domingo, 31 de dezembro de 2017

"Um dia te acharás" - Poema de Geir Nuffer Campos


Abbott Handerson Thayer, The Sisters, 1884



Um dia te acharás


Um dia te acharás 
sem inteirar a casa: 
ouvirás o marido ressonando, 
os filhos dormindo em calma… 
O espelho te acenará, 
te lembrará coisas da mocidade, 
coisas da meninice, 
te mostrará vindas algumas rugas; 
contemplarás o espelho, 
o quarto, a casa; 
perguntarás por ti mesma, 
pelo teu próprio destino 
— e o espelho fará silêncio: 
será o sinal de estares acordando. 


in 'Cantiga de Acordar Mulher'


quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

"Jeito de Escrever" - Poema de Irene Lisboa


Pierre Bonnard, The Letter, c. 1906, oil on canvas, National Gallery of Art



Jeito de Escrever


Não sei que diga. 
E a quem o dizer? 
Não sei que pense. 
Nada jamais soube. 

Nem de mim, nem dos outros. 
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas... 
Seja do que for ou do que fosse. 
Não sei que diga, não sei que pense. 

Oiço os ralos queixosos, arrastados. 
Ralos serão? 
Horas da noite. 
Noite começada ou adiantada, noite. 
Como é bonito escrever! 

Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto - o jeito. 
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo. 
No tempo vago... 
Ele vago e eu sem amparo. 
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das horas. Mortas! 


E por mais não ter que relatar me cerro. 
Expressão antiga, epistolar: me cerro. 
Tão grato é o velho, inopinado e novo. 
Me cerro! 

Assim: uma das mãos no papel, dedos fincados, 
solta a outra, de pena expectante. 
Uma que agarra, a outra que espera... 

Ó ilusão! 
E tudo acabou, acaba. 
Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda? 

Silêncio. 
Nem pássaros já, noite morta. 
Me cerro. 
Ó minha derradeira composição! Do não, do nem, do nada, da ausência e 
solidão. 

Da indiferença. 
Quero eu que o seja! da indiferença ilimitada. 
Noite vasta e contínua, caminha, caminha. 
Alonga-te. 
A ribeira acordou. 


Irene Lisboa, in 'Antologia Poética' 


segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

"Acalanto" - Poema de Ada Ciocci Curado


Artur Loureiro (Porto, 1853 - Gerês, 1932), O repouso da artista, 1882


Acalanto


Vai amado. 
Busca por onde quiseres, 
com quem quiseres, 
como quiseres, 
o prazer. 
Até mesmo, 
aquele prazer que um dia alguém apelidou de amor. 
E, 
se por acaso te cansares 
e, 
do compromisso que um dia nos uniu te lembrares, 
se desejares, 
volta. 
Serei a que conforta. 
Não saberás da dor, 
da saudade, 
das lágrimas sentidas que tua ausência causou. 


In Acalanto, 1991


Artur LoureiroPaisagem


"Quando se gosta da vida, gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como sobreviveu na memória humana."



quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

"Um simples pensamento" - Poema de Eugénio de Andrade


Marianne von Werefkin, Herbst (Schule), 1907



Um simples pensamento


É a música, este romper do escuro. 
Vem de longe, certamente doutros dias, 
doutros lugares. Talvez tenha sido 
a semente de um choupo, o riso 
de uma criança, o pulo de um pardal. 
Qualquer coisa em que ninguém 
sequer reparou, que deixou de ser 
para se tornar melodia. Trazida 
por um vento pequeno, um sopro, 
ou pouco mais, para tua alegria. 
E agora demora-se, este sol materno, 
fica comigo o resto dos dias. 
Como o lume, ao chegar o inverno. 


in "Os sulcos da sede", 2001.


sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

"Incerteza" - Poema de Jacinta Passos


Sir Herbert James Gunn (Scottish, 1893-1964), Sonja in Green, c.1932



Incerteza


Em meu olhar se espelha
a sombra interior de incerteza angustiante.
E em minha alma floresce, como rosa vermelha
dum vermelho gritante,
como o clangor clarim,
esta angústia que vive a vibrar dentro em mim.
É a minha vida um longo e ansioso esperar,
num amor que há de vir.
Amor - prazer que é dor e sofrer que é gozar -
Amor que tudo dá sem nada nos pedir,
e que, às vezes, num rápido segundo,
resume a glória toda e toda a ânsia do mundo.
Mas depois deste amor, o que virá? O tédio
insípido e tristonho,
desenganos sem cura e dores sem remédio.
Com a posse dum bem, o desfolhar dum sonho...
Vale mais, muito mais,
desejar sempre um bem, sem possui-lo jamais.
Oh! não. O coração
não se cansa de amar se sabe querer bem.
- Ter para o erro o perdão,
renunciar a si mesmo e viver para alguém -
E se um motivo qualquer,
imperioso e fatal, o sonho desfizer?
Então eu saberei bendizer, comovida,
o amor que já passou,
deixando uma doçura amarga em minha vida.
Quando o sonho murchar,
a esperança está finda,
mas dentro d'alma, fica uma saudade linda.


In Revista "O Malho" de 1936


terça-feira, 12 de dezembro de 2017

"Canto" - Poema de Irene Lisboa


William Ewart Lockhart (Scottish, 1846-1900), The white cockade, 1899



Canto


... e o vento, 
o vento dos altos a que me dei, 
a ti me trouxe 
a ti me entregou. 
Se em mim já estavas! 
Pela boca, pelos olhos e pelas mãos, 
arreigado e voraz, 
meu invasor enternecido. 

Cinco vidas, nada menos, 
cinco vidas querias ter. 
Cinco vidas... 
Mas uma, apenas, ardente, violenta e dissipada, 
uma só não te bastaria? 
Uma, 
quintuplicada, centuplicada na hora inefável, 
no momento embriagado... 
Uma, para me dares, para eu de ti receber, 
vergada, sucumbida? 
É primavera! saiu-me da boca. 
E tu sorriste. 
Sorriste, creio. 
Primavera e todas as estações… 
Chuva e sol, tempo sem idade. 

Aqueles suaves, langues verdes, tão cariciosos; 
os redondos troncos 
e os musgos fofos; 
os melros agrestes 
e as campainhas roxas daquelas flores da minha infância, 
de que me ensinaste o nome tão doce, tão estranho… 
E as loucas nuvens corredias 
e as pedras hieráticas 
e as veredas amáveis, 
como se os ofereciam! 
Amavam-nos, 
Não o viste? 
No passo certo em que ambos íamos 
tudo, tudo nos prendia 
e nós tudo deixávamos. 
Mas o vento… 
o vento dos altos a que me dei, 
mais do que o resto a ti me trouxe, 
a ti me entregou. 
Como se eu te esperasse 
e te pudesse fugir, 
sôfrego quiseste-me prender. 
Eu presa já estava... 

E assim continuámos. 

Aquela hora não esquece. 
Não pode esquecer, 
nem se repete. 

Mudarás tu ou mudarei eu. 
O mundo acena-te. 
E não se é nada... 
Mas a hora, a hora, a hora tão cobiçada, 
a hora que chegou, 
passando, não passa… 
morrendo, ficou... 
Nos ramos, 
nas heras luzentes, 
na chuvinha suspensa, 
nas voltas do caminho, 
na frescura aspirada, 
na solidão alegríssima e confidente, 
em ti e em mim. 
Ficou. 
Está. 
Mas a ninguém o confesses 
nem disso te convenças. 

Permanece, 
está naquelas flores rosadas, 
quase sem cor, dos lindos arbustos… 
Tornaremos jamais a vê-los sem nos lembrarmos? 
Eles… somos nós passando, 
Tu, silencioso; 
eu, aconchegada. 
Na tua mão quente, 
a minha, presa e enraizada, 
tão segura e tão confiante, 
era uma dádiva. 
Naquele breve momento 
tu a recebias e guardavas. 

Assim, inteira, a mim me guardasses! 

Ou, sequer, a lembrança inconfundível 
do repente doce e acre 
em que me beijaste, 
como se eu fosse uma folha, 
uma baga de árvore 
e tu uma rajada. 
Em que me aspiraste 
ou em que me sorveste... 
Não me ficaria a boca em sangue? 
Deixaste-me, 
deixaste a tua escrava um pouco atemorizada, 
meu senhor. 
Se eu pudesse voar, 
soltar-me dos teus braços, 
iria como um pássaro, receoso e deslumbrado, 
de árvore em árvore, de ramo em ramo, 
sem nada ver, tonto, tonto, 
até que de novo o chamasses. 

Mas a longa, 
a magnânima tarde 
não me concedeu asas... 
Por isso a minha mão dentro da tua, 
sensível e cativa, 
te disse, te repetiu longamente, à saciedade, 
o que bem querias saber 
e até o que sentias. 
Te confessou quanto lhe pediste. 


sábado, 9 de dezembro de 2017

"Nasceu-te um Filho" - Poema de Jorge de Sena


Dieric Bouts, The Virgin and Child, c. 1463



Nasceu-te um Filho


Nasceu-te um filho. Não conhecerás, 
jamais, a extrema solidão da vida. 
Se a não chegaste a conhecer, se a vida 
ta não mostrou - já não conhecerás 

a dor terrível de a saber escondida 
até no puro amor. E esquecerás, 
se alguma vez adivinhaste a paz 
traiçoeira de estar só, a pressentida, 

leve e distante imagem que ilumina 
uma paisagem mais distante ainda. 
Já nenhum astro te será fatal. 

E quando a Sorte julgue que domina, 
ou mesmo a Morte, se a alegria finda 
- ri-te de ambas, que um filho é imortal. 


Jorge de Sena, in 'Visão Perpétua'


Dieric Bouts, The Virgin and Child, c. 1465


"Entre o infinito do céu e o infinito da terra, existe o teu infinito, igualmente desmedido e ilimitado. Mãe, o tempo não é capaz de conter-te." 

Em Teu Ventre


sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

"Natal dos pobres" - Poema de Leonel Neves


Kelly Vivanco, “Half Asleep”, 2009



Natal dos pobres 


Quando a mulher adormeceu
naquela noite de Natal,
o homem foi, pé ante pé,
pôr um sapato (dela, não seu)
com um embrulho de jornal
na lareirinha da chaminé.

Um casal pobre... um ano mau...
Era um pedaço de bacalhau.

Ora alta noite, pela janela,
com fome e frio, entrou um gato
que, no escuro, cheirando aquela
comida boa no sapato,
rasgou o embrulho, comeu, comeu
e, quente e farto, adormeceu.

De manhã cedo, ela acordou,
foi à cozinha e viu o gatinho
adormecido no seu sapato.
Voltando ao quarto, feliz, falou
para o seu homem: — Meu amorzinho,
como soubeste que eu queria um gato?





quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

"Voto de Natal" - Poema de David Mourão Ferreira



George Bellows (1882 –1925), The studio, 1919


Voto de Natal 

 
Acenda-se de novo o Presépio no Mundo!
Acenda-se Jesus nos olhos dos meninos!
Como quem na corrida entrega o testemunho,
passo agora o Natal para as mãos dos meus filhos.

E a corrida que siga, o facho não se apague!
Eu aperto no peito uma rosa de cinza.
Dai-me o brando calor da vossa ingenuidade,
para sentir no peito a rosa reflorida!

Filhos, as vossas mãos! E a solidão estremece,
como a casca do ovo ao latejar-lhe vida...
Mas a noite infinita enfrenta a vida breve:
dentro de mim não sei qual é que se eterniza.

Extinga-se o rumor, dissipem-se os fantasmas!
O calor destas mãos nos meus dedos tão frios?
Acende-se de novo o Presépio nas almas.
Acende-se Jesus nos olhos dos meus filhos. 


 in 'Cancioneiro de Natal'


Dia de Natal 

Poema de António Gedeão, declamado por Luis Gaspar


“Na sociedade consumista de hoje, esta época (de Natal) é, infelizmente, sujeita a um tipo de poluição comercial que ameaça alterar seu verdadeiro espírito, caracterizado pela meditação, pela sobriedade e por uma alegria que não é externa, mas íntima.”
 

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

"A razão de eu me gostar" - Poema de Adalgisa Nery


Retrato Adalgisa Nery, por Candido Portinari, 1937



A razão de eu me gostar


Eu gosto da minha forma no mundo
Porque representa uma fagulha,
Porque mostra um instante doce e perverso
Da ideia, do gesto e da realização
De Deus no Universo.
Eu gosto dos erros que pratico
Porque vejo a pureza colocada na minha essência
Desde o Início
Lutar contra todo o mal que em mim existe
E ser tão maior, que sobre a minha miséria
Ela ainda persiste
Eu gosto de espiar
O meu olho direito
Ver o esquerdo chorar,
De sentir a minha garganta se enrolar de dor
Porque em troca de tanta coisa dolorosa
Ele construiu em mim uma coisa gloriosa,
Que é o amor.


 in A Mulher Ausente, 1946.



domingo, 3 de dezembro de 2017

"Beijo" - Poema de Mia Couto


Ismael Nery, Namorados, 1927, óleo sobre tela - 58.5 x 58.5 cm 



Beijo


Não quero o primeiro beijo:
basta-me
o instante antes do beijo.

Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.

O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.

Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.


Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”. 
Lisboa: Editorial Caminho, 2011.


sábado, 2 de dezembro de 2017

"O mar jaz; gemem em segredo os ventos" - Poema de Ricardo Reis





O mar jaz; gemem em segredo os ventos 


O mar jaz; gemem em segredo os ventos
Em Éolo cativos;
Só com as pontas do tridente as vastas
Águas franze Neptuno;
E a praia é alva e cheia de pequenos
Brilhos sob o sol claro.
Inutilmente parecemos grandes.
Nada, no alheio mundo,
Nossa vista grandeza reconhece
Ou com razão nos serve.
Se aqui de um manso mar meu fundo indício
Três ondas o apagam,
Que me fará o mar que na atra praia
Ecoa de Saturno?


6-10-1914

Odes de Ricardo Reis,
Heterónimo de Fernando Pessoa


quinta-feira, 30 de novembro de 2017

"De amarelo" - Poema de Deborah Brennand


Sir Herbert James Gunn, Pauline in the Yellow Dress, 1944, oil on canvas



De amarelo


Hoje devo me vestir de amarelo:
espantar os olhos negros da solidão,
tal a luz do girassol de ouro dourado
que abre pétalas iluminando nuvens.

Quem saberá (nem ela mesma) o artifício
usado para enganá-la? Sonhos? Jardins?
Não digo. Hoje me visto de amarelo
e vou, nos ramos, entoar da ave o canto.

Quero espantar olhos de solidão
que vem das grutas e abandona montes
para comer a relva rubra do meu coração.
Mas hoje, de amarelo, espantarei a fera

Fugindo, à procura de outra vítima:
Quem sabe, a mata?


em "Poesia reunida", 2007


segunda-feira, 27 de novembro de 2017

"A Ponte de Ferro" - Poema de Yves Bonnefoy


Willem Koekkoek (1839 – 1885), A Morning Walk by a Dutch Canal


A Ponte de Ferro


Existe ainda por certo ao fim de uma longa rua 
Onde andava eu criança um pântano estagnado 
Retângulo pesado de morte ao céu negro. 

Desde então a poesia 
Separou de outras águas suas águas, 
Beleza alguma, ou cor a vão reter, 
Por ferro ela angustia-se e por noite. 

Nutre um longo 
Pesar de margem morta, uma ponte de ferro 
Lançada à outra margem mais noturna ainda 
É sua só memória e só real amor. 


Tradução de Mário Laranjeira


Willem KoekkoekDutch street scene by a canal 
 
 
"A verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente."
 


domingo, 26 de novembro de 2017

"Prognóstico" - Poema de Ada Ciocci Curado




Prognóstico 


Poeta, 
creia, 
nem tudo está perdido, 
porque, 
felizmente, 
sobretudo o mais, 
o seu ideal, 
a muitos outros ainda comove, 
demove 
predomina.


In 'Acalanto'


August Macke
(Suor Angelica - 'Senza mamma',  de Giacomo Puccini, na voz de Maria Callas)


"É através dos outros que nos tornamos nós mesmos."


"A construção do corpo" - Poema de António Ramos Rosa

George Bellows (American, 1882-1925), Nude girl with a parrot, 1915



A construção do corpo


Sempre a tentativa nunca vã...
O equilíbrio musical dos instrumentos,
a paciência do teu pulso suave e certo,
o teu rosto mais largo e a calma força
que sobe e que modelas palmo a palmo,
rio que ascende como um tronco em plena sala.
A tua casa habita entre o silêncio e o dia,
Entre a calma e a luz o movimento é livre.

Acordar a leve chama veia a veia,
erguê-la do fundo e solta propagá-la
aos membros e ao ventre, até ao peito e às mãos 
e que a cabeça ascenda, cordial corola plena.
Todo o corpo é uma onda, uma coluna flexível.
Respiras lentamente. A terra inteira é viva.
E sentes o teu sangue harmonioso e livre 
correr ligado à água, ao ar, ao fogo lúcido.

No interior centro cálido abre-se a flor de luz,
rigor suave e óleo, música de músculos, roda
lenta girando das ancas ao busto ondeado
e cada vez mais ampla a onda livre ondula
a todo o corpo uno, num respirar de vela.
Sobre a toalha de água, à luz de um sol real,
dança e respira, respira e dança a vida,
o seu corpo é um barco que o próprio mar modela. 


in “A construção do corpo”, 1969


sábado, 25 de novembro de 2017

"Secretamente" - Poema de Virgínia Schall


Jean-Baptiste Greuze (French, 1725 –1805), The White Hat, 1780


Secretamente 


Seus olhos estão perigosamente dentro
de mim
aqui fizeram morada
e estão como Deus
em toda parte
se interpondo
entre a paisagem mais próxima
entre a fresta de luz e a imagem
tangenciando meu olhar
que não sabe olhar puro
que se trai a cada segundo.

Seus olhos estão perigosamente pousados
sobre mim
como borboleta em flor
cobrindo minha pele em ternura
suaves como seda
a farfalhar sobre os poros
e os pelos.
Luzes que incendeiam
em sublime música
meu corpo aceso em sede
Sombras sobre minha noite
embalam meu sono
devassando meus sonhos
onde secretamente me assombram
estando fora e sendo dentro
espelhos de amor intenso
e imenso.

Nossos olhos estão perigosamente
em comunhão
a despeito da separação
que a vida nos impõe.
E nossas vidas
sob risco
entre sermos felizes
ou tristes
e nossos destinos
por um triz
entre sucessos
e desatinos.
Secretamente
espreitamos-nos
como caminhos
à beira
de atraentes abismos.




Jean-Baptiste Greuze, Young girl leaning on the neck of a horse


"A necessidade de procurar a verdadeira felicidade é o fundamento da nossa liberdade."

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

"Definição do Amor" - Soneto de Lope de Vega


Federico Andreotti (1847 – 1930), An Afternoon Tea


Definição do Amor 


Desmaiar-se, atrever-se, estar furioso,
áspero, terno, liberal, esquivo,
alentado, mortal, defunto, vivo,
leal, traidor, covarde e valoroso;

não ver, fora do bem, centro e repouso,
mostrar-se alegre, triste, humilde, altivo,
enfadado, valente, fugitivo,
satisfeito, ofendido, receoso;

furtar o rosto ao claro desengano,
beber veneno qual licor suave,
esquecer o proveito, amar o dano;

acreditar que o céu no inferno cabe,
doar sua vida e alma a um desengano,
isto é amor; quem o provou bem sabe.


(1562-1635)


Federico AndreottiYoung Couple 
(also known as Young Couple in a Magnificent Rococo Interior) 
 
 
"O amor é cego, por isso os namorados nunca veem as tolices que praticam." 
 
(William Shakespeare)

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

"Ah! Os Relógios" - Poema de Mário Quintana


David Burliuk, The time, 1910


Ah! Os Relógios


Amigos, não consultem os relógios 
quando um dia eu me for de vossas vidas 
em seus fúteis problemas tão perdidas 
que até parecem mais uns necrológios... 

Porque o tempo é uma invenção da morte: 
não o conhece a vida - a verdadeira - 
em que basta um momento de poesia 
para nos dar a eternidade inteira. 

Inteira, sim, porque essa vida eterna 
somente por si mesma é dividida: 
não cabe, a cada qual, uma porção. 

E os anjos entreolham-se espantados 
quando alguém - ao voltar a si da vida - 
acaso lhes indaga que horas são... 


Mário Quintana, 
in 'A Cor do Invisível' 


domingo, 12 de novembro de 2017

"Colhe o dia, porque és ele" - Poema de Ricardo Reis


Emil Nolde (1867-1956), Summer Afternoon, 1903



Colhe o dia, porque és ele


Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Porque tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.


28-8-1933

Odes de Ricardo Reis
Heterónimo de Fernando Pessoa


Emil Nolde, Sommerwolken (Summer clouds), 1913, óleo sobre lienzo, 73 x 88 cm, 
Museo Thyssen-Bornemisza, Madrid


"Para vermos o azul, olhamos para o céu. A Terra é azul para quem a olha do céu. Azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul." - Clarice Lispector

sábado, 11 de novembro de 2017

"A Dança e a Alma" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Hans Thoma, Eight dancing women with bird bodies, 1886 



A Dança e a Alma


A dança? Não é movimento,
súbito gesto musical.
É concentração, num momento,
da humana graça natural.

No solo não, no éter pairamos,
nele amaríamos ficar.
A dança – não vento nos ramos:
seiva, força, perene estar.

Um estar entre céu e chão,
novo domínio conquistado,
onde busque nossa paixão
libertar-se por todo lado…

Onde a alma possa descrever
suas mais divinas parábolas
sem fugir à forma do ser,
por sobre o mistério das fábulas. 




quarta-feira, 1 de novembro de 2017

"Esta dor que me faz bem" - Poema de Fernanda de Castro


William J. Whittemore (American, 1860-1955), Portrait of a Woman in Pearls.



Esta dor que me faz bem


As coisas falam comigo 
uma linguagem secreta 
que é minha, de mais ninguém. 
Quem sente este cheiro antigo, 
o cheiro da mala preta, 
que era tua, minha mãe? 

Este cheiro de além-vida 
e de indizível tristeza, 
do tempo morto, esquecido... 
Tão desbotada e puída 
aquela fita escocesa 
que enfeitava o teu vestido. 

Fala comigo e conversa, 
na linguagem que eu entendo, 
a tua velha gaveta, 
a vida nela dispersa 
chega à cama onde me estendo 
num perfume de violeta. 

Vejo as tuas jóias falsas 
que usavas todos os dias, 
do princípio ao fim do ano, 
e ainda oiço as tuas valsas, 
minha mãe, e as melodias 
que cantavas ao piano. 

Vejo brancos, decotados, 
os teus sapatos de baile, 
um broche em forma de lira, 
saia aos folhos engomados 
e sobre o vestido um xaile, 
um xaile de Caxemira. 

Quantas voltas deu na vida 
este álbum de retratos, 
de veludo cor de tília? 
Gente outrora conhecida, 
quem lhe deu tantos maus tratos? 
Serão todos da família? 

Ai, vou fechar na gaveta 
a lembrança dolorosa 
dos teus laços de cetim, 
dos teus ramos de violeta, 
do leque de seda rosa 
com varetas de marfim. 

As coisas falam comigo 
numa linguagem secreta, 
que é minha, de mais ninguém. 
Quero esquecer, não consigo. 
Vou guardar na mala preta 
esta dor que me faz bem. 


 in "E Eu, Saudosa, Saudosa"