quarta-feira, 17 de outubro de 2018

"As Profecias" - Poema de Lindolf Bell


John French Sloan, 1912, Sunday, Women Drying Their Hair, oil on canvas, 66 x 81.3 cm



As profecias


Depois de tudo
minha casa permanecerá nos fundos

Minguantes novos
cidades mortas
ruas desconhecidas

barcos de vento
perdidos sons

foi lá que brinquei de longe
e perdi-me de mim
foi lá a primeira tosquia
quando me tiraram tudo

Nem o leque
para afugentar a maturação
Nem a haste
para defender-me das feras
Nem o silêncio
para vestir-me no esquecimento

Minha casa permanecerá nos fundos
Foi lá que brinquei de longe
e me perdi de mim

II 

A flor abre-se em terra
para o forte a ser nosso

Perto estamos dos rios coagulados
de mel colhido aos tempos
e da noturna fé de ser impuro
benvinda das lonjuras

Perto estamos dos infantes campos
junto ao longe tranquilo de viver
Ouvi, solitários meninos, solitários meninos:
o vento chão que varre os prados
onde somos horizontes, afinal.

III 

Trago a palma nas mãos, aqui estou
ante o espaço maduro de não ser

Passam os caminhos, lúcidos tão lúcidos
que nem pressentirão o doído curso de ser nunca
no fluxo fértil
a gerar e gerar
a vindoura raça em solidão

Imóvel sobre o tronco
o vento pesa-nos desde ontem
entre a colheita e o presságio,
o rio, o silêncio,
a geração comigo finda
e a esta cidade que ninguém povoou
como o puro rebanho à espera de abdicar

IV

Serei o triste pássaro cruzando fronteiras
Este que atravessou a memória
e construiu um ninho de pedra
e madurou a casca do tempo
Quantos voos dentro do rio
de intemporais infâncias
e que esponsais com a vida,
uma margem uma árvore, a solução,
em solidão

Em todas as superfícies limarei a eternidade
Nestas carroças de tábuas temporais
correrei as esperas
Sobre todos os telhados,
infinitos quebrados,
e através
tudo mora através,
rosais anoitecendo
outras idades,
a noite em limo
quase maturação,
e meu bico contra as auroras
a descobrir um povoado de amigos


Basta, pai, feixe de raiz,
em mim a noite serenou

Há olheiras nos anjos e nos homens
e distâncias incontidas nos corações

Virão os primeiros caminhos
a lápis negros trançados
e as incriadas metamorfoses
do verbo e do sopro na inconclusão
Mas no merídio da pureza morta
ouviremos ressurgir
a solidão em outra solidão

VI 

Buscamos algo profundo nesta superfície plana
onde ninguém se atinge neste tempo de correr
e neste flanar de tempo entre dedos
voltaremos a crescer e decrescer

Atrás da janela escondem-se os planos
que nos fazem pensar e nos fazem crer
e do joio entre os grãos e do trigo entre os anos
o vício inculto de ter vida e não ser

Ah. Isto tudo lançaremos pelas comportas
Este chão de ser triste, esta vida,
este pecado solitário de chorar
E destino, vontade de morrer, sorrir,
ante a nostalgia de sermos assim,
assim seremos irmãos, os loucos, as loucas, enfim

VII 

Nossos corpos serão corpos na esteira
e nossos frutos os da noite e do dia
Por isso me existe este grito, para além, para além,
e entre as naus a partir ainda tenho-me total

Depois, depois será depois,
o tempo a germinar e cair,
E depois, ainda será depois,
já com outro tempo e outro cair,

VIII

Finitos deuses legaram-me certezas,
e o sal e o corpo e o pranto e a solidão

Por isso digo loucuras, mentiras e verdades
Por isso sou profeta da torre do sempre e do nunca
Por isso conheço os caminhos e adivinho os corações
Por isso falo ao espinho e à flor
e vejo através dos desertos,
os mares e os castelos de meu pai
e vejo, por entre os céus, o ventre de minha mãe

Assim amanhecerei em distância
Porque ser distante é ter herdado
e desconhecer, ou tentar desconhecer,
ou ainda desconhecendo, pressentir,
todo este pranto legado, o sal, o corpo, e a solidão
— brusco eclodir da próxima dimensão

IX 

Deus, inculto irmão, até quando me trairás
com esta força de fazer-te longe?

Chamam-te asa, infinito, argamassa, argonauta
Mas quem de nós perdeu-se antes
ou depois,
que ninguém percebe o sangue igual
em nossa forma ancestral?

Sagarços e sagarços já me sufocam as mãos
e Tu, força grande de ser fraco
tens do espaço a ausência
e sabes apenas das árvores em solidão


Os inimigos brincam sobre o muro agora
e nos refúgios de antes, unem os corpos de amor
Eram beiras e trincheiras
os rios de fome fluindo ao mar
e andastes e veloces as moradas
e o viver e o morrer, o plantar e desplantar

Os inimigos plantam bosques agora
nos campos onde perderam os olhos e as almas
pois no escuro e no dia pairam outros espaços,
não rangem mais aços,
e terra e lama e rio e jardim
com ventres e húmus e cosmos e tudo
para as coisas fluírem de ontem e de hoje

Os inimigos reconstroem a arca de agora
com madeiras do mundo e madeiras do mundo
Baixam as águas para lavar os rostos dos que dormem
e as árvores crescem para dar sombra aos que vivem
Só antes o tempo era tempo
e antes do tempo despetalar
foi preciso construir e destruir
Os inimigos retesam arcos e disparam grãos agora
para o alvo a ser nosso na última solidão.

XI 

Ergam a mortalha, o morto dorme
Deixem apenas as ervas
e o grande limo sobre o rosto tranquilo
Nada mudou
O mortal e o imortal
trançando o labirinto
Em todas as veias o ciclo certo
e as âncoras do mar mais alto
ilhando-nos da casta infantil
Somente as andorinhas tardam
E as viagens ferem os tempos
e de corpos, cascos, velas,
constroem cidadelas,
enquanto sigo — vigia eleito —
dentro do que é sólido e sempre
no arquipélago da solidão

XII 

Esta cidade que dorme em meus braços
quando amanheço
fecundarei de noites
em seus altos corpos de cal

Na ampla visão de suas pequenas coisas
nascerão meus poemas
Nada de florestas, apenas arbustos no plano
Nada de anos a pesarem sobre nós
apenas a hora de nos encontrar

Já vêm grimpar-nos os loucos
com noites ainda noites
mas seus porões de cera derreteram ao sol

O bulbo de outono nas ancas
E o florescer de calêndulas que nunca virão
a Cidade, pressinto um girassol na solidão
e um espelho na ventura —
— criança a construir
junto aos muros caiados de velhice

XIII 

Que tribo errante somos dentro da noite
no colher de limo nas franjas da rua
Não há quem nos pergunte caminhos
porque desconhecemos
Não há quem nos abra as portas —
crianças traídas, crescemos sem fé

Temos nos corações a passagem antecipada
e sem nome e sem destino embarcaremos no próximo porvir
Que liturgia sem teto riscou nossa infância
Que trauma horrível crivou-nos de apreensão
pois somos como os pomos
longe de nós e dos outros no alto do pomar

As palmas jazem agora
No rosto do anjo o rumor da asa
E na balsa frágil a levar-nos
de um a outro lado da vida
precedemos a solidão

XIV

Até lá
se apagarão os reflexos nos vidros
e o sol diluído em chama clara
rolará no silêncio febril
Que rosas estão nas urnas
Que lágrimas de chumbo então nas hastes
E os ecos a bisarem os ecos
como pedras na vidraça
filtrarão a vida em solidão

Será então a noite maior
a não vir mais dentro de si
e seu molde infinito a perambular
correrá um riacho escuro em nossas mãos

Rascunharemos as vanguardas e os vindouros
E avançaremos as tarefas como homens maduros
Com o plano adulto de catar o inútil
Teremos a velar-nos realmente
o que chamaram de início e fim

XV

Sei na noite um moinho de vento
e um vento sul nos séculos todos
Noites e noites a noite gasta-se terrivelmente
como negra roda no retorno do tempo
e no retorno do tempo a espera do tempo
e a catástrofe na lâmina da solidão

Ouço tambores no moinho,
asas abrindo-se
mil portas abrindo papoulas
Ah. Papoulas,
sobre o muro que dá para fora do tempo
Continua o moinho a girar no capim
as sombras de ontem
e a correr riachos em volta dos estames
em memória da saudade
ainda momento a ressurgir

Ah. Que sensação de estar pregado no moinho
com cardos de todas as nações
contra todas as noites empalhadas
contra os ventos a ventar-me de ilha em ilha
Eis a esponja no escuro vinagre
e a terra abrindo-se do abismo
Sou o Cristo de Vento
a girar sobre a solidão
in “Os Póstumos e as Profecias”.
.

John French SloanA Woman's Work, 1912, oil on canvas 80.3 x 65.4 cm


"Só quem sofre sonha. Só quem sonha vive. Só quem vive sofre. Assim são aqueles que sabem fazer as nuvens que derrubam montanhas."

  
José Luís Nunes Martins,
in Filosofias, 79 Reflexões


sábado, 13 de outubro de 2018

"Elegia 1938" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


 Oil on canvas, 94 x 83 cm, Philadelphia Museum of Art



Elegia 1938 


Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a conceção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.


Carlos Drummond de Andrade,
 in Sentimento do Mundo

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

"Se eu fosse alguém ou mandasse" - Poema de António Botto


Antonio Ermolao Paolett (1834-1912), The bluff, 1912


Se eu fosse alguém ou mandasse


Se eu fosse alguém ou mandasse
Neste mundo de vileza,
Só pensava numa coisa
– Acabar com a pobreza.
Dar à vida outra feição
Mais igual, mais repartida,
Seria o meu grande sonho,
A minha grande alegria,
E a cada boca num beijo
Dar o pão de cada dia.

Quem tem muito poderia
Ter menos um bocadinho
P’ra não haver tanto pobre
A pedir no meu caminho.
Não ouvir o desalento
À noite pelas tabernas,
Nem haver gente com fome
Lutando para viver
Porque eu sou pobre também
E não lhes posso valer.

Acabar com a miséria
Mãe do crime e da loucura
Seria ensinar a ler
Os vermes da sepultura.
Mas, cingido ao fatalismo
De uma luta desigual
O que há de fazer um triste
Que só chegou a indigente?
– Renunciarmos a tudo
No futuro e no presente.

Não ouvir uma criança
Na tristeza de uma queixa
Fazer-nos sentir a morte
E o luto que ela nos deixa;
Podermos dar num sorriso
A expressão da felicidade;
Cada mortal possuir
A sua razão de ser,
– Assim gostava da vida
E gostava de viver.

Antonio Ermolao Paoletti, "Child feeding pigeons in Venice"


"Amigos verdadeiros são os que nos acodem inopinados com valedora mão nas tormentas desfeitas."

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

"Nunca entregues todo o coração" - Poema de William Butler Yeats



Auguste Toulmouche (1829-1890), A Garden Stroll, 1877


Nunca entregues todo o coração



Nunca entregues todo o coração, pois não vale
muito a pena pensar no amor
de mulheres apaixonadas desde que firme
nos pareça, e nunca elas imaginem
quanto vai definhando de beijo em beijo,
pois tudo o que nos seduz mais não é
do que fugaz deleite, doce e sonhador.

Oh, nunca entregues o coração completamente
pois elas, por mais que os suaves lábios o afirmem,
entregaram ao jogo os seus corações.
E quem poderá ainda jogar bem
se estiver surdo, mudo e cego de amor?
Aquele que fez isto sabe o quanto custa
pois entregou todo o coração e perdeu.


William Butler Yeats,
Os Pássaros Brancos e Outros Poemas
Relógio D'Água, 1993
Tradução de Maria de Lourdes Guimarães e Laureano Silveira