quarta-feira, 24 de abril de 2024

"A Fábrica" - Poema de Ary dos Santos



Stanhope Forbes
(British artist, 1857–1947), 'The Munition Girls', 1918, Science Museum.



A Fábrica


Da alavanca ao tear da roda ao torno
da linha de montagem ao cadinho
do aço incandescente a entrar no forno
à agulha a trabalhar devagarinho.

Da prensa que se fez para esmagar
à tupia no corpo da madeira
do formão que nasceu a golpear
à força bruta duma britadeira.

Do ferro e do cimento até ao molde
que é quase um esgar de plástico sereno
do maçarico humano que nos solde
à luz da luta e não do acetileno

nasce este canto imenso e universal
sincopado enérgico fabril
sereia que soou em Portugal
à hora de pegarmos por Abril.

Transformar a matéria é transformar
a própria sociedade que nós fomos
ser operário é apenas saber dar
mais um pouco de nós ao que nós somos.

Um braço é muito mas por si só não chega
por trás da nossa mão há uma razão
que faz de cada gesto sempre a entrega
de um pouco mais de força. De mais pão.

Estamos todos num único universo
e não há uns abaixo outros acima
pois se um poema é uma obra em verso
um parafuso é uma obra-prima.

Operários das palavras ou do aço
da terra do minério do cimento
em cada um de nós há um pedaço
da força que só tem o sofrimento.

Vamos cavá-la com a pá das mãos
provar que em cada um nós somos mil
é tempo de alegria meus irmãos
é tempo de pegarmos por Abril.


Ary dos Santos
, in “Obra Poética”
Lisboa, Ed. Avante, 1994.
 
 
Portrait of  Stanhope Forbes by his wife, Elizabeth Adèla Forbes
née Armstrong (Canadian painter, 1859 –1912). 
 
 
"O talento é amiúde um fator secundário no sucesso. Convencemos-nos deste facto ao ler a vida dos homens célebres. Todos, poetas, oradores, historiadores, filósofos, estadistas, foram sobretudo trabalhadores incansáveis, mais viris na labuta que os jornaleiros e operários; consumiam-se nos seus livros e afazeres como a lâmpada que presidia às suas vigílias. Foram vistos trabalhar doze, catorze, dezasseis horas por dia durante largos anos. Antes da aurora levantavam-se; no verão, madrugavam mais do que a cotovia e quando o ceifador ia colher paveias, já tinha amontoado tesouros."
 
Louis Riboulet (1871 - 1944), Rumo à Cultura, p. 28
 

terça-feira, 23 de abril de 2024

"Mulheres do meu país" - Poema de Maria Teresa Horta

 

 
Ilustração de Bárbara Amaral, À Boleia do Cravo



Mulheres do meu país


Deu-nos Abril
o gesto e a palavra

fala de nós
por dentro da raiz

Mulheres
quebrámos as grandes barricadas
dizendo: igualdade
a quem ouvir nos quis

E assim continuamos
de mãos dadas

O povo somos:
mulheres do meu país


Maria Teresa Horta, in “Mulheres de Abril”,
Lisboa, Editorial Caminho, 1977.
 
 
Maria Teresa Horta,“Mulheres de Abril” - 1º edição, 1977,
112 páginas. Lisboa, Editorial Caminho.
 
 
 RESUMO


O livro "Mulheres de Abril", de Maria Teresa Horta, de 1977, utiliza-se de uma linguagem política engajada na tentativa de levante da mulher como testemunha tanto do processo de desvinculação ditatorial ocorrida na Revolução dos Cravos, quanto da história opressora fomentada pelo patriarcalismo. A mimese desse testemunhar se dá principalmente por via da memória poética feminina.
 

segunda-feira, 22 de abril de 2024

"A Terra" - Poema de Ary dos Santos



Charles Angrand (French artist, 1854–1926), The Harvesters, 1892,
Museum of Fine Arts, Houston
.


A Terra

 
É da terra sangrenta. Terra braço
terra encharcada em raiva e em suor
que o homem pouco a pouco passo a passo
tira a matéria-prima do amor.

Umas vezes o trigo loiro e cheio
outras o carvão negro e faiscante
umas vezes petróleo outras centeio
mas sempre tudo menos que o bastante.

Porque a terra não é de quem a trabalha
porque o trigo não é de quem semeia
e um trabalhador apenas falha
quando faz filhos em mulher alheia.

Quando o estrume das lágrimas chegar
para adubar os vales da revolta
quando um mineiro puder respirar
com as narinas dum cavalo à solta

quando o minério se puder tornar
semente viva de bem-estar e pão
quando o silêncio se puder calar
e um homem livre nunca dizer não.

Quando chegar o dia em que o trabalho
for apenas dar mais ao nosso irmão
quando a fúria da força que há num malho
fizer soltar faíscas de razão.

Quando o tempo do aço for o tempo
da têmpera dos homens caldeados
por pó e chuva por excremento e vento
mas por sua vontade libertados.

Quando a seiva do homem lhe escorrer
por entre as pernas como sangue novo
e quando a cada filho que fizer
puder chamar em vez de Pedro Povo.

As entranhas da terra hão de passar
o tempo da humana gestação
e parir como um rio a rebentar
o corpo imenso da Revolução. 
 

Ary dos Santos, in “Obra Poética”,
Lisboa, Ed. Avante, 1994.
 
 
Ary dos Santos,“Obra Poética” - Ano de edição: 10-2017
Editor: Editorial Avante
 
 
 
SINOPSE

José Carlos Ary dos Santos (1937-1984) foi um grande poeta e um enorme declamador. Os seus poemas e canções, de uma imensa riqueza simbólica, farão para sempre parte do património cultural nacional. Militante do Partido Comunista Português de 1969 até à sua morte, foi justamente apelidado de «Poeta de Lisboa e do seu povo, de Portugal e de Abril».
As Edições «Avante!», no ano em que José Carlos Ary dos Santos faria 80 anos de idade, reeditam as antologias Obra Poética e As Palavras das Cantigas, como dois volumes de uma obra ao mesmo tempo popular e erudita, com iguais doses de amor e de luta. (daqui)

Charles Angrand (French artist, 1854–1926), Wheat, Pastel drawing.
 

"O objetivo principal da agricultura não é cultivar lavouras, mas o cultivo e aperfeiçoamento dos seres humanos." 
 
"The ultimate goal of farming is not the growing of crops, but the cultivation and perfection of human beings."

Masanobu Fukuoka
, The One-Straw Revolution,
Published by: Other India Press, Mapusa, Goa, India, 8 edição. 2001, p. 119. 
 
 
Charles Angrand, The Harvest, 1890
 
 
 "Meu desejo mais profundo é semear sementes no deserto. Reverter os desertos é semear no coração das pessoas."
 
"My ultimate dream is to sow seeds in the desert. To revegetate the deserts is to sow seed in people's hearts."
 
Masanobu Fukuoka, The Road Back to Nature, tradução para o inglês por Frederic P. Metreaud, 
Japan Publications, 1987 - 377 páginas, p. 360.
 
 
Masanobu Fukuoka, criador do conceito de Agricultura natural.


Masanobu Fukuoka (2 de fevereiro de 1913 - 16 de agosto de 2008) foi um agricultor e microbiólogo japonês, autor das obras A Revolução de uma folha de Palha e A Senda Natural do Cultivo, onde apresenta suas propostas para o plantio direto assim como uma forma de agricultura que é conhecida por agricultura selvagem ou método Fukuoka.

Nos últimos 70-80 anos (desde a década de 40) utilizou o seu método para florestar zonas com tendência a desertificação. Na Tailândia, nas Filipinas, na Índia e em alguns países africanos transformou pequenas regiões desertificadas em áreas verdes. Também iniciou um projeto de reflorestamento na Grécia. Em 1988, recebeu o Prémio Magsaysay (Prémio Nobel da Paz no Extremo Oriente) por sua contribuição para o bem da humanidade. (daqui)
 

domingo, 21 de abril de 2024

"O que aquela noite me quis dar" - Poema de José Jorge Letria


Ilustração de Cláudia Salgueiro, Verde Liberdade 
 
 

 O que aquela noite me quis dar


Eu não estava em casa nessa noite, filho,
nem podia estar. Estava nas ruas com os soldados
que rumavam às rádios e aos quartéis, engalanados
de sombra e de júbilo, a ver o que aquela noite
ia dar, o que a nossa liberdade prometia ser.
E tu, filho, tinhas a idade rumorejante
desse Abril embalado por uma canção do Zeca.
Como posso eu explicar-te tudo aquilo
que tu nasceste para aprender, para viver?
Eu estava aquartelado no meu silêncio
de pétalas, sílabas e marés, no dédalo
de vozes embriagadas pelo vento,
na coragem errante das pelejas da infância
e pouco ou nada sabia do mistério desse mês
capaz de transformar em assombro as nossas vidas.

Sim, sou eu neste retrato antigo,
a receber em festa os exilados, os que chegavam
com grinaldas de cantigas e a flor de uma ilusão
bordada a sangue e espuma no capote das noturnas caminhadas.
Sim, sou eu a escrever a primeira reportagem
do primeiro de muitos dias em que o tempo
deixou de contar, em que os relógios
se tornaram corolas de paixão e riso
na lapela larga da alegria desta pátria.

Eu não estava em casa nessa noite, filho,
estava a afinar o coração pelo tom
das mais belas melodias que alguém pode aprender
para dar a quem ama a paz de um sono sem tormento.


José Jorge Letria, in “Abril 30 Anos Trinta Poemas”,
de José Fanha e José Jorge Letria.
Lisboa, Campo das Letras, 2004
 
 

sábado, 20 de abril de 2024

"Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta." - Poema de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa

 

Thalia Flora-Karavia (Greek artist, 1871–1960), River, s.d. 



Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.

XLV

Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.
Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.
Renque e o plural árvores não são coisas, são nomes.

Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,
Que traçam linhas de coisa a coisa,
Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,
E desenham paralelos de latitude e longitude
Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso!

7-5-1914


Alberto Caeiro, “O Guardador de Rebanhos”.
In Poemas de Alberto Caeiro.
Fernando Pessoa.
(Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). - 67.

“O Guardador de Rebanhos”. 1ª publ. in Athena, nº 4. Lisboa: Jan. 1925.



Thalia Flora-Karavia (Greek artist, 1871–1960), Self-portrait, s.d.
 
 
"Se um homem encara a vida de um ponto de vista artístico, seu cérebro passa a ser seu coração". 
 
"If a man treats life artistically, his brain is his heart." 
 
Oscar Wilde, The picture of Dorian Gray - Ward, Lock & Bowden, 1895 - 334 páginas.
 

sexta-feira, 19 de abril de 2024

"O Cão sem Plumas" - Poema de João Cabral de Melo Neto


Luiz Schlappriz, Paisagem de Recife - Rio Capibaribe, 1863. (daqui)
 


I. Paisagem do Capibaribe


A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.

Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.

Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.

E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.

Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.

Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.

Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.

Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que "as grandes famílias espirituais" da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).

Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?

Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?


II. Paisagem do Capibaribe


Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.

Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.

Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.

Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).

O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.

Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.

E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.

Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.

Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).

Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.

Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.

Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.

Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).


III. Fábula do Capibaribe

 
A cidade é fecundada
por aquela espada
que se derrama,
por aquela
húmida gengiva de espada.

No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.

(Como o rio era um cachorro,
o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada
no extremo do curso
— ou do mastro — do rio.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
que o mar está sempre
com seus dentes e seu sabão
roendo suas praias.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia.

O mar e seu incenso,
o mar e seus ácidos,
o mar e a boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
o mar e sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado
à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria).

O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.

Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.

Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.

Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos
onde, fria, a vida ferve.

Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
de fruta parada.

(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta:

A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anónima
de uma fruta
— trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada —.

Como gota a gota
até o açúcar,
gota a gota
até as coroas de terra;
como gota a gota
até uma nova planta,
gota a gota
até as ilhas súbitas
aflorando alegres).


IV. Discurso do Capibaribe


Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geleias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu voo).


João Cabral de Melo Neto,
"O Cão sem Plumas", 1950.



 
João Cabral de Melo Neto, "O Cão sem Plumas"

 
 RESUMO

'O cão sem plumas', primeiro poema de fôlego de João Cabral de Melo Neto, lançado em 1950, foi uma criação decisiva do jovem poeta, que na época vivia em Barcelona, com 30 anos. Este volume reúne também os quatro primeiros livros do poeta - 'Pedra do sono', 'Os três mal-amados', 'O engenheiro' e 'Psicologia da composição', além de seus primeiros poemas, escritos entre 1937 e 1940, mas só publicados décadas mais tarde. Juntas, essas obras nos mostram os passos iniciais do poeta, que atingiu muito cedo a maturidade artística, criando uma obra inigualável na poesia brasileira. (daqui)
 

quinta-feira, 18 de abril de 2024

"Voo" - Poema de Cecília Meireles


Warwick Goble (British illustrator of children's books, 1862 – 1943), The Star Lovers
Illustration of a Japanese fairy tale.
 
 

Voo

 
Alheias e nossas as palavras voam.
Bando de borboletas multicores, as palavras voam.
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
Viam as palavras como águias imensas.
Como escuros morcegos como negros abutres, as palavras voam.

Oh! alto e baixo em círculos e retas acima de nós,
em redor de nós as palavras voam.
E às vezes pousam.


Cecília Meireles, Melhores Poemas,
 Global Editora, 1984 - S.Paulo, Brasil