quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

"Ode ao Vinho" - Poema de Pablo Neruda



Lubin Baugin
(c. 1610–1663), Le Dessert de gaufrettes (vers 1630-1635)
Musée du Louvre, Paris



Ode ao Vinho 

 
Vinho da cor do dia,
vinho da cor da noite,
vinho com pés de púrpura
ou sangue de topázio,
vinho,
rutilante filho
da terra,
vinho, liso
como uma espada de ouro,
suave
como um antigo veludo,
vinho encaracolado
e suspenso,
amoroso,
marinho,
jamais coubeste numa taça,
numa canção, num homem,
num coro, tens o sentido gregário,
ou pelo menos, comum.
Às vezes
alimentas-te de recordações
mortais,
na tua onda
vamos de tumba em tumba,
canteiro de gelado sepulcro,
e choramos
transitórias lágrimas,
mas
o teu formoso
traje de Primavera
é diferente,
o coração sobe aos ramos,
o vento move o dia,
nada fica
dentro da tua imóvel alma.
O vinho
move a Primavera,
cresce como uma planta de alegria,
os muros desmoronam-se,
os penhascos,
fecham-se os abismos,
nasce o canto.
Ó tu, jarro de vinho no deserto
com a doce amada minha,
disse o velho poeta.
Que o cântaro de vinho
ao peso do amor afogue o seu beijo.

Meu amor, subitamente
a tua nádega
é curva plena
da taça,
o teu peito o cacho,
a luz do álcool a tua cabeleira,
as uvas os teus mamilos,
o teu umbigo o selo puro
estampado no teu ventre de ânfora,
e o teu amor a cascata
de vinho perene,
a claridade que inunda os meus sentidos,
o esplendor terrestre da vida.

Mas tu, vinho da vida, não és
somente amor,
escaldante beijo
ou coração queimado,
és também
amizade dos seres, transparência,
coro de disciplina,
abundância de flores.
Amo, quando se fala
à mesa, da luz de uma garrafa
de inteligente vinho.
Que o bebam,
que recordem em cada
gota de ouro
ou taça de topázio
ou colher de púrpura
que o Outono trabalhou
até encher de vinho as vasilhas
e que o músculo homem aprenda,
no cerimonial do seu negócio,
a recordar a terra e os seus deveres,
a propagar o cântico do fruto.


Pablo Neruda
(Tradução de Luis Pignatelli)
in Odes Elementares, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1977
 

Lubin Baugin, Still-life with Chessboard (The Five Senses), 1630

Lubin Baugin (Pithiviers, c. 1612 - Paris, 1663) foi um pintor barroco francês do século XVII.
Devido ao seu estilo semelhante ao de Guido Reni, os seus contemporâneos deram-lhe o cognome de "o pequeno Guido". A ele se deve, em parte, o surgimento da natureza-morta em França, na primeira metade do século XVII.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

"Dúvida" - Poema de João de Barros


Francesco de Mura (Italian, 1696-1782), Allegory of arts, c. 1747-1750  
 

 
Dúvida 

 
Este - o soneto da Saudade inquieta,
em que, lembrando as horas de paixão,
pergunta à Musa, o sonho do Poeta,
se ela é fiel à sua adoração.

Este - o ritmo de amor em que, discreta
e oculta e desejosa de ilusão,
minh'alma balbucia a dor secreta
de nunca dominar teu coração...

Este - o soneto do viver profundo,
em que a frase mais pobre é todo um mundo
de incerteza, de mágoa e puro amor...

Vai para ti meu coração veemente.
- Mas tu, Amor, se existes, realmente, 
nem mesmo sabes que és o meu Amor!
 

João de Barros
(1881-1960)  
 
 

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

"Todas as Vidas" - Poema de Cora Coralina


Elin Danielson-Gambogi (Finnish painter, 1861-1919), Laundress, 1900, Private collection
 

Todas as Vidas


Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai de santo... 
 
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano. 

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal. 
 
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada. 

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos
Seus vinte netos. 
 
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera das obscuras. 


Cora Coralina
(1889-1985),
em Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais.
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1965. 


domingo, 27 de dezembro de 2020

"Hino de Amor" - Poema de João de Deus

 
Guido Reni, (1575–1642), St. Joseph with Infant Jesus, c. 1620, Hermitage Museum 



Hino de Amor

 
Andava um dia
Em pequenino
Nos arredores
De Nazaré,
Em companhia
De São José,
O bom Jesus,
O Deus Menino.

Eis senão quando
Vê num silvado
Andar piando
Arrepiado
E esvoaçando
Um rouxinol,
Que uma serpente
De olhar de luz
Resplandecente
Como a do Sol,
E penetrante
Como diamante,
Tinha atraído,
Tinha encantado. 

Jesus, doído
Do desgraçado
Do passarinho,
Sai do caminho,
Corre apressado,
Quebra o encanto,
Foge a serpente,
E de repente
O pobrezinho,
Salvo e contente,
Rompe num canto
Tão requebrado,
Ou antes pranto
Tão soluçado,
Tão repassado
De gratidão,
De uma alegria,
Uma expansão,
Uma veemência,
Uma expressão,
Uma cadência,
Que comovia
O coração! 

Jesus caminha
No seu passeio,
E a avezinha
Continuando
No seu gorjeio
Enquanto o via;
De vez em quando
Lá lhe passava
A dianteira
E mal poisava,
Não afrouxava
Nem repetia,
Que redobrava
De melodia!

Assim foi indo
E foi seguindo.
De tal maneira,
Que noite e dia
Numa palmeira,
Que havia perto
Donde morava
Nosso Senhor
Em pequenino
(Era já certo)
Ela lá estava
A pobre ave
Cantando o hino
Terno e suave
Do seu amor
Ao Salvador! 


in 'Antologia Poética'
 
 
Guido Reni, St. Joseph and the Christ Child, c.1640, Museum of Fine Arts, Houston


quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

"Prece do Natal" - Poema de Carlos Queirós Ribeiro

 
Sandro Botticelli,The Virgin and Child, (Madonna of the Book), 1480



Prece do Natal
 
 
Menino Jesus 
De novo nascido, 
Baixai o sentido 
Para a nossa cruz! 
 
Vede que os humanos 
Erros e cuidados 
Nos são tão pesados 
Como há dois mil anos.

A nossa ignorância
É um fardo que arde.
Como se faz tarde
Para a nossa ânsia!

Nós somos da Terra,
Coisa fria e dura.
Olhai a amargura
Que esse olhar encerra.

Colai o ouvido
À alma que sofre;
Abri esse cofre
Do sonho escondido.

Pegai nessa mão
Que treme de medo;
Sondai o segredo
Da minha oração.

Esta pobre gente
Que mal é que fez?
Nós somos, talvez,
Um povo «inocente»…

Menino Jesus
Que andais distraído
Baixai o sentido
Para a nossa cruz!

A mais insofrida
De tantas misérias
– Não termos mais férias
Ao longo da vida –

Trocai por amenas
Manhãs sem cuidados,
Silêncios banhados
De ideias serenas;

Por cantos e flores
Risonhas imagens
Macias paisagens
Felizes amores! 
 in 'Antologia Poética'


 
 
 
Natal

 
Um Deus à nossa medida…
A fé sempre apetecida
De ver nascer um menino
Divino
E habitual.
A transcendência à lareira
A receber da fogueira
Calor sobrenatural. 
 
Aregos, 24 de dezembro de 1953
 
Miguel Torga, in 'Diários'
 
 
 

domingo, 20 de dezembro de 2020

"Natal" (1972) e "Último Natal" (1990) - 2 Poemas de Miguel Torga


Cimabue (Cenni di Pepo, 1240 -1302), Virgin Enthroned with Angels,
 c. 1280, Louvre, Paris 



 Natal

 
Fiel das horas mortas
Desta noite comprida,
Pergunto a cada sombra recolhida
Que sol figura o lume
Que da lareira negra me sorri:
O do calor cristão?
O do calor pagão?
Ou a fogueira é só a combustão
Da lenha que acendi?

Presépios, solstícios, divindades...
A versátil natureza
Do homem, senhor de tudo!
Cria mitos,
Destrói mitos,
Nega os milagres que fez
E depois, desesperado,
Procura o mundo sagrado
Nas cinzas da lucidez.

 São Martinho da Anta, 24 de Dezembro de 1972

Miguel Torga, in 'Diários'



 

Último Natal


Menino Jesus, que nasces
Quando eu morro,
E trazes a paz
Que não levo,
O poema que te devo
Desde que te aninhei
No entendimento,
E nunca te paguei
A contento
Da devoção,
Mal entoado,
Aqui te fica mais uma vez
Aos pés,
Como um tição
Apagado,
Sem calor que os aqueça.
Como ele me desobrigo e desengano:
És divino, e eu sou humano,
Não há poesia em mim que te mereça.

Gaia, 24 de Dezembro de 1990

Miguel Torga, in 'Diários'

O seu 'Diário' (1941-1994), em 16 volumes, mistura poesia, contos, memórias, crítica social e reflexões. No último volume, Miguel Torga (1907-1995) diz: 
"Chego ao fim perplexo, diante do meu próprio enigma. Despeço-me do mundo a contemplar atónito o triste espetáculo de um pobre Adão paradoxal, expulso da inocência sem culpa, sem explicação."
 
 

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

"Ode ao Tempo" - Poema de Pablo Neruda


 
Hans Thoma, A Peaceful Sunday (the artist's mother, and an uncle), 1876, Kunsthalle Hamburg  
 


Ode ao Tempo


A tua idade dentro de ti
crescendo,
a minha idade dentro de mim
andando.
O tempo é resoluto,
não faz soar o sino,
cresce e caminha
por dentro de nós,
aparece
no olhar
e junto às castanhas
queimadas dos teus olhos
um filamento, a pegada
de um minúsculo rio,
uma estrelinha seca
subindo para a tua boca.
Nos teus cabelos
enreda o tempo
os seus fios,
mas no meu coração
como uma madressilva
está a tua fragrância,
incandescente como o fogo.
Envelhecer vivendo
é belo
como tudo o que vivemos.
Cada dia
para nós
foi uma pedra transparente,
cada noite uma rosa negra,
e este sulco no meu ou no teu rosto
é uma pedra ou uma flor,
recordação de um relâmpago.
Gastaram-se-me os olhos na tua formosura
mas tu és os meus olhos.
Sob os meus beijos talvez tenha fatigado
os teus seios,
mas todos viram na minha alegria
o teu resplendor secreto.
Amor, o que importa
é que o tempo,
o mesmo que ergueu como duas chamas
ou espigas paralelas
o meu corpo e a tua doçura,
amanhã os mantenha
ou os desgarre
e com os seus mesmos dedos invisíveis
apague a identidade que nos separa
dando-nos a vitória
de um único ser final sob a terra. 
 
1956
 
Pablo Neruda

(Tradução de Luis Pignatelli),
in Odes Elementares, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1977. 
 
 
Hans Thoma, Summer (Landscape near Karlsruhe),1891
 

 Ode
 
Por ode entende-se toda a composição poética que se relacione com o género lírico e que, cronologicamente, se liga a uma origem na poesia clássica grega.
O seu significado poderá, simplesmente, ser traduzido por "canção", levando a concluir que a ode, de início, seria um poema destinado ao acompanhamento musical, como forma de canto, individual ou em grupo - coro, canto coral. 

Relativamente aos temas que normalmente eram tratados nas odes, poder-se-á dizer que eram os mais variados, embora seja de salientar que eram sempre desenvolvidos através de pensamentos sublimes, entusiasticamente apresentados no seu estilo e linguagem castiça. 

Do grupo de cultores deste género literário de origem grega destaca-se, sobretudo, os nomes de Safo, Alceu, Anacreonte e Píndaro, tendo este último desenvolvido uma estrutura própria nas suas odes que reconhecidamente se distingue por ser aquela que não só mantém vivo o antigo carácter musical do género, como apresenta uma forma que poderá ser considerada o padrão para as bases da literatura europeia. 

Através do poeta romano Horácio chega até nós esta ode de origem grega, embora adaptada e alterada em relação à musicalidade (que com Horácio se torna quase nula) e ao ritmo que com ele apresentava uma flexibilidade e uma fluência que melhor se adaptava ao génio da língua latina. Apreendendo na perfeição os metros deste género grego, Horácio tornou-se, assim, no principal veículo de transmissão do fundo e da forma da ode - tal como hoje se conhece - para as chamadas modernas literaturas nacionais. 

Analisando em profundidade a ode horaciana vê-se que o seu conteúdo se pode distribuir tematicamente pelas chamadas odes em cívicas - que fazem, sobretudo, a exaltação dos cidadãos -, odes pastoris - as que têm como motivo central os encantos da vida rústica -, odes amorosas, báquicas ou anacreônticas - as que cantam as alegrias da existência humana, física -, e as odes privadas - aquelas que versam assuntos de natureza privada, particular e que, normalmente, são dirigidas a amigos ou familiares, onde o poeta desenvolve considerações de ordem variada, nomeadamente filosóficas ou morais. 

O conhecimento e o apreço da ode em Portugal é feito exatamente através da ode de Horácio, de tal forma apreciada que o Renascimento (século XVI) português desde logo manifestou extrema inclinação e gosto pelo cultivo deste género literário. Nomes como Sá de Miranda, António Ferreira e André Falcão de Resende tomaram a Ode horaciana como modelo artístico, imitando-lhe o ritmo, embora, obviamente, atualizando-lhe os temas tratados. 

Mais tarde, também o Neoclassicismo (Século XVIII) prova que aproveita o exemplo e a experiência da ode quinhentista do Renascimento para cantar os seus temas. Daqui se destacam os nomes de Reis Quinta (Lisboa, 1728-1770), Cruz e Silva (Lisboa, 1731 - Rio de janeiro, 1799) e Correia Garção, tendo este último aproveitado ao máximo o exemplo horaciano chegando mesmo a ultrapassá-lo, criando até uma nova categoria: a ode sacra, sempre dedicada a um santo patrono ou, simplesmente, versando motivos religiosos. 

O prestígio e a importância literária da ode é ainda visível entre os poetas modernos, destacando-se os nomes de António Botto e Miguel Torga que, mesmo conhecendo o esquema clássico das odes, dele aproveitam apenas uma parte, recriando-o quase na totalidade, adaptando e refundindo toda a sua estrutura rítmica. Também Antero de Quental, embora num tom, forma, ritmo e conteúdo radicalmente diferentes, em tempos se serviu da ode para dar nome a uma das suas obras poéticas mais conhecidas e estudadas: "Odes Modernas", publicadas em 1865. 

Sejam elas gregas, romanas (de Horácio), portuguesas renascentistas, neoclássicas ou modernas, as odes marcam, sem dúvida, uma forte linha de orientação no panorama literário desde a poesia clássica.(Daqui)
 

domingo, 13 de dezembro de 2020

"Nascença Eterna" - Poema de José Régio


Anton Raphael Mengs (1728-1779), The Adoration of the Shepherds,1770


Nascença Eterna

 
Nascença Eterna,
Nasce mais uma vez!
Refaz a humílima Caverna
Que nunca se desfez.

Distância Transcendente,
Chega-te, uma vez mais,
Tão perto que te aqueças, como a gente,
No bafo dos obscuros animais.

Os que te dizem não,
Os épicos do absurdo,
Que afirmarão, na sua negação,
Senão seu olho cego, ouvido surdo?

Infelizes supremos,
Com seu fracasso alcançam nomeada,
E contentes se atiram aos extremos
Do seu nada.

Na nossa ambiguidade,
Somos piores, nós, talvez,
E uns e outros só vemos a verdade
Que, Verdade de Sempre!, tu nos dês.

Se nada tem sentido sem a fé
No seu sentido, Sol que não te apagas,
Rompe mais uma vez na noite, que não é
Senão o dia de outras plagas.

Perpétua Luz, Contínua Oferta
A nossa escuridade interna,
Abre-te, Porta sempre aberta,
Mais uma vez, na humílima Caverna.
 

 José Régio, em ‘Obra Completa’

sábado, 12 de dezembro de 2020

"Esta Gente" e "Revolução" - Poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen

Albert Bettannier (1851-1932), Les Annexés en Lorraine (ou Le Désespoir), 1883 
 (Musée de la Cour d'Or, Metz - Musée de la guerre de 1870 et de l'Annexion, Gravelotte)
 


Esta Gente 
 
 
Esta gente cujo rosto 
Às vezes luminoso 
E outras vezes tosco 
 
Ora me lembra escravos 
Ora me lembra reis 

Faz renascer meu gosto 
De luta e de combate 
Contra o abutre e a cobra 
O porco e o milhafre 
 
Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome 
 
E em frente desta gente  
Ignorada e pisada 
Como a pedra do chão 
E mais do que a pedra 
Humilhada e calcada 

Meu canto se renova 
E recomeço a busca 
De um país liberto 
De uma vida limpa 
E de um tempo justo  
 
 
in "Geografia", de 1967, incluído em "Obra Poética"
Ed. caminho, Lisboa, 2010


 
Albert Bettannier, Les annexés en Alsace, 1911 (Musée de la Cour d'Or,
 Metz-Musée de la guerre de 1870 et de l'Annexion, Gravelotte)


Revolução 

 
Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar
Interior de um povo

Como página em branco
Onde o poema emerge

Como arquitetura
Do homem que ergue
Sua habitação


Sophia de Mello Breyner Andresen, 
in "O Nome das Coisas" 
 Moraes Editores, Lisboa/1977
 
 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

"Ode à Cebola" - Poema de Pablo Neruda


(Still Life: Drawing Board, Pipe, Onions and Sealing-Wax), 1889, 
 

Ode à Cebola

Cebola,
luminosa redoma,
pétala a pétala
formou-se a tua formosura,
escamas de cristal te acrescentaram
e no segredo da terra sombria
arredondou-se o teu ventre de orvalho.
Sob a terra
deu-se o milagre
e quando apareceu
teu rude caule verde,
e nasceram
as tuas folhas como espadas no horto
a terra acumulou seu poderio
mostrando a tua nua transparência,
e como em Afrodite o mar distante
duplicou a magnólia
levantando-lhe os seios,
a terra
fez-te assim,
cebola,
clara como um planeta,
e destinada
a reluzir,
constelação constante,
redonda rosa de água,
sobre
a mesa
dos pobres.

Generosa
desfazes
teu globo de frescura
na consumação
fervente do cozido,
e o girão de cristal
ao calor inflamado do azeite
transforma-se em ondulada pluma de ouro.

Recordarei também como a tua influência
fecunda o amor da salada
e parece que contribui o céu
dando-te a fina forma do granizo
a celebrar a tua luz picada
sobre os hemisférios de um tomate.
Mas ao alcance
das mãos do povo,
regada com azeite,
polvilhada
com um pouco de sal,
matas a fome
do jornaleiro no duro caminho.
Estrela dos pobres,
fada madrinha
envolta
em delicado
papel, tu sais do solo,
eterna, intacta, pura
como semente de astros,
e ao cortar-te
a faca de cozinha
sobe a única lágrima
sem mágoa.
Fizeste-nos chorar mas sem sofrer.
Tudo o que existe celebrei, cebola,
mas para mim és
mais formosa que um pássaro
de plumas ofuscantes,
és para os meus olhos
globo celeste, taça de platina,
baile imóvel
de anémona nevada

e a fragância da terra inteira vive
na tua natureza cristalina.


Pablo Neruda
(tradução de José Bento),
in Antologia de Pablo Neruda,
editorial Inova, 1973.



Paul Cézanne (1839-1906), Still Life with red Onions, 1896-1898, Paris, Musée d'Orsay


“Comer está na moda!
Com pedra e pau, faca e cimitarra, com fogo e tambor as pessoas avançam para a mesa. Os grandes continentes desnutridos explodem em mil bandeiras, em mil independências. E tudo vai para a mesa: o guerreiro e a guerreira. Sobre a mesa do mundo, com todo mundo à mesa, voarão as pombas.
Busquemos no mundo a mesa feliz.
Busquemos a mesa onde o mundo aprende a comer. Onde aprende a comer, beber, cantar!
A mesa feliz.” (Daqui)

Pablo Neruda (1904-1973)

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

"A uma oliveira" - Poema de António Cabral


Vincent van Gogh,  Olive Trees with yellow sky and sun, 1889


A uma oliveira


Velha oliveira, ó irmã do tempo e do silêncio,
algo de ti se me tornou hoje perceptível;
algo que eu não conhecia e me fez parar
na ténue sombra que teces no caminho;
algo que é uma doce corola de contacto.

Já os passos da luz se afastam na colina
e um rumor de pérolas quebradas
desce, lentamente desce por toda a serrania.
Já as aves tuas amigas procuram na folhagem
a doçura acumulada nos favos da noite.
E também já são horas
de nós os homens, nós os que passamos,
suspendermos as cítaras do pensamento.

Entretanto, ó canção do crepúsculo, velha oliveira,
eu paro sob os longos cílios da tua ramagem.
Paro e, ao sentir nas mãos o teu enrugado tronco,
e, nos olhos, a serenidade das tuas folhas,
começo a entender uma bela mensagem:
a paz, ah a paz!, a rosa da paz.

É como se uma gota de azeite descesse,
Brandamente descesse pelas coisas.


António Cabral,
 
 
 António Cabral  (1931 - 2007)
 
 
António Cabral, poeta e dramaturgo, nascido em 1931, em Castelo do Douro, Alijó, desempenhou funções de docente. Tendo encetado a sua carreira literária no domínio de uma poesia que se ressente da implantação transmontana, a sua produção literária ganhou relevo sobretudo no domínio do teatro com peças que, beneficiando de um esforço de descentralização da atividade dramática, se centram sobre temáticas sociais. (Daqui)

 
Vincent van Gogh, Olive grove, 1889,  Kröller-Müller Museum   


"E com um ramo de oliveira o homem se purifica totalmente."
 
 
 
 

Árvore 

(mitologia)

 
Alimento, habitação, ferramentas, abrigo, pulmão vivo e uma grande beleza são algumas das características das árvores. Simbolizam o cosmos em toda a sua extensão, já que as suas raízes são o nível subterrâneo, o tronco é a terra e os seus ramos simbolizam o céu. São sinónimo de evolução e de regeneração cíclica ao longo das estações, frutificando a terra com as suas sementes.

Têm em si os quatro elementos: a terra junto às raízes, a água na sua seiva, o ar respirado pelas suas folhas e o fogo através da sua madeira. Dado encontrar-se simultaneamente em contacto com a terra e o céu, a árvore é também um símbolo da relação entre estes dois elementos e uma espécie de centro ou eixo do mundo. E isto tanto na tradição judaico-cristã, como nas culturas africanas ou asiáticas. Em certas regiões do Norte da Índia, aquele que abate uma árvore é condenado à morte, porque a vida de uma árvore tem mais valor do que a vida humana.

Certos tipos particulares de árvores são preferidos por certas culturas: é o caso do carvalho entre os celtas, o abeto junto dos gregos, a tília para os germânicos, o freixo pelos nórdicos, a oliveira para os islâmicos e os cristãos, ou o cedro entre os hebreus e os assírios.

As árvores do mundo e as árvores da vida também fazem parte de muitas tradições do Mundo, inclusive do Japão e no Irão. A árvore é importante na simbologia bíblica do paraíso como a árvore da sabedoria e do conhecimento. A árvore da vida está representada na tradição cristã pela árvore do Génesis e a cruz onde Cristo se torna o centro do Mundo. Foi debaixo de uma árvore que Buda alcançou a iluminação e essa árvore representa por vezes o próprio Buda, dizendo-se na Índia que é uma manifestação da trindade: as suas raízes são Brama, o seu tronco Shiva e os seus ramos Vixnu.

Em algumas culturas a árvore é também um símbolo de fertilidade, o que faz com que as mulheres a ela recorram, pintando-a nos seus corpos, como acontece em certas tribos da Ásia, ou então, como é hábito no Mediterrâneo e na Índia, prendendo nas árvores os seus lenços vermelhos.

No Sul da Índia, entre os dravidianos, as mulheres têm o costume de se unir a uma árvore antes de casar com o marido, para garantir a vinda dos filhos. Nesta mesma parte do Mundo, marido e mulher plantam uma árvore fêmea e uma árvore macho, cujas raízes são entrelaçadas para garantir a fecundidade das árvores e do casal que as plantou.

Noutras culturas é o noivo que é amarrado à árvore no dia do seu casamento, simbolizando a força e capacidade de procriação.

A 21 de março, comemora-se o Dia Mundial da Árvore e das Florestas. (Daqui)
 
 
Vincent van Gogh, Couple Walking among Olive Trees in a Mountainous Landscape 
with Crescent Moon, May-1890, Museu de Arte de São Paulo, São Paulo, Brasil 
 
 

Ode ao Azeite


A oliveira
De volume prateado,
Severa e suas linhas,
Em seu torcido coração terrestre:
As graciosas azeitonas
Polidas pelos dedos que fizeram
A pomba e o caracol marinho:
Verdes, inumeráveis,
Puríssimos mamilos da natureza,
E ali nos secos olivais
De onde tão somente o céu azul com cigarras,
E terra dura existem,
Ali o prodígio,
A cápsula perfeita da oliva
Preenchendo com suas constelações as folhagens,
Mais tarde as vasilhas, o milagre,
O Azeite.
 


terça-feira, 1 de dezembro de 2020

"Teoria da incomunicação" - Poema de José Blanc de Portugal


Dora Carrington (English painter and decorative artist, 1893–1932),
Spanish Boy, the Accordion Player, c. 1924

 

Teoria da incomunicação


Incomunicável me levaram de menino
De casa em casa na casa de meus pais
De terra em terra às casas do Destino
Onde entrando não saímos mais.
Incomunicável a letra dos jornais
Notícias que não me falavam
Do que eu tinha de dizer a esses tais
Que tão cedo de mim me apartavam.
Incomunicável sem culpa formada
Mas já réu de ignotas faltas
A vida era-me adiada
Num hospital onde não dão altas.
Incomunicável à proposta de espera
Nunca a pude igualar a sorte
Esta é agora, e os logos a passar
Eram-me o primeiro ver da morte.
Incomunicável o mudar instante
Incomunicável a transformação
Incomunicável perto e distante
Incomunicável vida e coração
Incomunicável o chorar ou rir
Porque comunicar, eu o sabia,
Não é o mesmo que reproduzir.

II

Incomunicável a esperança que em mim puseram
Os que me quiseram como eu não sou nem era.
Incomunicável o meu querer que eles pudessem
Ver o que quisessem no que eu ia, sendo.
Incomunicável o eu querer agradecer
A única coisa que eu sei fazer:
A injustiça por excesso que posso devolver
Descontadas as custas do processo
Mesmo sem o querer.
Incomunicável o meu amor por tudo
Como podem sequer pensar que ele existe?
Eis-me, cristal impuro e mudo,
Incomunicável, inutilmente triste.

III

Incomunicável... Como? E se o não fosse:
Para quê falar comigo ou com alguém
Se a resposta é sempre a demonstrar
Que me falta toda e qualquer razão
Seja o que pretendo mal ou bem?
Fale de fogo, água, terra ou mar,
Todos me dizem que o meu sim é não,
Todos me falam em pedir sem dar,
Todos propõem sem nada aceitar,
Todos pretendem a si igualar
O que por ser alheio a quem nos escuta
Nem sequer se pode misturar...?
Porquê falar?
Para quê esta aparente luta
Em que o desafio é sempre do vencido
E a vitória do protetor
Que julga bem merecido
Tudo que lhe diz seu interlocutor
E nunca sente como própria dor
O que por si não pode ser sentido
E dele faz o justo vencedor
Que nem sequer tenta pesar
Quanto mais comprar o oferecido...?
Para quê falar?
Para quê, ainda, confessar a este papel
O que não é entendido por ninguém?
Para quê, se todo o mal ou bem
É de um só,
De alguém que nada de amável
Tem para ceder do que sentiu
E nem sequer pediu por estar no mundo e vê-lo,
Mas
                sempre
                                                  inadiavelmente
                                                                                                  incomunicável.


José Blanc de Portugal,       
in: Colóquio/Letras. Poesia, n.º 9, Set. 1972, p. 55-57. 
 
 
José Blanc de Portugal (daqui)


José Blanc de Portugal
, poeta e crítico musical, licenciado em Ciências Geológicas pela Universidade de Lisboa, cursou também História da Música e Psicologia. Desempenhou a função de meteorologista do Serviço Meteorológico Nacional, cujos centros dirigiu em Lisboa, Ilha do Sal, Santa Maria dos Açores, Ponta Delgada, Luanda e Moçambique.
Além de obras sobre a sua profissão, publicou trabalhos de crítica musical e traduções de diversos autores: Truman Capote, Gilbert Keith Chesterton, Carlo Coccioli, T. S. Eliot, Cristopher Fry, Jung, Pitágoras, Shakespeare, Fernando Pessoa.
Colaborou em algumas das mais representativas publicações poéticas dos anos 50, nomeadamente, Aventura, Graal, A Serpente, Litoral e Tempo Presente.
Co-dirigiu, em 1940, com Tomás Kim e Ruy Cinatti, Cadernos de Poesia, publicação eclética que, subordinada ao lema "Poesia é só uma", apresentava como objetivo "arquivar a atividade da poesia atual sem dependência de escolas ou grupos literários, estéticas ou doutrinas, fórmulas ou programas; e em cuja segunda série (Lisboa, 1951) subscreve, ao lado de Jorge de Sena, Rui Cinatti e José-Augusto França, uma conceção de poesia que "com todos os seus ingredientes, recursos, apelos aos sentidos, resulta de um compromisso firmado entre um ser humano e o seu tempo, entre uma personalidade e uma sua consciência sensível do mundo, que mutuamente se definem" e de poeta como "homem destinado a nele se definir a humanidade. Um ser capaz de ter todo o passado íntegro no presente e capaz de transformar o presente integralmente em futuro", através de uma "atitude de lucidez, compreensão e independência."
Comendador da Ordem do Infante D. Henrique e distinguido com a medalha Oskar Nobiling da Sociedade Brasileira de Língua e Literatura. (Daqui)


 
 
 
Texto de Eduardo Lourenço

«De todas as palavras que eu disse, nenhuma me surpreendeu tanto. O excesso de espanto tornou-a opaca. Muitos pensaram que eu tinha escolhido as parábolas para me conformar com as vestes do tempo. Escolhi-as para ir sem sombra à praia desnuda da verdade que é filha do tempo mas não tem tempo. Cada verdade é um estilhaçar da eternidade do tempo. Quando me cheguei a ver vivo no meio do mundo, recolhi no meu coração toda a luz do homem. Do meu eterno presente corria para a alvorada dos tempos e também ao encontro dos que ainda não existem numa luz unida, sem começo nem fim. A minha luz, a luz de Deus em mim, eu como luz de Deus, era uma só coisa. Por isso eu existia antes que Abraão existisse. Abraão não tinha ainda descoberto ainda que ele era a luz de Deus. Abraão é da linhagem humana um homem que vem depois de outro, o homem de uma viagem que prossegue sem conduzir o viajante ao lugar onde ele sempre esteve sem o saber. Eu soube que estava antes de Abraão e Jacob, porque só eu soube que um homem não pertence à linhagem humana mas está diretamente ligado à fonte infinita. Também podia ter dito que estava antes do céu e das constelações porque em mim o seu ser se converte em vida e verdade.

A Natureza teve de esperar a minha chegada para ser Natureza. Ela não o é senão num momento em que nos tornámos homens. E isto não aconteceu num certo dia, mas sempre e nunca, porque ninguém sabe ainda o quer isso significa – ser um homem – e por consequência ninguém sabe ainda o que é a Natureza. Da Natureza só podemos ter uma visão negativa. É tudo o que somos quando nos vemos a nós mesmos como seres que não são naturais. Mas quem se atreve a conceber-se fora da Natureza? O que nos é absolutamente natural é contemplarmo-nos como irmãos da lua, do sol, da água, dos rios, das folhas, dos pássaros ou dos tigres, irmãos de leite da natureza que se distraiu um momento e que inventou olhos para se ver viver. […] Eu disse uma vez que nenhum esplendor humano pode igualar o do lírio dos campos. Mas é porque os olhava no espelho de Deus, nos meus próprios olhos. Quem, se não formos nós, pode subtrair a beleza do mundo ao seu apodrecer futuro? Como eu existia antes de Abraão e Jacob, também existia antes dos pássaros, do céu e dos lírios dos campos. Mas nunca teria podido ser quem sou se não houvesse pássaros e lírios dos campos. Eles esperavam-me, eu esperava-os. Juntos tornámo-nos, eu, um homem que associa a sua felicidade à beleza do mundo, dos pássaros e dos lírios dos campos, eles, figuras à espera de um só olhar que os acorde do sono da terra ao qual estão destinados. Ao qual tudo está destinado se eu não morrer por eles para os salvar do nada onde já estavam antes que Deus desenhasse com eles o firmamento do meu coração». 
 
In Público, 20/3/2000, cit. por Maria Manuela Cruzeiro/Maria Manuela Baptista
Tempos de Eduardo Lourenço - Fotobiografia, 2003 Porto, Campo das Letras, pág. 131 
 

Eduardo Lourenço, ensaísta português, nasceu a 23 de maio de 1923, em S. Pedro de Rio Seco, Almeida, e morreu a 1 de dezembro de 2020. Formado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra, onde foi professor entre 1947 e 1953, lecionou depois em várias universidades, como a da Baía, no Brasil, e nas Universidades de Hamburgo, Heidelberg, Montpellier, Grenoble e Nice. Fixando residência em Vence, lecionou, até à sua jubilação, na Universidade de Nice.

Tendo marcado durante cinquenta anos, com especial ressonância no pós-25 de abril, o pensamento português, a voz de Eduardo Lourenço exerce um profundo e consensual fascínio sobre a intelectualidade portuguesa, surpreendendo pela "capacidade de ser portador de um olhar sempre diferente e inquietante sobre os problemas de que se ocupa", espantando pela "pluralidade de interesses, a imensidão de uma cultura que não se entrincheira em redutos de erudição, o jogo ilimitado das referências" (cf. COELHO, Eduardo Prado - "Eduardo Lourenço: Um Rio Luminoso", in A Mecânica dos Fluídos, Lisboa, INCM, 1984, p. 280).

Próximo da geração neorrealista, à qual nunca deixaria de dedicar um sério trabalho de reflexão, voltado quer para a especificidade da sua poética (Sentido e Forma da Poesia Neorrealista, Lisboa, 1968), quer para o estudo dos sobreviventes dessa geração (cf. por exemplo, os vários estudos sobre Vergílio Ferreira, coligidos em O Canto do Signo, Lisboa, Presença, 1994), quer ainda pelas análises de conjunto sobre o fenómeno da afirmação na literatura contemporânea dessa geração que batizou como "geração da utopia" (cf. ibi., ensaios como "A Ficção dos Anos 40"), pelo seu espírito de isenção e de abertura, tornou-se, após a publicação, em 1949, de Heterodoxia I, uma figura incómoda face às duas forças ideológicas em que se dividia o país: o catolicismo conivente com o regime salazarista e o marxismo, ao defender uma noção de heterodoxia que equivale à aceitação da pluralidade de "ortodoxias".

No início dos anos cinquenta, o nome de Eduardo Lourenço surge associado ao projeto Árvore, em cujo número inaugural publicou o ensaio "Esfinge ou a Poesia", onde apresenta uma conceção de poesia como Esfinge diante da qual o poeta procura "danadamente uma autêntica face de homem, uma existência em busca de uma essência", definindo-a como "a resolução que damos à história, aos encontros, às promessas de cada vez que consentimos descer das palavras às dificuldades dos atos. Ou subimos dos atos à corola mágica das palavras com que os arrancamos à certa desolação do tempo e da morte." ("Esfinge ou a Poesia").

Esta função gnósica atribuída à palavra poética determinará a defesa, nos vários estudos críticos e literários publicados ao logo da década de 60, alguns deles na revista O Tempo e o Modo, de que a crítica só faz sentido "esposando simultaneamente a vida e a morte que na sucessão das obras se configura e lendo uma na luz da outra, sem pretender jamais que está em seu poder outra coisa que dizer com atraso, mas o mais claramente que lhe é possível, o discurso inexpresso da Obra". (O Tempo e o Modo, Maio-Junho de 1966, ensaio coligido in O Canto do Signo, Lisboa, Presença, 1994, p. 46).

Este respeito pelo carácter trágico da crítica, conjugado com uma invulgar erudição, capaz de colocar em diálogo tradições literárias e culturais diversas, com a capacidade de, sem trair a textualidade, perseguir a errância (ibi., p. 68) do texto, da sua produção até ao imaginário, individual e coletivo, que simultaneamente reflete e constrói, elevou-o, desde a publicação, em 1957, do ensaio O Desespero Humanista de Miguel Torga até ao recente O Canto do Signo. Existência e Literatura, como orador e como escritor, a um dos expoentes máximos do ensaísmo literário e cultural contemporâneo, estatuto unanimemente reconhecido, por exemplo, na atribuição de vários prémios nacionais e internacionais (Prémio PEN Clube, 1983; Prémio Europeu de Ensaio Charles Veillon, 1988; Prémio Camões e Prémio D. Dinis, 1996; Prémio Virgílio Ferreira, pela Universidade de Évora, 2000; condecoração francesa da Legião de Honra, 2002; Prémio Extremadura a la Creación, 2006; Prémio Extremadura para a Criação, 2006).

Em complementaridade com o trabalho de crítica literária, o ensaísmo de Eduardo Lourenço revela uma particular preocupação na análise das autognoses coletivas que a cultura literária e artística espelham, reflexão que, desde O Labirinto da Saudade até Poesia e Metafísica, examinando "as imagens que de nós mesmos temos forjado", culminaria com uma interrogação sobre o destino português, não só no modo como ele é percecionado nas obras e no nome de alguns dos seus vultos mais representativos (Camões, Antero e, sobretudo, Pessoa), mas, de forma mais abrangente, em volumes como Portugal Como Destino Seguido de Mitologia da Saudade (1999), sobre o modo como esse destino é miticamente sobredeterminado. Considerando, do exterior (português fora de Portugal), o destino português, Eduardo Lourenço consegue, neste último volume, fazer concorrer todo o seu saber (histórico, filosófico, literário), para formular, no fim de século, sem qualquer intuito doutrinário, uma imagem imparcial do ser português, na sua singularidade e universalidade, espelho, onde, observando-se, pode conhecer-se e aceitar-se "tal como foi e é, apenas um povo entre os povos. Que deu a volta ao mundo para tomar a medida da sua maravilhosa imperfeição." (Portugal Como Destino Seguido de Mitologia da Saudade, Lisboa, Gradiva, 1999, p. 83). (Daqui)
 
 
MORTE

"Estamos a falar de uns sujeitos que vão morrer. E que sabem que vão morrer, como os gladiadores do circo romano. O melhor é encarar isso da maneira mais filosófica possível. Quer dizer, sabendo que o que quer que pensemos sobre aquilo que nos espera, nada podemos. Está fora do nosso alcance. Não somos os sujeitos de nós próprios. Nascemos embarcados, como dizia Pascal. Depois, somos desembarcados."

Eduardo Lourenço, Público, 2014 (daqui)
(São Pedro de Rio Seco, Almeida, 23 de maio de 1923 - Lisboa, 1 de dezembro de 2020)