O que aquela noite me quis dar
Eu não estava em casa nessa noite, filho,
nem podia estar. Estava nas ruas com os soldados
que rumavam às rádios e aos quartéis, engalanados
de sombra e de júbilo, a ver o que aquela noite
ia dar, o que a nossa liberdade prometia ser.
E tu, filho, tinhas a idade rumorejante
desse Abril embalado por uma canção do Zeca.
Como posso eu explicar-te tudo aquilo
que tu nasceste para aprender, para viver?
Eu estava aquartelado no meu silêncio
de pétalas, sílabas e marés, no dédalo
de vozes embriagadas pelo vento,
na coragem errante das pelejas da infância
e pouco ou nada sabia do mistério desse mês
capaz de transformar em assombro as nossas vidas.
Sim, sou eu neste retrato antigo,
a receber em festa os exilados, os que chegavam
com grinaldas de cantigas e a flor de uma ilusão
bordada a sangue e espuma no capote das noturnas caminhadas.
Sim, sou eu a escrever a primeira reportagem
do primeiro de muitos dias em que o tempo
deixou de contar, em que os relógios
se tornaram corolas de paixão e riso
na lapela larga da alegria desta pátria.
Eu não estava em casa nessa noite, filho,
estava a afinar o coração pelo tom
das mais belas melodias que alguém pode aprender
para dar a quem ama a paz de um sono sem tormento.
José Jorge Letria, in “Abril 30 Anos Trinta Poemas”,
de José Fanha e José Jorge Letria.
Lisboa, Campo das Letras, 2004
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