domingo, 19 de maio de 2024

"Exílio" - Poema de Pedro Paulo de Sena Madureira


Ricardo Ruivo (Pintor português, 1877–1910), Retrato de velha, 1906.
 Óleo sobre tela, 61 x 50 cm.


Exílio 
 
 
Dentro de cada rosto vai-se
e perde o passo antes certo
que não se quisera passo, mas silêncio.

Se em vão caminha e nada encontra,
um rosto e cada ruga, cada cancro
conferem o périplo e o decretam
desde sempre, nas frias manhãs do tempo, nulo.

Mármores, fátua memória de um crime,
ou qualquer música degredada em pranto,
nada falta, mas fasta, imóvel, sucessiva
uma lua basta e sua lousa, desterro.

Letras, pedras, fomes, por entre grades paisagem
ou rosto informe no fundo de uma página,
vai a viagem ontem e esquece, urro ou simples erro. 


Pedro Paulo Sena Madureira, in 'Devastação'
 


Ricardo Ruivo, Retrato de mendigo, 1903
Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves

"Entre nós é vergonhoso reconhecer a própria pobreza; mas pior do que isso é não esforçar-se para escapar dela."

Tucídides, A Guerra do Peloponeso 
 

Ricardo Ruivo, Cristãos Fugindo à Perseguição de Nero, c. 1906-7, Óleo sobre tela,
253,5 x 404 cm. Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.
 
 
 
Sobre a obra e o autor

Christãos fugindo à perseguição de Nero, c. 1906-1907

Ricardo Ruivo Júnior (Coimbra, 1877 — Paris, 1910) foi uma destacada promessa da geração de alunos da Escola de Belas-Artes de Lisboa a formar-se logo à entrada do século XX, mas que não se cumpriu, tendo falecido prematuramente durante a sua estadia de bolseiro em Paris. Por esse mesmo motivo, o seu nome tem estado esquecido e muito pouco estudado. 
 
Registos escolares indicam-no como um dos alunos mais reconhecidos pelos professores. Ganhou o Prémio Anunciação em 1904, pintura de academia de base animalista e várias medalhas de bronze e de prata que eram atribuídas, em diversas cadeiras, às melhores notas. Em 1904 e 1905 recebeu o Prémio Ferreira Chaves para alunos de pintura com melhor classificação em Composição. Sabe-se que para o ano de 1905, então aluno do 4º ano de Pintura de História apresentara uma composição d’O Enterro de Cristo (reproduzida na Ilustração Portugueza em 1911). A FBAUL tem na sua coleção dois desenhos de Cabeça de Estátua e uma Academia de nu masculino.

Não se conhecem muitos trabalhos de Ricardo Ruivo fora do percurso escolar.
Sabe-se que trabalhou na decoração de azulejo do Sanatório de Sant’Anna na Parede (Cf. O Século, 9 Julho, 1904). Uma pequena crónica não assinada no jornal Resistência (10 Fevereiro, 1907) informava que o jovem pintor se encontrava a trabalhar num conjunto de 4 painéis para um «club de Lisboa». Ao mesmo tempo era apresentado como «um dos discípulos que mais promete», cujos primeiros passos «são seguidos carinhosamente pela crítica da capital que antevê» «o alvorecer de um grande talento», acrescentando ainda que «Columbano Bordalo Pinheiro tem pelo novo pintor, que foi seu discípulo, uma admiração que faz o máximo elogio ao sr. Ricardo Ruivo». Na sequência anunciava-se que «para complemento da sua educação» estava indicada uma viagem ao estrangeiro.

De facto, foi com este reconhecimento que, ainda em 1907, partiu para Paris com bolsa do legado Valmor – importante bolsa criada logo no início do século, que completava as tradicionais da Academia e que possibilitou o aumento considerável de artistas portugueses em Paris desde inícios do século XX até à I Guerra Mundial. Era ainda brevemente referido em artigo escrito por Aquilino Ribeiro em Março de 1909 sobre «Artistas Portugueses em Paris». Contudo, vítima de ataque de tuberculose (também se relatou apagamento da mente após «desequilíbrio nervoso»), Ricardo Ruivo falecia pouco depois, em meados de 1910, sem oportunidade de cumprir qualquer prova de bolseiro nem, muito menos, a devida maturidade de um percurso artístico.

Nesta pintura, Christãos fugindo à perseguição de Nero, Ricardo Ruivo cruzava influências de Veloso Salgado, por quem recebia influências indiretas do pintor francês Fernand Cormon, e do seu mestre Columbano, ambos professores de pintura de história na Escola de Belas-Artes de Lisboa no seu tempo escolar. Veloso Salgado inspirava um simbolismo religioso. Columbano uma pincelada larga e de plural paleta castanha. Mas verificam-se marcas de Cormon, sobretudo da famosa pintura Caïn fuyant avec sa famille, grande sucesso no salon parisiense de 1880, que narra a marcha de Caim, castigado a caminhar perpetuamente com os seus filhos por ter matado o irmão Abel, cena diretamente inspirada em poema de Victor Hugo sobre a narrativa bíblica. Veloso Salgado fizera cópia reduzida desta obra em 1981, numa clara homenagem a Cormon de quem tinha tido lições nas Belas-Artes de Paris, cópia essa também da coleção da FBAUL. Por estas vias houve uma influência de Cormon na formação de jovens pintores na escola de Belas-Artes de Lisboa à entrada do século XX, assinalada ainda noutros pintores colegas de Ricardo Ruivo, como Adriano Sousa Lopes, companheiro de geração com quem Ricardo Ruivo se cruzaria tanto em Lisboa como em Paris na primeira década do século XX.

Esta obra de dimensões bem maiores que a referida cópia de Veloso Salgado, que Ricardo Ruivo pudera ver na Escola de Belas-Artes de Lisboa, apresenta menos figuras, aproximando-se mais da escala da peça de Cormon. A narrativa, também assente na questão da expulsão e fuga, é contudo outra, também religiosa, mas menos bíblica e mais histórica. O quadro surge reproduzido na Ilustração Portuguesa (3 Abril 1911), em artigo de homenagem à morte precoce do jovem pintor e por ocasião de uma exposição do seu espólio na Academia de Belas-Artes, sendo apresentado com o título: Christãos fugindo à perseguição de Nero. As figuras, de corpo inteiro e de escala imponente avançam da esquerda para a direita, onde o espaço se abre, sofrendo o impacto de forças da natureza pela força do vento que afeta cabelos e vestes em efeito de dramatização. O quadro revela uma clara ambição escolar de Ricardo Ruivo, o que ajuda a entender o reconhecimento que lhe foi consagrado e que certamente o terá ajudado na conquista da bolsa para Paris, sendo de supor que terá sido realizada pouco antes (c.1906-1907). 
  
 

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