segunda-feira, 25 de setembro de 2023

"Ontem à noite" - Texto de Marguerite Duras



Thomas Edwin Mostyn (English painter, 1864–1930)



 Ontem à noite


Ontem à noite, depois da tua partida definitiva, fui para aquela sala do rés-do-chão que dá para o parque, fui para ali onde fico sempre no mês trágico de Junho, esse mês que inaugura o inverno.
Tinha varrido a casa, tinha limpo tudo como se fosse antes do meu funeral. Estava tudo  depurado de vida, isento, vazio de sinais, e depois disse para comigo: vou começar a escrever para me curar da mentira de um amor que acaba.
Tinha lavado as minhas coisas, quatro coisas, estava tudo limpo, o meu corpo, o meu cabelo, a minha roupa, e também aquilo que encerrava o todo, o corpo e a roupa, estes quartos, esta casa, este parque.
E depois comecei a escrever...


Marguerite Duras (1914-1996), in "Textos Secretos", 
 Quetzal Editores, 1999. Tradução de Tereza Coelho
 
[Textos Secretos reúne dois curtos livros de Marguerite Duras, O Homem Atlântico e A Doença da Morte, considerados por muitos como dos mais importantes da sua obra. Textos curtos, densos, onde perpassa, com a evidência de uma revelação, a certeza de que o amor absoluto é ao mesmo tempo necessário e impossível...]
 

 Thomas Edwin Mostyn, An enchanted evening, Venice

“Muito cedo foi tarde demais em minha vida. Aos dezoito anos já era tarde demais. Entre os dezoito e os vinte e cinco anos, meu rosto tomou um rumo imprevisto. Aos dezoito envelheci. Não sei se isso acontece com todo mundo, nunca perguntei. Acho que falaram dessa arremetida do tempo que às vezes nos atinge quando atravessamos as idades mais jovens, as mais celebradas da vida. Esse envelhecimento foi brutal. Eu o vi ganhar meus traços, um a um, mudar a relação que existia entre eles, aumentar os olhos, entristecer o olhar, marcar mais a boca, imprimir profundas gretas na testa. Ao invés de me assustar, acompanhei a evolução desse envelhecimento do meu rosto com o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura. Sabia também que não me enganava, um dia ele diminuiria o ritmo e retomaria seu curso normal”.


Marguerite Duras
, Terceiro parágrafo de "O Amante", 1984

 
Thomas Edwin Mostyn, A Magical Morning
 
 
"A solidão não se encontra. Nós é que a fazemos."
 
 Marguerite Duras, in "Escrever", 1993
 
[Escrever, de Marguerite Duras, foi publicado em setembro de 1993, apenas dois anos e meio antes de sua morte aos 82 anos. Este livro, cujo cerne é o gesto da escrita e os horizontes de sua linguagem, pode ser considerado, portanto, um dos testamentos literários da autora. O livro é composto de 5 ensaios independentes: “Escrever”, que dá título ao livro, é o primeiro deles e também o mais marcante, pois Duras entrega confidências sobre seu trabalho e seus amores, sobre a infância e, sobretudo, sobre a solidão e as angústias que permeiam a criação literária: “Escrever. Não posso. Ninguém pode. É preciso dizer: não podemos. E escrevemos.” Os outros ensaios são: “A morte do jovem aviador inglês”, “Roma”, “O número puro” e “A exposição da pintura”. O conjunto, que parece trazer elementos díspares, oferece, ao contrário, as várias facetas de um mesmo diamante. A edição brasileira conta com tradução de Luciene Guimarães de Oliveira e prefácio de Julie Beaulieu, especialista na obra da autora e membro da Société Internationale de Marguerite Duras – França. (daqui)]


Marguerite Duras, 1974 (Photo by Jacques Haillot) (daqui)
 
Marguerite Duras foi uma escritora, argumentista e cineasta francesa nascida a 4 de abril de 1914, na Indochina, atual Vietname, com o nome de Marguerite Donnadieu, e falecida a 3 de novembro de 1996, em Paris.
Passou a infância na Indochina e aos 17 anos mudou-se para França, onde estudou Direito e Ciências Políticas na Universidade da Sorbonne, em Paris. Licenciou-se em 1935. Entretanto, adotou o nome Duras, inspirada numa localidade perto de onde o pai, que faleceu quando ela tinha quatro anos, tinha propriedades.
Mal se licenciou, foi trabalhar no secretariado do Ministério das Colónias, onde esteve até 1941. Nesta altura, já tinha eclodido a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e Duras integrou a Resistência francesa, assim como se filiou no Partido Comunista.
Em 1942, lançou o seu primeiro romance, Les Impudents.
Após o final da guerra trabalhou como jornalista na revista Observateur e continuou a escrever, tendo alcançado o reconhecimento da sua obra com três romances lançados entre 1950 e 1955: Une Barrage Contre le Pacifique (Uma Barragem Contra O Pacífico), Le Marin de Gibraltar (O Marinheiro de Gibraltar) e Le Square (O Jardim).
Em 1958, lançou Moderato Cantabile, no qual abandonou os temas mais tradicionais por assuntos como o desejo sexual, o amor, a morte e a memória.
Em 1959, escreveu o argumento do filme Hiroshima Mon Amour (Hiroshima Meu Amor), realizado por Alain Resnais, e viria a ser nomeada para um Óscar da Academia de Hollywood.
A paixão pelo cinema na carreira de Marguerite Duras ficou mais patente na década de 70, altura em que escreveu e realizou diversos filmes, como Camion, com Gerard Depardieu.
Em 1984, regressou às grandes obras literárias com L'Amant (O Amante), romance semi-autobiográfico sobre a sua juventude na Indochina. O livro ganhou o mais prestigiado galardão literário francês, o Prémio Goncourt. Oito anos mais tarde, foi realizado pelo francês Jean-Jacques Annaud, um filme baseado no romance.
Em 1985, lançou uma coletânea de contos, La Douleur (A Dor), inspirada na situação que viveu no pós-guerra, quando teve de tratar do marido que sobreviveu aos campos de concentração nazis. Quando ele recuperou, separou-se dele para casar com outro homem, como já planeara antes.
Entretanto, desde 1980, Duras mantinha uma relação conturbada com Yann Andréa Steiner, 38 anos mais novo que ela e obcecado pelos seus livros. Andréa Steiner escreveu dois livros sobre o período em que viveu com Duras, quando a criatividade dela já estava ofuscada por problemas alcoólicos.
Apesar de tudo, o casal viveu junto até à morte da escritora, em 1996, em Paris. (daqui)

domingo, 24 de setembro de 2023

"Eu, eu mesmo" - Poema de Álvaro de Campos


Sir William Blake Richmond (British painter, sculptor and a designer of stained glass and
mosaic, 1842-1921), Sir Arthur Evans among the Ruins of the Palace of Knossos, 1907,
Ashmolean Museum, Oxford.



Eu, eu mesmo


Eu, eu mesmo...
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar.—
Eu...
Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças...
Que crianças não sei...
Eu...
Imperfeito? Incógnito? Divino?
Não sei...
Eu...
Tive um passado? Sem dúvida...
Tenho um presente? Sem dúvida...
Terei um futuro? Sem dúvida...
A vida que pare de aqui a pouco...
Mas eu, eu...
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu... 

4-1-1935 
 
in Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa.
Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 76.


sábado, 23 de setembro de 2023

"Eu" - Poema de Fernando Pessoa


 
Sir William Oliphant Hutchison (Scottish painter, 1889 –1970), 
Portrait of Sir Herbert James Gunn, 1911.
 


EU


Sou louco e tenho por memória
Uma longínqua e infiel lembrança
De qualquer dita transitória
Que sonhei ter quando criança.

Depois, malograda trajetória
Do meu destino sem esperança,
Perdi, na névoa da noite inglória
O saber e o ousar da aliança.

Só guardo como um anel pobre
Que a todo o herdado só faz rico
Um frio perdido que me cobre

Como um céu dossel de mendigo,
Na curva inútil em que fico
Da estrada certa que não sigo.


24-9-1923

Fernando Pessoa, Poesias Inéditas (1919-1930).
(Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.)
Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990): 53 


 
 (Scottish painter, 1893–1964), 1927.


"Viver é como amar: a maré está contra, e todos os instintos a favor". 
 
 "To live is like to love - all reason is against it, and all healthy instinct for it." 

Samuel Butler,

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

"Tristeza" - Poema de Teixeira de Pascoaes

 
Enrique Casanova (Pintor aguarelista espanhol, 1853- 1927), Cascais, 1909


Tristeza 


O sol do outono, as folhas a cair,
A minha voz baixinho soluçando,
Os meus olhos, em lágrimas, beijando
A terra, e o meu espírito a sorrir…

Eis como a minha vida vai passando
Em frente ao seu Fantasma… E fico a ouvir
Silêncios da minh’alma e o ressurgir
De mortos que me foram sepultando…

E fico mudo, extático, parado
E quase sem sentidos, mergulhando
Na minha viva e funda intimidade…

Só a longínqua estrela em mim atua…
Sou rocha harmoniosa à luz da lua,
Petrificada esfinge de saudade… 


Teixeira de Pascoaes
, in 'Elegias'
 

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

"Confiança" - Poema de Miguel Torga


Mota Urgeiro (Pintor português, n. 1946), Vindimas no Douro, s.d.



Confiança


O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura
Que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova.


Miguel Torga, in Antologia Poética
 

Mota Urgeiro, Carregador de cestos no Douro - Vindimas, s.d
 


Alto Douro Vinhateiro - Região Demarcada do Douro
 
Subunidade de paisagem predominantemente humanizada descontínua. O Alto Douro Vinhateiro constitui a paisagem mais representativa e melhor conservada da Região Demarcada do Douro, a região vitícola demarcada mais antiga e regulamentada do mundo. A originalidade do estabelecimento dessa zona demarcada residia no facto de incluir a elaboração de um cadastro e de uma classificação das parcelas e respetivos vinhos, e a criação de mecanismos institucionais de controle e certificação do produto, apoiados em base legal. 
Entre as regiões de viticultura de montanha, o Alto Douro é a que possui maior escala, maior significado histórico, maior continuidade e maior variedade biológica das castas aí aperfeiçoadas. Dentro das regiões vitícolas históricas de montanha e de encosta europeias, o Alto Douro constitui a mancha mais significativa deste tipo de implantação. 
O Alto Douro é um excecional exemplo de uma paisagem humanizada, testemunho da ousadia e engenhosidade do homem, que num esforço sobre-humano, só justificável pela obtenção de um produto de elevada qualidade e elevado retorno económico como o Vinho do Porto, criou e desenvolveu técnicas de valorização do meio adverso, ao longo dos séculos, que permitiram o cultivo da vinha. É pois uma paisagem evolutiva, que concilia diferentes modos de organização e armação da vinha e de diferentes épocas. A construção de socalcos para a sua cultura, o elemento mais monumental da paisagem, de geometria variável, consoante a inclinação da encosta, às técnicas e época de terraceamento, com novas formas de armação de vinha, esculpiram uma paisagem de arquitetura complexa, de mosaicos caprichosamente dispostos e carácter cénico, acentuado pelos altos muros verticais ou perpendiculares aos socalcos que delimitam as quintas, bordejados por oliveiras e amendoeiras. Com esta paisagem vitícola esmagadora e inebriante, contrasta a modéstia e singeleza da património construído nos povoados, de ocupação concentrada, bem como a arquitetura sóbria das casas solarengas e quintas, cuja organização do núcleo construído ficou dependente dos aspetos funcionais da cultura da vinha. 
Paisagem cultural evolutiva viva resultante da interação do homem e da natureza, centrada na vitivinicultura, de alta qualidade, desenvolvida multissecularmente em condições ambientais difíceis, de que resultou um vinho mundialmente conhecido como "Porto" e "Douro". 
Constitui uma paisagem construída ao longo dos séculos segundo soluções ambientalmente otimizadas do ponto de vista de aproveitamento dos escassos recursos da água e solo, e do elevado declive do terreno, com culturas mediterrânicas adaptadas a essas condições formando mosaicos: a vinha, plantada predominantemente em socalcos construídos sobre extensos muros de xisto, que ajudavam a evitar a erosão, criando anfiteatros ao longo das encostas; a oliveira e a amendoeira, plantadas sobretudo como elementos separadores; as hortas e pomares nas terras mais férteis, junto às linhas de água; e os matos nas zonas mais altas. 
A paisagem é pontuada de branco pelos povoados, de ocupação concentrada, casas em banda junto ao caminho, adaptadas ao desnível do terreno, e muito sóbrias. Nas quintas, as casas do proprietário, erguidas no local mais destacado da paisagem, são de grande sobriedade, traça elementar, com decoração das fachadas conseguida essencialmente pelo contraste dos diferentes materiais e do ritmo dos vãos. Possuem capela adossada ou isolada, de carácter semipúblico, pequeno jardim fronteiro, normalmente de buxos, e os vários edifícios ligados à cultura da vinha, interligados de modo funcional e aproveitando o declive do terreno. (daqui)
 
 
 
 Mota Urgeiro, "Vindimas no Douro", s.d.
 

terça-feira, 12 de setembro de 2023

"Sonho Oriental" - Poema de Antero de Quental


Horace Vernet (French painter of battles, portraits, and Orientalist subjects,
1789 – 1863), Self-Portrait with Pipe, 1835.




Sonho Oriental

 
Sonho-me às vezes rei, n'alguma ilha,
Muito longe, nos mares do Oriente,
Onde a noite é balsâmica e fulgente
E a lua cheia sobre as águas brilha...

O aroma da magnólia e da baunilha
Paira no ar diáfano e dormente...
Lambe a orla dos bosques, vagamente,
O mar com finas ondas de escumilha...

E enquanto eu na varanda de marfim
Me encosto, absorto num cismar sem fim,
Tu, meu amor, divagas ao luar,

Do profundo jardim pelas clareiras,
Ou descansas debaixo das palmeiras,
Tendo aos pés um leão familiar.


Antero de Quental, Sonetos

domingo, 10 de setembro de 2023

"As Fontes" - Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen


Nina Ahlstedt (Finnish painter, 1853–1907), Grinden (The Gate), 1886.

 
As Fontes


Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.


 in "Poesia", 1.ª ed., 1944
 


[POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição da Autora • 2.ª ed., 1959, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., Poesia I, 1975, Lisboa, Edições Ática • 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho • 6.ª ed., 2007, Lisboa, Editorial Caminho • 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Pedro Eiras.] (daqui)

 
Nina Ahlstedt, Lady in a Pink Dress, 1887.


"Se não morre aquele que escreve um livro e planta uma árvore, com mais razão não morre o educador que semeia vida e escreve na alma."
 
 
 
Nina Ahlstedt, Roadside, 1888.
 

"Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver."
 
"Alle Künste tragen bei zur größten aller Künste, der Lebenskunst."
 
  Bertolt Brecht, Schriften zum Theater, página 173, Suhrkamp, 1957.

sábado, 9 de setembro de 2023

"Obsessão do Mar Oceano" - Poema de Mário Quintana



Jurrien Marinus Beek or Juriaen Marinus Van Beek (Dutch, 1879-1965),
Vista do Funchal, Ilha da Madeira, s.d.
 


Obsessão do Mar Oceano


Vou andando feliz pelas ruas sem nome…
Que vento bom sopra do Mar Oceano!
Meu amor eu nem sei como se chama,
Nem sei se é muito longe o Mar Oceano…
Mas há vasos cobertos de conchinhas
Sobre as mesas… e moças nas janelas
Com brincos e pulseiras de coral…
Búzios calçando portas… caravelas
Sonhando imóveis sobre velhos pianos…
Nisto,
Na vitrina do bric o teu sorriso, Antínous,
E eu me lembrei do pobre imperador Adriano,
De su’alma perdida e vaga na neblina…
Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano!
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios de beleza única
De estarem inconclusos…
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas…
Mas nos encontramos sobre o Mar Oceano,
Quando eu também já não tiver mais nome.


Mário Quintana
, em "O Aprendiz de Feiticeiro",
Editora Nova Fronteira, Porto Alegre, 1950.
 

terça-feira, 5 de setembro de 2023

"Escolha" - Poema de Lya Luft



Frédéric Dufaux
(Swiss painter, 1852-1943), Elégante à l'ombrelle en bord de lac, 1900.



Escolha


Apesar do medo
escolho a ousadia.
Ao conforto das algemas, prefiro
a dura liberdade.
Voo com meu par de asas tortas,
sem o tédio da comprovação.

Opto pela loucura, com um grão
de realidade:
meu ímpeto explode o ponto,
arqueia a linha, traça contornos
para os romper.

Desculpem, mas devo dizer:
eu quero o delírio. 


Lya Luft
, em "Para não dizer adeus", 2005.
 

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

"As Mães?" - Poema de José Agostinho Baptista


 
Victor Westerholm (Finnish landscape painter, 1860-1919), Drying Laundry in the Sun, 1900s 



As Mães?


Fossem estes dias uma fonte que
brotasse.
Manchas de azul, um rasto de neve em pleno céu,
colmeias,
mel, uma exaltação de asas.

Mas é assim:
metais que revestem a pele e as armaduras,
bronze, ferro, formas que perduram, malhas, ameaçados
tecidos que nos moldam —
quem borda ainda,
quem se atreve à minúcia das rendas?

As mães?
elas vinham cedo, eram como um rumor de levadas,
atravessando as terras.
Eram as mesmas mãos trabalhando sedas, afagos e
uma conspiração de cores e agulhas frias,
mães de silêncio bordando a treva e o sono, a longa
noite dos filhos.

Herdei uma beleza amarga,
o temor das sombras, dos relâmpagos que embatiam
na infância,
no dorso das colinas,
no coração mais triste.

Um estrondo de muralhas, diques, batalhas que
deflagram,
uma ciência aterradora:
não quero outra véspera de espadas, a coroação do
sangue,
patíbulos onde a cabeça se expande,
rolando como a poeira e os astros,
repercutindo como um sino no choro das mães.

Não quero um bordado de horas antigas,
uma prece no tear das suas mãos —
eu sei como se fundem as teias,
as lágrimas de quando se morre —

eu sei que chove.


José Agostinho Baptista
in 'Antologia Poética'
 

domingo, 3 de setembro de 2023

"A agonia do castanheiro"- Poema de Guerra Junqueiro


Robert Bevan (British painter, draughtsman and lithographer, 1865–1925),
'The Chestnut Tree', 1916, Ashmolean Museum (Oxford, United Kingdom).


A agonia do castanheiro
(Fragmento)


Ao bisavô gigante
Ao grande castanheiro ancestral da floresta,
Vai chegar, vai chegar, o derradeiro instante!
Três séculos viveu, e um minuto lhe resta
De agonia!
O tronco inanimado e os braços cadavéricos
Já não sabem se é noite ou se alvorece o dia!..
Já não vêem da luz os êxtases quiméricos.
Já não ouvem do Imenso a vaga sinfonia!
É cega, é surda, é muda a árvore que outrora
Quis, titânica, erguer-se aos astros imortais
Já desfeita, a raiz profunda, não devora,
Já o oiro vibrante e elétrico da aurora
Não lhe acorda a nudez dos braços espectrais!
Mas da velha raiz, defunta e carcomida,
No extremo nódulo da vida,
Uma célula existe, a última e a primeira,
Onde a alma, a tremer d'assombro, espavorida,
Anseia no estertor da crise derradeira.
É o átomo divino, a misteriosa essência,
Donde o corpo brotou com atlético ardor,
E, que extinta essa forma, essa breve aparência,
Volve ao abismo da existência,
Eternamente criador.
Oh instante supremo!... oh angústia! ... oh tortura!...
Oh vertigens de sonho!... oh noite! ... oh podridão!
Todo o infinito opaco à volta lhe murmura…
E entre névoas de dor, de terror, de loucura,
Ergue-se do passado a umbrática visão!

Memórias vagas:

Foi semente,
Embrião de monstro, alma latente
Na terra negra a germinar,
E, aspirando num sonho obscuro, vagamente,
Ao infinito, à vida, à luz vermelha, ao ar!...
Oh êxtase do ser!... frémito d'alva!... quando,
A radícula ingénua e débil mergulhando
No húmus tenebroso e surdo e criador,
Abriu à luz, recém-nascida, palpitando,
Duas folhinhas unitrémulas, sem cor!...
Vida!... deslumbramento!
Sonho fluido!... mistério!... esplendor! esplendor!

1894
  
Guerra Junqueiro
(1850-1923), in "Poesias dispersas",
Porto, Livraria Chardron, de Lélo & irmão, L.da, 1920.

 

Robert Bevan, Landscape in the Blackdown Hills, Devon, 1917.
 
 
"Em tudo o que alvorece há um sorriso de esperança."
 
Guerra Junqueiro, in "Poesias dispersas‎" - Página 21
 Publicado por Livraria Chardron, de Lélo & irmão, L.da, 1920
 
 

sábado, 2 de setembro de 2023

"A Infinita" - Poema de Pablo Neruda

 

José Malhoa (Pintor, desenhista e professor português, 1855–1933),
Vindima - Figueiró dos Vinhos, Portugal (Sétimo Mandamento), 1905.



A Infinita

Vês estas mãos? Mediram
a terra, separaram
os minerais e os cereais,
fizeram a paz e a guerra,
derrubaram as distâncias
de todos os mares e rios
e, no entanto,
quando te percorrem
a ti, pequena,
grão de trigo, calhandra,
não conseguem abarcar-te,
fatigam-se ao agarrar
as pombas gémeas
que repousam ou voam no teu peito,
percorrem as distâncias das tuas pernas,
enrolam-se na luz da tua cintura.
Para mim tu és tesouro mais rico
de imensidade do que o mar e seus cachos
e és branca e azul e extensa como
a terra nas vindimas.
Nesse território,
desde os pés à fronte,
andando, andando, andando,
passarei a vida.


Pablo Neruda
,
in "Os Versos do Capitão" (Los versos del capitán).
Tradução de Albano Martins




Pablo Neruda, "Os Versos do Capitão".
Tradução de Albano Martins,
Editora: Campo das Letras.



Os Versos do Capitão

E vou contar-lhes agora a história deste livro, um dos mais controvertidos daqueles que escrevi. Foi durante muito tempo um segredo, durante muito tempo não ostentou o meu nome na capa, como se o renegasse ou o próprio livro não soubesse quem era o pai. Tal como os filhos naturais, filhos do amor natural, «Los versos del capitán» eram, também, um «libro natural». Os poemas que contém foram escritos aqui e ali, ao longo do meu desterro na Europa. Foram publicados anonimamente em Nápoles, em 1952. O amor por Matilde Urrutia, a nostalgia do Chile, as paixões cívicas, recheiam as páginas desse livro, que teve muitas edições sem trazer o nome do autor.

Para a 1ª edição, o pintor Paolo Ricci conseguiu um papel admirável e antigos tipos de imprensa «bodonianos», bem como gravuras extraídas dos vasos de Pompeia. Com fraternal fervor, Paolo elaborou também a lista dos assinantes. Em breve apareceu o belo volume, com tiragem limitada a cinquenta exemplares. Festejámos largamente o acontecimento, com mesa florida, «frutti di mare», vinho transparente como água, filho único das vinhas de Capri. E com a alegria dos amigos que amaram o nosso amor.
Alguns críticos suspicazes atribuíram a motivos políticos a publicação anónima do livro. «O partido opôs-se, o partido não o aprova», disseram. Mas não era verdade. Felizmente, o meu partido não se opõe a nenhuma expressão da beleza.
A única verdade é que não quis, durante muito tempo, que aqueles poemas ferissem Delia, de quem estava a separar-me. Delia del Carril, passageira suavíssima, fio de aço e mel que me atou as mãos nos anos sonoros, foi para mim durante dezoito anos uma companheira exemplar. O livro, de paixão brusca e ardente, atingi-la-ia como uma pedra atirada à sua terna compleição. Foram estas, e não outras, as razões profundas, pessoais e respeitáveis do meu anonimato.
O livro tornou-se depois, ainda sem nome e apelido, num homem, homem natural e valoroso. Abriu caminho na vida e eu tive, por fim, de o reconhecer. Andam agora pelos caminhos, quer dizer, pelas livrarias e as bibliotecas, os «versos do capitão» assinados pelo capitão genuíno.

Pablo Neruda (1904 –1973), in "Confesso que Vivi"

 
Pablo Neruda, "Confesso que Vivi", 2ª Edição,
1976, editora: Publicações Europa-América.

"Confesso que Vivi" é um livro de cariz autobiográfico, escrito ao longo de vários anos pelo autor chileno Pablo Neruda e publicado postumamente no ano de 1974.
Em Portugal, foi publicado pela primeira vez, em abril de 1975, pelas Publicações Europa-América e, no Brasil, foi publicado como "Confesso que Vivi — Memórias", pela Difel — Difusão Editorial em 1978.


Sinopse
 
«Estas memórias ou recordações são intermitentes e por vezes fugidias na memória, porque a vida é precisamente assim. É a intermitência do sono que nos permite aguentar os dias de trabalho. Muitas das minhas recordações desvaneceram-se ao evocá-las, ficaram em pó como um vidro irremediavelmente ferido.
As memórias do memorialista não são as memórias do poeta. Aquele viveu talvez menos, mas fotografou muito mais, recreando-nos com a perfeição dos pormenores. Este entrega-nos uma galeria de fantasmas sacudidos pelo fogo e pela sombra da sua época.
Não vivi, talvez, em mim mesmo; vivi, talvez, a vida dos outros. De quanto nestas páginas deixei escrito se desprenderão sempre — como nos arvoredos de Outono, como no tempo das vindimas — as folhas amarelas que vão morrer e as uvas que reviverão no vinho sagrado.
A minha vida é uma vida feita de todas as vidas - as vidas do poeta.» — Pablo Neruda

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

"Vindima" - Poema de Miguel Torga


Manuel dos Santos Castro (Artista plástico português que se destacou
na pintura
naïf, n. 1945), Vinha na latada, 2008.



Vindima 

 
Mosto, descantes e um rumor de passos
Na terra recalcada dos vinhedos.
Um fermentar de forças e cansaços
Em altas confidências e segredos.

Laivos de sangue nos poentes baços.
Doçura quente em corações azedos.
E, sobretudo, pés, olhos e braços
Alegres como peças de brinquedos.

Fim de parto ou de vida, ninguém sabe
A medida precisa que lhe cabe
No tempo, na alegria e na tristeza.

Rasgam-se os véus do sonho e da desgraça.
Ergue-se em cheio a taça
À própria confusão da natureza. 


Miguel Torga
, in "Libertação", 1944
 
 
Manuel Castro, Vindima, 2008
 
 
Manuel Castro, Transporte das Uvas, 2007
 

Manuel Castro, Vindima na Bairrada, 2006

 
Manuel Castro, Pisar as Uvas, 2004
 
 
«... De aí a nada, arregaçados, os homens iam esmagando os cachos, num movimento onde havia qualquer coisa de coito, de quente e sensual violação. Doirados, negros, roxos, amarelos, azuis, os bagos eram acenos de olhos lascivos numa cama de amor. E como falos gigantescos, as pernas dos pisadores rasgavam mácula e carinhosamente a virgindade túmida e feminina das uvas. A princípio, a pele branca das coxas, lisa e morna, deixava escorrer os salpicos de mosto sem se tingir. Mas com a continuação ia tomando a cor roxa, cada vez mais carregada, do moreto, do sousão,da tinta carvalha, da touriga e do bastardo.
A primeira violação tirava apenas a cada cacho a flor de uma integridade fechada. Era o corte. Depois, os êmbolos iam mais fundo, rasgavam mais, esmagavam com redobrada sensualidade, e o mosto ensanguentava-se e cobria-se de uma espuma leve de volúpia. À tona, a roçá-los como talismãs, passeavam então volumosos e verdadeiros sexos dos pisadores, repousados mas vivos dentro das ceroulas de tomentos…» 
 
 Miguel Torga, Excerto do livro "As vindimas" (daqui)
 
 
 
 "Vindima" de Miguel Torga. 
Editor: Dom Quixote, 2011 
 
 
Sinopse
 
O primeiro romance de Miguel Torga é uma homenagem ao Douro, às suas gentes e às suas paisagens. Um livro para todos os que amam esta extraordinária região. 

«Cingido à realidade humana do momento, romanceei um Doiro atribulado, de classes, injustiças, suor e miséria. E esse Doiro, felizmente, está em vias de mudar. Não tanto como o querem fazer acreditar certas más consciências, mas, enfim, em muitos aspetos, é sensivelmente diferente do que descrevi. Desapareceram os patrões tirânicos, as cardenhas degradantes, os salários de fome. As rogas descem da montanha de camioneta, a alimentação melhorou, o trabalho é menos duro. Também o rio já não tem cachões, afogados em albufeiras de calmaria. E, contudo, julgo sinceramente que não cansarás ingloriamente os olhos na contemplação do painel que pintei.» — Miguel Torga, 1988 (daqui)

 
Manuel Castro, Transporte do Vinho, 2005
 

"Uma das desvantagens do vinho é dar palavras aos pensamentos."

Samuel Johnson
(17091784),
Citado em The Life of Samuel Johnson, LL.DComprehending an Account.
In Two Volumes, Volume 1, - página 250James Boswell - Henry Baldwin, 1791. 
 
 
Manuel Castro, Festa do Vinho, 2009
 
 
"Enquanto está na garrafa, o vinho é meu escravo; fora da garrafa, sou escravo dele." 
 
Juan Luis Vives (14921540),
Citado em "Vinhos‎" - Página 204, de Sérgio de Paula Santos,
T.A. Queiroz, Editor, 1982
 

Manuel Castro, Festa do Vinho, 2009
 

"A penicilina cura os homens, mas é o vinho que os torna felizes."
 
Alexander Fleming
(1881–1955),
Citado em The Frugal Gourmet Cooks with Wine - página 82,
por Jeff Smith, publicado por Morrow, 1986.