris 
Lembra-me o desaparecido 
Que sentia comovido 
Os Domingos de Paris: 

Porque um domingo é família, 
É bem-estar, é singeleza, 
E os que olham a beleza 
Não têm bem-estar nem família). 

O pobre moço das ânsias... 
Tu, sim, tu eras alguém! 
E foi por isso também 
Que te abismaste nas ânsias. 

A grande ave dourada 
Bateu asas para os céus, 
Mas fechou-as saciada 
Ao ver que ganhava os céus. 

Como se chora um amante, 
Assim me choro a mim mesmo: 
Eu fui amante inconstante 
Que se traiu a si mesmo. 

Não sinto o espaço que encerro 
Nem as linhas que projeto: 
Se me olho a um espelho, erro - 
Não me acho no que projeto. 

Regresso dentro de mim, 
Mas nada me fala, nada! 
Tenho a alma amortalhada, 
Sequinha, dentro de mim. 

Não perdi a minha alma, 
Fiquei com ela, perdida. 
Assim eu choro, da vida, 
A morte da minha alma. 

Saudosamente recordo 
Uma gentil companheira 
Que na minha vida inteira 
Eu nunca vi... Mas recordo 

A sua boca doirada 
E o seu corpo esmaecido, 
Em um hálito perdido 
Que vem na tarde doirada. 

(As minhas grandes saudades 
São do que nunca enlacei. 
Ai, como eu tenho saudades 
Dos sonhos que não sonhei!...) 

E sinto que a minha morte - 
Minha dispersão total - 
Existe lá longe, ao norte, 
Numa grande capital. 

Vejo o meu último dia 
Pintado em rolos de fumo, 
E todo azul de agonia 
Em sombra e além me sumo. 

Ternura feita saudade, 
Eu beijo as minhas mãos brancas... 
Sou amor e piedade 
Em face dessas mãos brancas... 

Tristes mãos longas e lindas 
Que eram feitas para se dar... 
Ninguém mas quis apertar... 
Tristes mãos longas e lindas... 

E tenho pena de mim, 
Pobre menino ideal... 
Que me faltou afinal? 
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!... 

Desceu-me na alma o crepúsculo; 
Eu fui alguém que passou. 
Serei, mas já não me sou; 
Não vivo, durmo o crepúsculo. 

Álcool dum sono outonal 
Me penetrou vagamente 
A difundir-me dormente 
Em uma bruma outonal. 

Perdi a morte e a vida, 
E, louco, não enlouqueço... 
A hora foge vivida, 
Eu sigo-a, mas permaneço... 

. . . . . . . . . . . . . . . 
. . . . . . . . . . . . . . . 


"Os Vendilhões do Templo" - Poema de António Aleixo


A ratificação do Tratado de Münster, 15 de maio de 1648 por Gerard ter Borch, 1648



Os Vendilhões do Templo


Deus disse: faz todo o bem 
Neste mundo, e, se puderes, 
Acode a toda a desgraça 
E não faças a ninguém 
Aquilo que tu não queres 
Que, por mal, alguém te faça. 

Fazer bem não é só dar 
Pão aos que dele carecem 
E à caridade o imploram, 
É também aliviar 
As mágoas dos que padecem, 
Dos que sofrem, dos que choram. 

E o mundo só pode ser 
Menos mau, menos atroz, 
Se conseguirmos fazer 
Mais p'los outros que por nós. 

Quem desmente, por exemplo, 
Tudo o que Cristo ensinou. 
São os vendilhões do templo 
Que do templo ele expulsou. 

E o povo nada conhece... 
Obedece ao seu vigário, 
Porque julga que obedece 
A Cristo — o bom doutrinário. 


in "Este Livro que Vos Deixo..."


 Bartholomeus van der Helst, Banquete da Guarda Cívica Amsterdã em celebração da Paz de Münster,
 pintado em 1648, exposto no Rijksmuseum.

sábado, 21 de novembro de 2015

"A poesia vai acabar" - Poema de Manuel António Pina


Alicia Czechowski (American, b. 1953), Figura num patamar


A poesia vai acabar 


A poesia vai acabar, os poetas 
vão ser colocados em lugares mais úteis. 
Por exemplo, observadores de pássaros 
(enquanto os pássaros não acabarem). 
Esta certeza tive-a hoje ao 
entrar numa repartição pública. 
Um senhor míope atendia devagar 
ao balcão; eu perguntei: 
"Que fez algum poeta por este senhor?" 
E a pergunta afligiu-me tanto 
por dentro e por fora da cabeça que 
tive que voltar a ler 
toda a poesia desde o princípio do mundo. 
Uma pergunta numa cabeça. 
– Como uma coroa de espinhos: 
estão todos a ver onde o autor quer chegar? –


Manuel António Pina
in "Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo.
 Calma é Apenas um Pouco Tarde"

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

"Carta (Esboço)" - Poema de Nuno Júdice


 


Carta (Esboço)


Lembro-me agora que tenho de marcar um 
encontro contigo, num sítio em que ambos 
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma 
das ocorrências da vida venha 
interferir no que temos para nos dizer. Muitas 
vezes me lembrei de que esse sítio podia 
ser, até, um lugar sem nada de especial, 
como um canto de café, em frente de um espelho 
que poderia servir de pretexto 
para refletir a alma, a impressão da tarde, 
o último estertor do dia antes de nos despedirmos, 
quando é preciso encontrar uma fórmula que 
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É 
que o amor nem sempre é uma palavra de uso, 
aquela que permite a passagem à comunicação ; 
mais exata de dois seres, a não ser que nos fale, 
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós 
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio 
ser, como se uma troca de almas fosse possível 
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e 
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas 
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde, 
isto é, a porta tinha-se fechado até outro 
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então 
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem 
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar 
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos 
para dizer um ao outro: a confissão mais exata, que 
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por 
trás disso, a certeza de que o mundo há de ser outro no dia 
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores 
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos 
encontrar, que há de ser um dia azul, de verão, em que 
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí 
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas, 
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo 
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros. 


 Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”