segunda-feira, 31 de agosto de 2020

"Homenagem a Raimundo Lulio" - Murilo Mendes


Bruno Liljefors, (Swedish, 1860-1939), Common Swifts, 1886



Homenagem a Raimundo Lúlio

I

A inocência perguntou à crueldade:
Por que me persegues?
A crueldade respondeu-lhe:
– E tu, por que te opões a mim?

II

A aveia do camponês
Queixou-se do cavalo do ditador,
Então o cavalo forte
Queixou-se das esporas do ditador.

III

O pensamento encontrou-se com a eternidade
E perguntou-lhe: de onde vens?
– Se eu soubesse não seria eterna.
– Para onde vais?
– Volto para de onde venho.

Então a monarquia do corpo obumbrou-se ainda mais
E a morte inclinou seu estandarte.


Murilo Mendes 


Francisco Ribalta (1565-1628), Retrato de Raimundo Lúlio,
(c.1232-c.1316), c. 1620, Museu Nacional de Arte da Catalunha


Raimundo Lúlio foi o mais importante escritor, filósofo, poeta, missionário e teólogo da língua catalã. Foi um prolífico autor também em árabe e latim, bem como em langue d'oc (occitano). É beato da Igreja Católica.

Lúlio é uma das figuras mais fascinantes e avançadas dos campos espiritual, teológico e literário da Idade Média.
Foi um leigo próximo aos franciscanos. Talvez tenha pertencido à Ordem Terceira dos Frades Menores. Fez parte da corte de Jaime I em Maiorca, foi amigo do futuro rei Jaime II de Maiorca e, segundo seu relato, levava uma vida libertina de jogral, até que, por volta de 1265, teve visões místicas e fez uma conversão a uma vida de contemplação, iniciando seus estudos em línguas estrangeiras e teologia. Era conhecido em seu tempo pelos apelidos de Arabicus Christianus (árabe cristiano), Doctor Inspiratus (Doutor Inspirado) ou Doctor Illuminatus (Doutor Iluminado), embora não seja um dos 33 Doutores da Igreja Católica. Dedicou-se ao apostolado entre os muçulmanos.

Além de ser o primeiro autor a utilizar uma língua neolatina para expressar conhecimentos filosóficos, científicos e técnicos, destacou-se por uma aguda percepção que o permitiu antecipar muitos conceitos e descobrimentos. Lúlio foi o criador do catalão literário, possuindo um elevado domínio da língua e tendo sido seu primeiro novelista.

Em alguns de seus trabalhos, propôs métodos de escolha que foram redescobertos, séculos mais tarde, por Condorcet (século XVIII). Influiu em Nikolaus von Kues, Giovanni Pico della Mirandola, Francisco Ximenes de Cisneros, Heinrich Kornelius Agrippa von Nettesheim, Giordano Bruno, Gottfried Wilhelm Leibniz, John Dee e Jacques Lefèvre D'Etaples. (Daqui)


Bruno Liljefors

 Bruno Liljefors, Partridge with daisies, 1890



Bruno Liljefors, Fox stalking wild ducks, 1913


Bruno Liljefors, Foxes, 1885



Bruno Liljefors, A Fox Family


Bruno Liljefors, Winter hare, 1908



Bruno Liljefors, Sparrows in a Cherry Tree, 1885


"A poesia não pode nem deve ser um luxo para alguns iniciados: é o pão quotidiano de todos, uma aventura simples e grandiosa do espírito." 


Murilo Mendes, in "O Discípulo de Emaús", aforismo 198
 - Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 834.


Murilo Mendes, por Alberto da Veiga Guignard, 1930

Murilo Monteiro Mendes nasceu em 13 de maio de 1901, em Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil e faleceu em 13 de agosto de 1975, em Lisboa, Portugal. Foi um poeta e prosador brasileiro, expoente do surrealismo na literatura brasileira. 

domingo, 30 de agosto de 2020

"A Gentil Camponesa" - Poema de António Aleixo


William Holman Hunt (English painter, 1827-1910),
"The Afterglow in Egypt", 1863
 


A Gentil Camponesa

MOTE

Tu és pura e imaculada,
Cheia de graça e beleza;
Tu és a flor minha amada,
És a gentil camponesa.

GLOSAS

És tu que não tens maldade,
És tu que tudo mereces,
És, sim, porque desconheces
As podridões da cidade.
Vives aí nessa herdade,
Onde tu foste criada,
Aí vives desviada
Deste viver de ilusão:
És como a rosa em botão,
Tu és pura e imaculada.

És tu que ao romper da aurora
Ouves o cantor alado...
Vestes-te, tratas do gado
Que há de ir tirar água à nora;
Depois, pelos campos fora,
É grande a tua pureza,
Cantando com singeleza,
O que ainda mais te realça,
Exposta ao sol e descalça,
Cheia de graça e beleza.

Teus lábios nunca pintaste,
És linda sem tal veneno;
Toda tu cheiras a feno
Do campo onde trabalhaste;
És verdadeiro contraste
Com a tal flor delicada
Que só por muito pintada
Nos poderá parecer bela;
Mas tu brilhas mais do que ela,
Tu és a flor minha amada.

Pois se te tenho na mão,
Inda assim acho tão pouco,
Que sinto um desejo louco:
Guardar-te no coração!...
As coisas mais belas são
Como as cria a Natureza,
E tu tens toda a grandeza
Dessa beleza que almejo,
Tens tudo quanto desejo,
És a gentil camponesa.


António Aleixo
(1899 – 1949),  
in "Este Livro que Vos Deixo..."


"A arte de viver é simplesmente a arte de conviver... simplesmente, disse eu? Mas como é difícil!"

(Mário Quintana)
 

sábado, 29 de agosto de 2020

"Das impossíveis semelhanças" - Poema de Ana Luísa Amaral


Giovanni Boldini (Italian painter, 1842-1931), The Divine in Blue, 1905


Das impossíveis semelhanças


É quando a morte se instala
à nossa volta entre os que mais amámos:
os que nos foram vida, os nossos,
os amigos

– e de repente, também os que seguimos
desde jovens e só reconhecemos por jornais,
e tornaram o mundo um lugar mais ameno
como o mundo poderia realmente ser

Ouvi pela primeira vez 'Take this Waltz'
na mesma altura em que escrevi um poema
com cavalos de pedra e uma fotografia
que tirei a seu lado, não de Leonard Cohen,
mas de alguém por quem me apaixonei, e tão eficazmente
como acontece a um míssil
de precisão absoluta

Ainda vive (e bem), mas é como
se tivesse quase desaparecido,
uma fotografia antiga levemente a esbater-se,
desmanchando-se em cinza com a luz do sol,
o que é muito parecido
com morrer

(Mas, por muito que eu tente imaginar
que é semelhante,
de facto não é a mesma coisa.
Não, não é a mesma coisa)


Ana Luísa Amaral 


Giovanni Boldini, The pianist Alexandre Rey Colaço (1854-1928, Portuguese pianist)


Alexandre Rey Colaço foi um pianista, compositor e pedagogo português nascido a 30 de abril de 1854, em Tânger, Marrocos.

Frequentou o Conservatório de Música de Madrid onde obteve o 1.º prémio na categoria de Piano, em 1874, e depois foi reconhecido artisticamente em Lisboa, após dois concertos: um, no Conservatório; o outro, no Teatro D. Maria II. Posteriormente, foi para Paris aperfeiçoar-se em Piano. Aí, estudou com Théodore Ritter e George Mathias, último discípulo de Chopin, e contactou com o compositor Gabriel Fauré.

Regressado a Lisboa, foi aconselhado pelo violinista e chefe de orquestra Enrique Fernández Arbós a prosseguir os seus estudos em Berlim. O jovem pianista partiu então para a capital alemã onde frequentou, durante quatro anos, a Hochschule fur Müsik. Por seu extraordinário talento, foi convidado a ensinar piano na mesma Escola, cujo diretor era o famoso violinista húngaro Joseph Joachim, grande intérprete e amigo de Robert Schumann e Johannes Brahms.

Em 1887, regressou definitivamente a Lisboa, tornou-se cidadão português e, demonstrou o seu talento de concertista, em extraordinárias sessões de música de câmara. Dez anos mais tarde, foi designado professor do Conservatório Real de Lisboa e, entre 1915 e 1919, requereu uma licença sem vencimento por não ter sido escolhido como um dos membros da comissão responsável pela reforma do ensino artístico. Foi ainda professor dos príncipes D. Luís Filipe de Bragança e D. Manuel de Bragança (futuro rei D. Manuel II de Portugal), entre 1903 e 1910, e pianista da Real Câmara.

Compôs obras de índole nacionalista, como Cantigas de Portugal (para piano e voz) e Fados (9 peças para piano). Rey Colaço, juntamente com Viana da Mota, foi um dos maiores pianistas portugueses do final do século XIX e do primeiro quartel do século XX. Foi ainda um dos primeiros compositores eruditos a valorizar a música popular portuguesa, tornando-se, por isso, precursor de Freitas Branco e de Lopes-Graça.
Alexandre Rey Colaço faleceu a 11 de setembro de 1928, em Lisboa. (Daqui)

"O Amor bate na aorta" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Albert Chevallier Tayler (1862-1925), A Dress Rehearsal, 1888, Lady Lever Art Gallery


O Amor bate na aorta



Cantiga do amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito!

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...


Carlos Drummond de Andrade
,
 in Brejo das Almas
 

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

"Se às vezes digo que as flores sorriem" - Poema de Alberto Caeiro


Adrienn Henczné Deák (Hungarian painter, 1890 -1956), Hungarian National Gallery



 Se às vezes digo que as flores sorriem

XXXI

Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.

Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa coisa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma. 

s.d.

Alberto Caeiro, in “O Guardador de Rebanhos”
Heterónimo de Fernando Pessoa


Adrienn Henczné Deák


Creio que irei morrer 


Creio que irei morrer.
Mas o sentido de morrer não me ocorre,
Lembro-me que morrer não deve ter sentido.
Isto de viver e morrer são classificações como as das plantas.
Que folhas ou que flores têm uma classificação?
Que vida tem a vida ou que morte a morte?
Tudo são termos onde se define.
 A única diferença é um contorno, uma paragem, 
uma cor que destinge (...)
...mas o Universo existe mesmo sem o Universo.
Esta verdade capital é falsa só quando é dita.

1-10-1917

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa


Adrienn Henczné Deák


Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares

XXXIII

Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas que florescem do mesmo modo
E têm o mesmo sorriso antigo
Que tiveram para o primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
 Para ver se elas falavam... 

s.d.

Alberto Caeiro, in “O Guardador de Rebanhos”
Heterónimo de Fernando Pessoa


Adrienn Henczné Deák 


"Como uma criança antes de a ensinarem a ser grande,
Fui verdadeiro e leal ao que vi e ouvi."

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

"O Tempo" - Poema de Mário Quintana



Abraham Liedts (1604/1605-1668), Officers and Guardsmen of the Company of Dirck Claesz.
 Veen militia in Hoorn, 1653



O Tempo 
 ou
("Seiscentos e sessenta e seis")

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.

Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é 6ª-feira…
Quando se vê, passaram 60 anos!
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre em frente…

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.


Mário Quintana



Mário Quintana
(1906-1994), por Sampaulo (1931- 1999)


Conhecido popularmente como "O Tempo", o poema de Mário Quintana tem como título original "Seiscentos e Sessenta e Seis". Foi publicado pela primeira vez na obra Esconderijos do Tempo, em 1980.

O livro, escrito quando o autor estava com setenta e quatro anos, exprime a sua visão madura e sábia sobre a vida. Reflete sobre temas como a passagem do tempo, a memória, a existência, a velhice e a morte.

Talvez pela mensagem inspiradora que transmite, o poema ganhou várias releituras e adaptações ao longo do tempo. Encontra-se altamente divulgado e popularizado numa versão maior, cujos versos não pertencem todos a Mário Andrade.
Apesar das inúmeras versões do poema que podemos encontrar e dos problemas de falsa autoria que acarretam, as palavras do poeta se mantêm sempre atuais e pertinentes para os seus leitores.

"Seiscentos e sessenta e seis"
é uma composição curta, de verso livre, na qual sujeito lírico reflete acerca da condição humana e a passagem inevitável do tempo. (Daqui)


quarta-feira, 26 de agosto de 2020

"Belo Belo I" e "O Bicho" - Poemas de Manuel Bandeira


William Holman Hunt, Our English Coasts ('Strayed Sheep'), 1852, Óleo sobre tela


Belo Belo 
I

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milénios.
E o risco brevíssimo – que foi? passou – de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

– Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.

William Holman HuntThe Scapegoat, 1854, Óleo sobre tela, Lady Lever Art Gallery


O Bicho


Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.



Escrito no Rio de Janeiro, no dia 27 de dezembro de 1947, o poema 'O Bicho' retrata a realidade social do Brasil imerso na miséria durante a década de quarenta. Aparentemente simples, mas afinal desconcertante, o poema denuncia uma ordem social fraturada.

 Manuel Bandeira demonstra ter capacidade de transformar uma cena triste e cruel em poesia. Ao olhar para a exclusão experienciada na paisagem de um grande centro urbano, o poeta denuncia o abismo social tão típico da sociedade brasileira. (Daqui) 

terça-feira, 25 de agosto de 2020

"Madalena" - Poema de António Gomes Leal


George Romney, A Madalena (Lady Hamilton as The Magdalene), c. 1790



Madalena


Descai o sol nos olivais do monte.
Colhe o gado o pastor. - Das largas eiras
vêm vindo as filhas de Jacob à fonte
com seu rítmico andar, entre palmeiras.

Um rouxinol suspira num loureiro.
- É nessa hora do ocaso, meiga e terna,
Em que o sol busca o mar como um boieiro
que vem beber à boca da cisterna.

Passam Jesus e os seus. - Sião, Ramá
as nostálgicas filhas de David
dizem, na sombra, baixo: «Quem será
este suave e místico Rabi?»

Mas o sol cai nos olivais do monte
Colhe o gado o pastor. - Das largas eiras
vêm vindo as filhas de Jacob à fonte
com seu rítmico andar, entre palmeiras.

Da Galileia ao Monte de Carmelo,
as judias, da sombra no mistério,
dizem, baixo: «Que príncipe tão belo
parece ser este Rabi tão sério!»

- Ele é mais louro do que um Sol levante,
mais meigo e casto que a mansa ave!
Ele é mais belo que um rei distante!
- «Quem será pois este Rabi suave?»

Mas o sol cai nos olivais do monte
Colhe o gado o pastor. - Das largas eiras
vêm vindo as filhas de Jacob à fonte
com seu rítmico andar, entre palmeiras.

Madalena em Betânia, desatando
seu cabelo, qual fúlgido lençol,
limpa os pés do Rabi, humilde, olhando
seus olhos cheios de domínio e Sol.

Lança-lhe aos pés um bálsamo correndo,
que Judas diz: do desperdício o cúmulo.
- Mas o Rabi suave vai dizendo:
«Triste mulher! Ungiu-me para o túmulo!»

Mas o sol cai nos olivais do monte
Colhe o gado o pastor. - Das largas eiras
vêm vindo as filhas de Jacob à fonte
com seu rítmico andar, entre palmeiras.

O lavrador, na tarde sossegada,
dos mistérios cismando sobre a origem,
vai andando e dizendo, sob a enxada:
- «Quem será o Rabi pálido e virgem?»

O pescador trigueiro das baías,
deitando a rede diz olhando o rio:
- «Quando virá o lúcido Messias?
- Quem é este Rabi louro e sombrio?»

O discípulo e apóstolo, cavado
dos jejuns, a cismar sobre a doutrina,
vai andando e dizendo: - «o Céu calado
pode criar a encarnação divina?...»

Pode o verbo ser carne? O Todo e o tudo
tornar-se a Parte? um ramo de David!
Ó Céu largo, ó Céu triste, belo e mudo!
Quem é pois, quem é pois, nosso Rabi?»

- Mas Madalena, num amargo choro,
limpa os pés do Rabi, cheia d'amor,
com seus longos cabelos feitos de ouro,
e, baixinho, soluça: - «É meu senhor!»

O Sol morreu nos olivais do Monte.
Rompe o virgem luar. - Às largas eiras
vão-se indo as filhas de Jacob, da fonte,
com seu rítmico andar entre as palmeiras.

1913 

António Gomes Leal (1848-1921)
In Gomes Leal - História de Jesus, José Carlos Seabra Pereira
(ed,), Assírio & Alvim, Lisboa: 1998 (2ª.), pp.96-98



segunda-feira, 24 de agosto de 2020

"Aliança" - Poema de Pedro Homem de Mello


Marc Chagall (1887-1985), The bridal couple, 1927
 

Aliança


Por tudo quanto sei, mas não sabia,
(Feliz de quem um dia ainda o souber!)
Por essa estrela branca em noite fria!
Anunciação, talvez, de poesia...
Por ti, minha mulher!

Por esse homem que sou, mas que não era,
Vendo na morte a vida que vier!
Por teu sorriso em minha vida austera.
Anunciação, talvez de Primavera...
Por ti, minha mulher!

Pelo caminho humano a que vieste
Com fé no amor. — Seja o que Deus quiser!
Por certa fonte abrindo a rocha agreste...
Por esse filho loiro que me deste!
Por ti, minha mulher!

Pelo perdão que espalho aos quatro ventos,
De antemão cego ao mal que me trouxer
Despeitos surdos, pérfidos momentos;
Pelos teus passos, junto aos meus, mais lentos...
Por ti, minha mulher!

Nada mais digo. Nada. Que não posso!
Mas dirá mais do que eu quem não disser
Como eu?: — Avé-Maria... Padre-Nosso...
Por tudo quanto é meu (e que é tão nosso!)
Por ti, minha mulher!


Pedro Homem de Mello
, in "Adeus"


domingo, 23 de agosto de 2020

"Momento Lírico" - Poema de Vergílio Ferreira

 


Momento Lírico


Canta,
virgem de carne fresca e moça,
como a relva dos prados,
onde os novilhos brincam...
Virgem,
canta!
nesta angustiosa tarde
que estendeu o dia não se sabe como
e levou os olhos destes homens fortes
e o fumo branco
dos casais dispersos...
Canta!
e faz rolar das rochas
as canções vibrantes de ribeiros novos...
Canta!
e baloiça, manso, árvores de ferro...
Canta, menina pura,
de carne branca e linda!
E renova tudo...
E envolve tudo na onda de sonho
dum sonho brando e novo
que eu não sei dizer...


Vergílio Ferreira



Edward Burne-Jones, The Beguiling of Merlin, 1874



Só nos pertence o gesto que fizemos


Só nos pertence o gesto que fizemos
não o fazê-lo como, iludida,
a divindade que em nós já trouxemos
supõe errada (e não) por convencida.

Porque o traçado nosso em breve cessa,
para que outro o recomece e não progrida;
que um gesto em ser gesto real se meça,
não está em nós fazê-lo, mas na Vida.

Assim o nada a sagra quando finda
porque o que é, só é o não ainda.
 
 in 'Conta-Corrente 1'

sábado, 22 de agosto de 2020

"Dez chamamentos ao amigo" - Poema de Hilda Hilst



Wladyslaw Bakalowicz
(Polish-French painter, 1833-1904), Coquete 
 


Dez chamamentos ao amigo

I

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento. 

II

Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida altivez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora
Há tanto tempo sua própria tessitura.
Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.

III

Se refazer o tempo, a mim, me fosse dado
Faria do meu rosto de parábola
Rede de mel, ofício de magia
E naquela encantada livraria
Onde os raros amigos me sorriam
Onde a meus olhos eras torre e trigo
Meu todo corajoso de Poesia
Te tomava. Aventurança, amigo,
Tão extremada e larga
E amavio contente o amor teria sido.

IV

Minha medida? Amor.
E tua boca na minha
Imerecida.
Minha vergonha? O verso
Ardente. E o meu rosto
Reverso de quem sonha.
Meu chamamento? Sagitário
Ao meu lado
Enlaçado ao Touro.
Minha riqueza? Procura
Obstinada, tua presença
Em tudo: julho, agosto
Zodíaco antevisto, página
Ilustrada de revista
Editorial, jornal
Teia cindida.
Em cada canto da Casa
Evidência veemente
Do teu rosto.

V

Nós dois passamos. E os amigos
E toda minha seiva, meu suplício
De jamais te ver, teu desamor também
Há de passar. Sou apenas poeta
E tu, lúcido, fazedor da palavra,
Inconsentido, nítido
Nós dois passamos porque assim é sempre.
E singular e raro este tempo inventivo
Circundando a palavra. Trevo escuro
Desmemoriado, coincidido e ardente
No meu tempo de vida tão maduro.

VI

Foi Julho sim. E nunca mais esqueço.
O ouro em mim, a palavra
Irisada na minha boca
A urgência de me dizer em amor
Tatuada de memória e confidência.
Setembro em enorme silêncio
Distancia meu rosto. Te pergunto:
De Julho em mim ainda te lembras?
Disseram-me os amigos que Saturno
Se refaz este ano. E é tigre
E é verdugo. E que os amantes
Pensativos, glaciais
Ficarão surdos ao canto comovido.
E em sendo assim, amor,
De que me adianta a mim, te dizer mais?

VII

Sorrio quando penso
Em que lugar da sala
Guardarás o meu verso.
Distanciado
Dos teus livros políticos?
Na primeira gaveta
Mais próxima à janela?
Tu sorris quando lês
Ou te cansas de ver
Tamanha perdição
Amorável centelha
No meu rosto maduro?
E te pareço bela
Ou apenas te pareço
Mais poeta talvez
E menos séria?
O que pensa o homem
Do poeta? Que não há verdade
Na minha embriaguez
E que me preferes
Amiga mais pacífica
E menos aventura?
Que é de todo impossível
Guardar na tua sala
Vestígio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?
Ou é mesmo verdade
Que nunca me soubeste?

VIII

De luas, desatino e aguaceiro
Todas as noites que não foram tuas.
Amigos e meninos de ternura
Intocado meu rosto-pensamento
Intocado meu corpo e tão mais triste
Sempre à procura do teu corpo exato.
Livra-me de ti. Que eu reconstrua
Meus pequenos amores. A ciência
De me deixar amar
Sem amargura. E que me dêem
Enorme incoerência
De desamar, amando. E te lembrando
– Fazedor de desgosto –
Que eu te esqueça.

IX

Esse poeta em mim sempre morrendo
Se tenta repetir salmodiado:
Como te conhecer, arquiteto do tempo
Como saber de mim, sem te saber?
Algidez do teu gesto, minha cegueira
E o casto incendiado momento
Se ao teu lado me vejo. As tardes
Fiandeiras, as tardes que eu amava,
Matéria de solidão, íntimas, claras
Sofrem a sonolência de umas águas
Como se um barco recusasse sempre
A liquidez. Minhas tardes dilatadas
Sobreexistindo apenas
Porque à noite retomo minha verdade:
teu contorno, teu rosto álgido sim
E por isso, quem sabe, tão amado.

X

Não é apenas um vago, modulado sentimento
O que me faz cantar enormemente
A memória de nós. É mais. É como um sopro
De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso
É como se a despedida se fizesse o gozo
De saber
Que há no teu todo e no meu, um espaço
Oloroso, onde não vive o adeus.
Não é apenas vaidade de querer
Que aos cinquenta
Tua alma e teu corpo se enterneçam
Da graça, da justeza do poema. É mais.
E por isso perdoa todo esse amor de mim
E me perdoa de ti a indiferença.


Hilda Hilst
,
do livro Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão”, 
publicado em 1974.

 

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

"O Livro Fechado" - Poema de Rui Knopfli


Harold Knight (English, 1874-1961), Self-portrait, c. 1923
(Husband of Dame Laura Knight)



O Livro Fechado


Quebrada a vara, fechei o livro
e não será por incúria ou descuido
que algumas páginas se reabram
e os mesmos fantasmas me visitem.
Fechei o livro, Senhor, fechei-o,

mas os mortos e a sua memória,
os vivos e sua presença podem mais
que o álcool de todos os esquecimentos.
Abjurado, recusei-o e cumpro,
na gangrena do corpo que me coube,

em lugar que lhe não compete,
o dia a dia de um destino tolerado.
Na raça de estranhos em que mudei,
é entre estranhos da mesma raça
que, dissimulado e obediente, o sofro.

Aventureiro, ou não, servidor apenas
de qualquer missão remota ao sol poente,
em amanuense me tornei do horizonte
severo e restrito que me não pertence,
lavrador vergado sobre solo alheio

onde não cai, nem vinga, desmobilizada,
a sombra elíptica do guerreiro.
Fechei o livro, calei todas as vozes,
contas de longe cobradas em nada.
Fale, somente, o silêncio que lhes sucede.


Rui Knopfli, in "O Corpo de Atena"


Laura Knight, Self-portrait, c. 1913


O lugar mais perto


O corpo nunca é triste;
o corpo é o lugar
mais perto onde o lume canta.
Só na alma a morte faz a casa.

 


Harold Knight (English, 1874-1961) / Laura Knight (English, 1877-1970),
by Associated Press, bromide print, 10 March, 1937
 National Portrait Gallery London (daqui)


"O artista deve gostar da vida e mostrar-nos que ela é bonita. Se não fosse ele, duvidaríamos disso."

Anatole France
, in Le Jardin d’Épicure, 1895


quinta-feira, 20 de agosto de 2020

"Justitia Mater" - Poema de Antero de Quental


Abraham Solomon (English, 1824-1862), Waiting for the Verdict, oil painting on canvas, 1859


Justitia Mater



Nas florestas solenes há o culto
Da eterna, íntima força primitiva:
Na serra, o grito audaz da alma cativa,
Do coração, em seu combate inulto:

No espaço constelado passa o vulto
Do inominado Alguém, que os sóis aviva:
No mar ouve-se a voz grave e aflitiva
D'um deus que luta, poderoso e inculto.

Mas nas negras cidades, onde solta
Se ergue, de sangue medida, a revolta,
Como incêndio que um vento bravo atiça,

Há mais alta missão, mais alta glória:
O combater, à grande luz da história,
Os combates eternos da Justiça!

1870

Antero de Quental,
in "Sonetos"


Abraham Solomon, Not Guilty, 1854


"Três coisas devem ser feitas por um juiz: ouvir atentamente, considerar sobriamente e decidir imparcialmente."

Sócrates

Filósofo, Grécia Antiga
 (-469 // -399)


quarta-feira, 19 de agosto de 2020

"Belo verso" - Poema de Irene Lisboa


Janos Laszlo Aldor (Hungria, 1895 - 1944), Cattle Grazing in a Spring Field

(Janos László Aldor nasceu em Nagyigmánd, na Hungria em 1895. Em 1919 concluiu o curso de arquitetura, mas como pintor foi autodidata. A partir de 1914 começou a expor seus quadros regularmente. Ficou conhecido pelos retratos de mulheres. Faleceu em 1944.)


Belo verso


Apetecia-me escrever um belo verso.
Sonoro, elegante, correto, de mármore!
Nele pôr o que outros me inspirassem.
O que ali aquele poeta estava cantando.
Ele o cantava e eu o repetia.
Acrescentava, desdobrava, acrescia da minha ansiedade.
Mas verso bem feito!
Cheio do que se sonha, não do que se sente.
Parece-me pobre o que sinto.
E vulgar.
Estes olhos que sem querer se envidraçam, fúteis,
sem recato, infantis, esta voz insegura, enfim,
 tudo isto…
Que figura iriam fazer dentro de um verso elegante, lapidar?
Belo verso trair-te-iam, roubar-te-iam toda a graça e até a ressonância, o êxtase
e aquela espécie de embalo que ao espírito sempre dás.
Mas sinceramente me apetecia escrever um verso de mármore belo!
Tudo, tudo por causa daquele poema…
Daquela exaltação do desejo, daquele arrebatamento lírico, infixo,
 daquela sensualidade espumosa...
Meu velhíssimo verso falhado, meu, não o dos outros...
Com que te haveria eu de ilustrar?
Com que te encher, meu divino, lúcilo, aéreo,
palavroso poema do nada?


Irene Lisboa,
  em Outono havias de vir latente e triste,
 com o pseudónimo de João Falco, Lisbos, 
Seara Nova, 1937



Janos Laszlo Aldor, Feeding Time, 1940


"Quando somos jovens, temos manhãs triunfantes."

(Victor Hugo)


Janos Laszlo Aldor, Young Wife, 1913


"A educação é uma descoberta progressiva da nossa própria ignorância."

Janos Laszlo Aldor, Young lady in local clothes, 1942


"Quando tiveres cumprido o teu dever, resta-te ainda outro: mostrares-te satisfeito."

(Johann Wolfgang von Goethe)


terça-feira, 18 de agosto de 2020

"Morte, Juízo, Inferno e Paraíso" - Soneto de Manuel Maria Barbosa du Bocage



Władysław Czachórski (Polish, 1850–1911), A lady in a lilac dress with flowers (For him), c. 1880/1890,
National Museum in Warsaw


Morte, Juízo, Inferno e Paraíso


 
Em que estado, meu bem, por ti me vejo,
Em que estado infeliz, penoso e duro!
Delido o coração de um fogo impuro,
Meus pesados grilhões adoro e beijo.

Quando te logro mais, mais te desejo;
Quando te encontro mais, mais te procuro;
Quando mo juras mais, menos seguro
Julgo esse doce amor, que adorna o pejo.

Assim passo, assim vivo, assim meus fados
Me desarreigam d'alma a paz e o riso,
Sendo só meu sustento os meus cuidados;

E, de todo apagada a luz do siso,
Esquecem-me (ai de mim!) por teus agrados
Morte, Juízo, Inferno e Paraíso.


Manuel Maria Barbosa du Bocage
,
in 'Sonetos'