quarta-feira, 29 de agosto de 2018

"Carta da árvore triste (a minha mulher)" - Poema de Al Berto


Auguste Toulmouche (1829-1890), The Letter, 1863


Carta da árvore triste 
(a minha mulher)


quando te levantares e abrires as janelas
a luz espalhar-se-á por toda a casa
cobrirá suavemente os objetos e o mobiliário
devolvendo-lhes os seus pesos formas e volumes
acordá-los-á para as quotidianas utilizações
e as petúnias em plástico na jarra da sala agitar-se-ão
à tua passagem em direção à cozinha
a cidade entrará repentinamente pela casa adentro
um grito nas traseiras sacode-te para o interior baço da manhã
buzinas sirenes
o telefone do vizinho atravessando as paredes
gritos de crianças derrapagens estridentes
outro telefone
uma porta que se fecha com estrondo
passas o olhar pelo jornal de ontem em cima da mesa
lês: um papagaio valioso com 32 anos
capaz de falar em 3 idiomas
foi morto por um jovem drácula de nome punk
Carlinhos Monóxido
o papagaio foi encontrado morto e de olhos saídos das órbitas
suspeita-se que...
o telefone parou de tocar
atiras o jornal para o caixote do lixo
reparas então que tudo o que permanecera na penumbra do sono
surge subitamente nítido e coberto de luz
como se tivesses encontrado uma fotografia esquecida
no fundo dalguma gaveta forrada a papel-manteiga
o dia instalar-se-á igual aos outros milhares de dias
com a banal crueldade dos acontecimentos
ouves rádio enquanto o café aquece
deixas queimar um pouco as torradas
passas os dedos pelos cabelos atados numa fitinha de chita
ajeitas o roupão para cobrires o peito desarrumado
depois
com a chávena de café na mão mexendo o açúcar
arrastando os chinelos de borracha virás até aqui
onde encontrarás esta carta

serão talvez nove horas
a rádio cospe anúncios de sabonetes e detergentes
o irritante pi do sinal horário
suspiras ao pegar no envelope
e apenas o teu suspiro te parecerá deslocado
de resto há muito que os teus dias são o decalque uns dos outros

escrevo-te enquanto não amanhece
a morte desperta em mim uma planta carnívora
o mundo parece despedaçar-se pelos desertos do delírio
pântano de lodo entre a pele da noite e a manhã
espaço de penumbras e de incertezas
onde podemos perder tudo e nada desejarmos ainda
por isso aproveito o pouco tempo que me sobeja da noite
este vácuo lento este visco dos espelhos
espessa escuridão agarrada à memória debaixo da pele
começa a asfixia o perigo de ter amado
no mais profundo segredo das noites devorávamo-nos
e um barco tremeluzia pelas cortina do quarto
como um presságio
nos objetos e a roupa atirada para cima das cadeiras
revelam-me a pouco e pouco a desolação em que tenho vivido

é-me desconhecida a vida fora dos sonhos e dos espelhos
tu brincavas com o sangue
a noite cola-se-me aos gestos
enquanto balbucio com dificuldade esta carta
onde gostaria de deixar explicadas coisas
não consigo
o silêncio é o único cúmplice das palavras que mentem
eu sei
comemos a lucidez do asfalto
mudámos de morada sempre que foi preciso recomeçar
vivíamos como nómadas sem nunca nos habituarmos à cidade
mas nada disto chegou para nos entendermos
o tempo transformou-se num relógio de argila
tudo esqueci dessas derivas
e pelo corpo de nossos desencontros diluíram-se os sonhos
a verdade é que nunca teria conseguido escrever-te
sob o peso da luz do dia
a excessiva claridade amputar-me-ia todo o desejo
cegar-me-ia tentaria cicatrizar as feridas reabertas pela noite
sou frágil planta noturna e triste
o sol ter-me-ia sido fatal
conduzir-me-ia ao entorpecimento da memória
e eu quero lembrar-me do teu rosto enquanto puder
o pior é que me falta tempo
sinto a manhã cada segundo mais próxima
ameaçadora e cruel
a luz arrastar-me-á para uma espécie de inércia inexplicável
o silêncio será definitivo
o sangue adormece nas veias e o desejo de permanecer
arremessar-me-ia para o esquecimento sem regresso
poderia até projectar um eventual regresso antes de partir
tenho a certeza de que parto para sempre
não haverá regresso nenhum
creio que se tornaria mais fácil escrever-te de longe
na deambulação por algum país cujo nome ainda não me ocorre
num país com sabor a tamarindos rodeados de mar
onde flores mirrassem ao entardecer e devagar
a paixão nascesse durante o sono
um país um pouco maior que este quarto
fingiria escrever-te para te enviar a minha nova morada
poderia assim queimar os dias no desejo de receber noticias
inventaria mesmo desculpas plausíveis
greves dos correios inexistentes terríveis epidemias
catástrofes
e na espera duma carta acabaria por me embebedar
beber muito e esperar
esperar
digo tudo isto mas já não te amo

não te amo
olho em redor pela última vez demoradamente
sinto-me como uma ilha cuja base se desprendeu do fundo do mar
naufraga algures com todo o seu peso diáfano de praias
uma sensação de limos frios desce às mãos
nunca fizeste caso da minha loucura
nunca vieste visitar-me quando estive internado nunca
o enfermeiro azul-sabonete chegava às cinco em ponto
injetava-me e sorria
atava-me debaixo de fortíssimas lâmpadas e sorria
esperei continuamente a tua visita
nunca vieste
ficava estendido inerte a gritar para dentro do corpo
as unhas abrindo sulcos nos lençóis sujos de mijo
e sabia que lá fora as avenidas esvaziavam-se
enquanto a morte se passeava no rosto despreocupado duma mulher
a carne rasgava-se-me ao simples contacto com os dedos
a dor invadia-me os órgãos do corpo que eu nunca vi
esperava-te
por cima da cama voava um corpo translúcido filiforme
passava rente ao peito agredia-me
quando eu tentava gritar afastava-me embatia
contra as paredes fazia frio e tu não vinhas
era inverno dentro e fora de mim
já não me lembrava de nenhum número de telefone
nenhum nome amigo
as pernas e as mãos eram de geleia fendiam-se
ao contacto de línguas de vidro invisível
nem sequer telefonaste
tentava caminhar e tudo o que conseguia era bater
com a cabeça no lavatório tentava lembrar-me do meu nome
e só um rápido movimento de barbatanas sujas me aflorou a boca
esperei que viesses ao entardecer
abrisses os braços para mim
esperava que surgisses como um osso de luz reconhecível
mesmo durante a noite esperei
que me prendesses de novo para que não se enchesse o quarto
de peixes de enxofre devoradores de paredes
e tu nunca vieste
mais nada me poderia acontecer
teu rosto chegava-me à memória como mancha de fumo
longínqua nódoa de água e sangue
nos pulsos
uma mancha e tu não chegaste

desculpa
o que te queria dizer talvez não fosse isto
a solidão turva-se-me de lágrimas
e nas pálpebras tremem visões do meu delírio
olho as fotografias de antigos desertos
corpos coerentes que fomos
bocas de papel amarelecido
onde a sede nunca encontrou a sua água
e às vezes ainda tenho sede de ti
mas na vertigem da viagem o coração galopa desordenadamente
no écran da memória acende-se a imagem da mulher que amei
quase nítida vejo-te sentada
à porta da rua bordando um pano de linho branco
só esta imagem transportarei comigo
embora nunca tenha conseguido saber o que bordavas
uma colcha? uma toalha? um sudário?
também nunca to perguntei
tinha tempo de sobra para o descobrir
vivíamos longe da cidade espreitavas a nesga de mar
como uma risca de azul cerúleo ao fim da rua

agora tens as traseiras enlameadas dos prédios para olhar o lixo
cães magros ganindo fogem
às vassouradas de porteiras húmidas de gordura e rolos na cabeça
tens carros estacionados
e todas as merdas que atiram fora pelas janelas
furtivamente durante a noite ou de madrugada
de tempos a tempos o som quase limpo da flauta do amola-tesouras
pergunto-me se a memória não será um espaço arquitetado
para abrigar os mais terríveis remorsos e o futuro

a noite corrói
balbucio algarismos nomeio peixes e flores de todos os mares
de todos os continentes os ventos os naufrágios por vir
o estrume humano a seiva viva das plantas os astros
uma a uma as aves
as cidades onde me perco e me reencontro
a esperança e a dúvida
o medo das antárticas cidades do sonho
ah como me recordo ainda de ti!
a noite é uma teia de sirenes que te acordam
e me esfrangalham os nervos
derrapas na insónia engoles comprimidos coloridos
para escapares ilesa à inquietante desolação do sexo
amávamo-nos
e para que não nos devorasse o silêncio
tartamudeava nomes de barcos: Delfim dos Trópicos Lírio dos Mares Ave do Tirreno
Virgem das Maresias Furacão de Delfos Limo de Zanzibar Quilha das Índias

não
não estou a enlouquecer
amávamo-nos mesmo quando bordavas e te ferias com a agulha
o sangue alastrava pelo pano
apressadamente bordavas algumas flores para o esconderes
compreendo hoje como era doloroso o nosso amor
onde terás esquecido o pano bordado?
tudo se perdeu
e na confusão do pouco tempo que me resta duvido
que nos tenhamos amado alguma vez

os dias tornaram-se vertiginosos quando mudámos para a cidade
assim que andavas de metro punhas-te a delirar com viagens
contavas-me aventuras de transiberiano
afinal sou eu que parto
e não irei do Campo Pequeno aos Anjos
por onde andará a paragem do meu transiberiano?
quem sabe se numa praia em que leões cansados de selva
vêm espreguiçar-se no crepúsculo do areal
quem sabe se o sonho ou a morte me conduzirá a algum porto
onde possa embarcar para não sei que outro porto

víamo-mos cada vez menos até que nos perdemos definitivamente
foi quando me assolaram as primeira visões
as nossas noites eram sempre mais longínquas uma da outra
a tua vida encheu-se afazeres mesquinhos
televisão cabeleireiros tricots intermináveis
conversas idiotas ao telefone concursos de rádio
furtivas saídas ao cinema do bairro e à leitaria da esquina
como se eu ligasse alguma coisa ao que fazias
eu já andava atravessando as noites
onde uma navalha oculta talhava um sexo branco no vento
abria nas pedras fulvas da praia um lugar para esconder
o corpo exausto
a febre esmagava-me
recolhia aos quartos de pensão
com as mãos e o peito cheios de pássaros de haxixe e de vinho
tinha medo
medo que certos hálitos fortes me fizessem estremecer
apesar de tudo avançava fascinado
trémulo noite dentro avançava sempre para me afastar
de ti e de mim o mais que pudesse

experimentei breves paixões tristes carícias
cantei com as lágrimas molhando as palavras sussurradas
no escuro do quarto cantava
a cidade de olhos entumecidos a fome entorpecia os gestos
atirando o corpo para o mais terrível abandono
internaram-me e tu nunca vieste visitar-me
não tenho vontade de voltar a falar sobre isto
vou partir sem saudades e sem dinheiro
vou partir sem levar um só objeto que me lembre teu corpo
levo apenas uma espécie de fogo no fundo de mim
uma ânsia que não sei explicar
lembro-me de quando enlaçava os braços em tuas pernas
uma nuvem de aves vinha pousar nos ossos
tua boca deixava na minha um travo de asas estelares
o sexo húmido perfumado
não não julgues que estou de novo a enlouquecer
para lá de meus olhos fechados com força o mundo acorda
cheio de ecos e de venenos
moves-te nesse mundo que eu recuso
aqui donde te escrevo apenas uma parte de mim ainda não partiu
era isto que te queria dizer
poderás começar a preparar a espera
pouco me importa que continues a polir móveis
e a mudares a água das jarras
ou a encerares o soalho dos corredores
podes varrer os quartos
varrer a cozinha vagarosamente
eu nunca mais entrarei em casa com os sapatos enlameados
e tu
gritando coisas que eu já não podia compreender
encontrarás provavelmente um ou uma amante que te ajude
a suportar o vazio e o tédio desta casa
e um dia acabarás por trocar novamente esse amor
pela limpeza maníaca dos móveis
pela máquina de lavar e o seu funcionamento
os eletrodomésticos sempre foram mais importantes do que eu
mas não terás que te preocupar mais com as tuas pedradas
nem com as bebedeiras nem com a música em altos berros
talvez consigas arranjar boas razões
para de quando em quando insultares o frigorífico
ou então mete-o de caras na cama
poderás partir um prato do serviço com violência
ou atirares com os cinzeiros à parede
estou-me nas tintas sempre me estive borrifando
para as tuas fúrias eletrodomésticas
e agora sozinha nada disto terá sentido
resta-te o tricot o infindável tricot da chatice e do silêncio
os dias quase sem ninguém
arrastar-se-ão contigo colada às vidraças olhando
olhando a chuva ensopar os papéis que se estampam
contra o asfalto imundo do estacionamento das traseiras
e o vento arrastará na primavera o cio
dos animais fechados nos quintais
então lembrar-te-ás de mim
os dias incendiar-se-ão no susto da interminável espera
mas hoje ao acordares
sentirás que te povoo ainda o corpo e a memória

não te deixo o número de telefone de meu amigo
não quero que com ele alguma vez venhas a falar
e tentes saber onde estou
vou partir sem rumo
por isso será inútil perguntar em que direção fui
por outro lado penso que o meu amigo
não estaria disposto a dividir segredos contigo
achas que deveria explicar esta amizade?
não posso não tenho coragem
ou talvez seja unicamente por pudor

a manhã começou a furar a noite
chega-me pelas frinchas das persianas
cheira a cimento molhado e a bolor
parto dentro de breves instantes
apenas levo a roupa que trago vestida e algum dinheiro
muito pouco
daquele que normalmente se destina às despesas da casa
espero que encontres neste ato um pretexto para me odiares
não levo recordações
a não ser daquelas que por mero acaso mencionei nesta carta
quase nada
poderás deitar fora a minha roupa
e todos os meus objetos pessoais
para onde vou não preciso deles
as fotografias queimei-as ontem à noite enquanto saíste
se telefonarem do emprego diz
que fui ver se ainda existem Índias por descobrir
ou que morri ou que me transformei
diz o que te der mais jeito
pensei deixar-te duas cartas para meteres no correio
mas no último instante eu mesmo as ponho no marco da esquina

quando te levantares e abrires as janelas
a luz espalhar-se-á por toda a casa
sem mim a casa amanhecerá doutra maneira
a ausência que já sou estando ainda aqui e a culpa
impregnar-se-ão em tudo quanto existiu entre nós
tornar-se-á insuportável continuares a viver sozinha
eu estarei longe
nas costas dalguma Etiópia
onde quantidades de lumes se avistam
longe
no cimo lúcido de meu próprio corpo contemplando
o fulgurante sangue dos astros
muito longe
no segredo desse lugar único
em que a escuridão da noite parece eterna claridade


O Medo
In Três Cartas da Memória das Índias
Assírio & Alvim, 2000


Auguste Toulmouche (1829-1890), Young woman in an interior, 1881


"Em todas as separações tem mais amargo quinhão de dores o que fica, que o que vai partir."



terça-feira, 28 de agosto de 2018

"A cidade" - Poema de Fagundes Varella


George Luks, Street Scene (Hester Street), 1905, oil on canvas, Brooklyn Museum



A cidade
[A meu predileto amigo o Sr. Dr. Betoldi]


A cidade ali está com seus enganos,
Seu cortejo de vícios e traições,
Seus vastos templos, seus bazares amplos,
Seus ricos paços, seus bordéis salões.

A cidade ali está: sobre seus tetos
Paira dos arsenais o fumo espesso,
Rolam nas ruas da vaidade os coches
E ri-se o crime à sombra do progresso.

A cidade ali está: sob os alpendres
Dorme o mendigo ao sol do meio-dia,
Chora a viúva em úmido tugúrio,
Canta na catedral a hipocrisia.

A cidade ali está: com ela o erro,
A perfídia, a mentira, a desventura...
Como é suave o aroma das florestas!
Como é doce das serras a frescura!

A cidade ali está: cada passante
Que se envolve das turbas no bulício
Tem a maldade sobre a fronte escrita,
Tem na língua o veneno e na alma o vício.

Não, não é na cidade que se formam
Os fortes corações, as crenças grandes,
Como também nos charcos das planícies
Não é que gera-se o condor dos Andes!

Não, não é na cidade que as virtudes,
As vocações eleitas resplandecem,
Flores de ar livre, à sombra das muralhas
Pendem cedo a cabeça e amarelecem.

Quanta cena infernal sob essas telhas!
Quanto infantil vagido de agonia!
Quanto adultério! Quanto escuro incesto!
Quanta infâmia escondida à luz do dia!

Quanta atroz injustiça e quantos prantos!
Quanto drama fatal! Quantos pesares!
Quanta fronte celeste profanada!
Quanta virgem vendida aos lupanares!

Quanto talento desbotado e morto!
Quanto gênio atirado a quem mais der!
Quanta afeição cortada! Quanta dúvida!
Num carinho de mãe ou de mulher!

Eis a cidade! Ali a guerra, as trevas,
A lama, a podridão, a iniquidade;
Aqui o céu azul, as selvas virgens,
O ar, a luz, a vida, a liberdade!

Ali medonhos, sórdidos alcouces,
Antros de perdição, covis escuros,
Onde ao clarão de baços candeeiros
Passam da noite os lêmures impuros;

E abalroam-se as múmias coroadas,
Corpos de lepra e de infeção cobertos,
Em cujos membros mordem-se raivosos
Os vermes pelas sedas encobertos!

Aqui verdes campinas, altos montes,
Regatos de cristal, matas viçosas,
Borboletas azuis, loiras abelhas,
Hinos de amor, canções melodiosas.

Ali a honra e o mérito esquecidos,
Mortas as crenças, mortos os afetos,
Os lares sem legenda, a musa exposta
Aos dentes vis de perros objetos!

Presa a virtude ao cofre dos banqueiros,
A lei de Deus entregue aos histriões!
Em cada rosto o selo do egoísmo,
Em cada peito um mundo de traições!

Depois o jogo, a embriaguez, o roubo,
A febre nos ladrilhos do prostíbulo,
O hospital, a prisão... Por desenredo
A imagem pavorosa do patíbulo!

Eis a cidade!... Aqui a paz constante,
Serena a consciência, alegre a vida,
Formoso o dia, a noite sem remorsos,
Pródiga a terra, nossa mãe querida!

Salve, florestas virgens! Rudes serras!
Templos da imorredoura liberdade!
Salve! Três vezes salve! Em teus asilos
Sinto-me grande, vejo a divindade!


Fagundes Varella, "Cantos meridionais", 1869.


segunda-feira, 27 de agosto de 2018

"Chuva da tarde" - Poema de António Sardinha


Leonid Afremov, Under my umbrella



Chuva da tarde


Chuva da tarde, – melodia mansa,
desejos vagos de chorar baixinho...
Voltei aos meus caprichos de criança,
- só quero, Amor, saber do teu carinho!

Chuva da tarde... Na poeira ardente
cai um frescor inesperado e calmo.
É um frescor que purifica a gente
- como a leitura mística dum Salmo!

Floresçam jasmineiros e açucenas,
- acuda-se à tristeza das raízes!
Que tu, Amor, com tuas mãos pequenas,
as guardes da estiagem e as batizes!

Meu coração doente remoçou-se,
quando o tocaram essas mãos piedosas...
Chuva da tarde, – enfermaria doce,
onde vão convalescer as rosas!

Chuva da tarde... Ao longo das varandas
reza mistérios lentos a noitinha.
Que bem não é sonhar em coisas brandas,
nas tuas brandas asas de andorinha!

Deixa que a sombra te emoldure a face,
- eleva no silêncio a tua voz!
O Cântico dos Cânticos renasce,
- diria até que se escreveu p'ra nós!




domingo, 26 de agosto de 2018

"Quero me casar" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Sir William Quiller Orchardson (Scottish, 1832-1910), Dolce Far Niente, 1872



Quero me casar


Quero me casar 
na noite na rua 
no mar ou no céu 
quero me casar. 

Procuro uma noiva 
loura morena 
preta ou azul 
uma noiva verde 
uma noiva no ar 
como um passarinho. 

Depressa, que o amor 
não pode esperar! 


 in 'Alguma Poesia'


segunda-feira, 20 de agosto de 2018

"Deus abençoe a América" - Poema de Harold Pinter


George LuksArmistice Night, 1918. Whitney Museum of American Art



Deus abençoe a América


Lá vão eles outra vez,
Os Ianques e as suas blindadas paradas
Entoando as suas baladas de alegria
A galope pelo vasto mundo
Louvando o Deus da América.

As sarjetas estão entupidas de mortos
Dos que não puderam alistar-se
Dos outros que se recusam a cantar
Dos que estão a perder a voz
Dos que esqueceram a música.

Os cavaleiros têm chicotes que ferem.
A tua cabeça rola para a areia
A tua cabeça é uma poça no lixo
A tua cabeça é uma nódoa no pó

Os teus olhos apagaram-se e o teu nariz
Fareja apenas o fedor dos mortos
E todo o ar morto está vivo
Com o cheiro do Deus da América.


Tradução de Pedro Marques, Jorge Silva Melo e Francisco Frazão,
 Quasi Edições, Junho 2003


Harold Pinter, 1992, by Justin Mortimer (b.1970)


(Harold Pinter foi laureado com o Nobel de Literatura em 2005.) 


domingo, 19 de agosto de 2018

"O último brinde" - Poema de Anna Akhmátova


Richard Edward Miller (American Impressionist painter, 1875 –1943), Cafe de Nuit, 1906.



O último brinde

 
Bebo à casa arruinada,
às dores de minha vida,
à solidão lado a lado
e a ti também eu bebo –

aos lábios que me mentiram,
ao frio mortal nos olhos,
ao mundo rude e brutal
e a Deus que não nos salvou. 


Tradução de Lauro Machado Coelho


quinta-feira, 16 de agosto de 2018

"Soneto de separação" - Poema de Vinicius de Moraes

SONETO DE SEPARAÇÃO
Inglaterra, 1938

De repente do riso fez-se o pranto 
Silencioso e branco como a bruma 
E das bocas unidas fez-se a espuma 
E das mãos espalmadas fez-se o espanto. 

De repente da calma fez-se o vento 
Que dos olhos desfez a última chama 
E da paixão fez-se o pressentimento 
E do momento imóvel fez-se o drama. 

De repente, não mais que de repente 
Fez-se de triste o que se fez amante 
E de sozinho o que se fez contente. 

Fez-se do amigo próximo o distante 
Fez-se da vida uma aventura errante 
De repente, não mais que de repente.


Vinicius de Moraes
[Oceano Atlântico, a bordo do Highland Patriot,
 a caminho da Inglaterra, setembro de 1938]


quarta-feira, 15 de agosto de 2018

"Mil anos há que busco a minha estrela" - Poema de Francisco Rodrigues Lobo


Edward Willis Redfield, Brooklyn Bridge at Night, 1909, oil on canvas



Mil anos há que busco a minha estrela 


Mil anos há que busco a minha estrela 
E os Fados dizem que ma têm guardada; 
Levantei-me de noite e madrugada, 
Por mais que madruguei, não pude vê-la. 

Já não espero haver alcance dela 
Senão depois da vida rematada, 
Que deve estar nos céus tão remontada 
Que só lá poderei gozá-la e tê-la. 

Pensamentos, desejos, esperança, 
Não vos canseis em vão, não movais guerra, 
Façamos entre os mais uma mudança: 

Para me procurar vida segura 
Deixemos tudo aquilo que há na terra, 
Vamos para onde temos a ventura. 


in 'Fénix Renascida'


terça-feira, 14 de agosto de 2018

"Cântico do Calvário" - Poema de Fagundes Varella


Abbott Fuller Graves, The Offering


Cântico do calvário

[À memória de meu Filho morto a 11 de dezembro de 1863]

Eras na vida a pomba predileta 
que sobre um mar de angústias conduzia 
o ramo da esperança!... eras a estrela 
que entre as névoas do inverno cintilava 
apontando o caminho ao pegureiro!... 
Eras a messe de um dourado estio!... 
Eras o idílio de um amor sublime!... 
Eras a glória, a inspiração, a pátria, 
o porvir de teu pai! - Ah! no entanto, 
Pomba - varou-te a flecha do destino! 
Astro - engoliu-te o temporal do norte! 
Teto, caíste! Crença, já não vives!

Correi, correi, oh! lágrimas saudosas, 
legado acerbo da ventura extinta, 
dúbios archotes que a tremer clareiam 
a lousa fria de um sonhar que é morto! 
Correi! Um dia vos verei mais belas 
que os diamantes de Ofir e de Golconda 
fulgurar na coroa de martírios 
que me circunda a fronte cismadora! 
São mortos para mim da noite os fachos, 
mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas, 
e à vossa luz caminharei nos ermos! 
Estrelas do sofrer, gotas de mágoa, 
brando orvalho do céu! sede benditas! 
Oh! filho de minh'alma! Última rosa 
que neste solo ingrato vicejava!
Minha esperança amargamente doce! 
quando as garças vierem do ocidente, 
Buscando um novo clima onde pousarem, 
não mais te embalarei sobre os joelhos, 
nem de teus olhos no cerúleo brilho 
acharei um consolo a meus tormentos! 
Não mais invocarei a musa errante 
nesses retiros onde cada folha 
era um polido espelho de esmeralda 
que refletia os fugitivos quadros 
dos suspirados tempos que se foram! 
Não mais perdido em vaporosas cismas 
escutarei ao pôr-do-sol, nas serras, 
vibrar a trompa sonorosa e leda 
do caçador que aos lares se recolhe!

Não mais! A areia tem corrido, e o livro 
de minha infanda história está completo. 
Pouco tenho de andar! Um passo ainda, 
e o fruto de meus dias, negro, podre, 
do galho eivado rolará por terra! 
Ainda um treno! e o vendaval sem freio 
ao soprar quebrará a última fibra 
da lira infausta que nas mãos sustenho! 
Tornei-me o eco das tristezas todas 
que entre os homens achei! o lago escuro 
onde ao clarão dos fogos da tormenta 
miram-se as larvas fúnebres do estrago! 
Por toda a parte em que arrastei meu manto 
deixei um traço fundo de agonias!... 

Oh! Quantas horas não gastei, sentado 
sobre as costas bravias do Oceano, 
esperando que a vida se esvaísse 
como um floco de espuma, ou como o friso 
que deixa na água o lenho do barqueiro! 
Quantos momentos de loucura e febre 
não consumi perdido nos desertos, 
escutando os rumores das florestas, 
e procurando nessas vozes torvas 
distinguir o meu cântico de morte!

Quantas noites de angústias e delírios 
não velei, entre as sombras espreitando 
a passagem veloz do gênio horrendo 
que o mundo abate ao galopar infrene 
do selvagem corcel?... E tudo embalde! 
A vida parecia ardente e doida 
agarrar-se a meu ser!... E tu tão jovem, 
tão puro ainda, ainda na alvorada, 
ave banhada em mares de esperança, 
Rosa em botão, crisálida entre luzes, 
foste o escolhido na tremenda ceifa! 
Ah! quando a vez primeira em meus cabelos 
senti bater teu hálito suave; 
quando em meus braços te cerrei, ouvindo 
pulsar-te o coração divino ainda; 
quando fitei teus olhos sossegados, 
abismos de inocência e de candura, 
e baixo e a medo murmurei: meu filho! 
Meu filho! frase imensa, inexplicável, 
grata como o chorar de Madalena 
aos pés do Redentor... ah! pelas fibras 
senti rugir o vento incendiado 
desse amor infinito que eterniza 
o consórcio dos orbes que se enredam 
dos mistérios do ser na teia augusta 
que prende o céu à terra e a terra aos anjos! 
Que se expande em torrentes inefáveis 
do seio imaculado de Maria!

Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem! 
E de meu erro a punição cruenta 
na mesma glória que elevou-me aos astros, 
chorando aos pés da cruz, hoje padeço! 

O som da orquestra, o retumbar dos bronzes, 
a voz mentida de rafeiros bardos, 
torpe alegria que circunda os berços 
quando a opulência doura-lhes as bordas, 
não te saudaram ao sorrir primeiro, 
clícia mimosa rebentada à sombra! 
Mas ah! se pompas, esplendor faltaram-te, 
tiveste mais que os príncipes da terra... 
Templos, altares de afeição sem termos! 
Mundos de sentimento e de magia! 
Cantos ditados pelo próprio Deus! 
Oh! Quantos reis que a humanidade aviltam 
e o gênio esmagam dos soberbos tronos, 
trocariam a púrpura romana 
por um verso, uma nota, um som apenas 
dos fecundos poemas que inspiraste! 

Que belos sonhos! Que ilusões benditas! 
do cantor infeliz lançaste à vida, 
arco-íris de amor! luz da aliança, 
calma e fulgente em meio da tormenta! 
De exílio escuro a cítara chorosa 
surgiu de novo e às virações errantes 
lançou dilúvios de harmonia! O gozo 
ao pranto sucedeu, as férreas horas 
em desejos alados se mudaram... 
Noites fulgiam, madrugadas vinham, 
mas sepultados num prazer profundo 
não te deixava o berço descuidoso, 
nem de teu rosto meu olhar tirava, 
nem de outros sonhos que dos teus vivia! 

Como eras lindo! Nas rosadas faces 
tinhas ainda o tépido vestígio 
dos beijos divinais! nos olhos langues 
brilhava o brando raio que acendera 
a bênção do Senhor quando o deixaste! 
Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos, 
filhos do éter e da luz, voavam, 
riam-se alegres, das caçoilas níveas, 
celeste aroma te vertendo ao corpo! 
E eu dizia comigo: - teu destino 
será mais belo que o cantar das fadas 
que dançam no arrebol, mais triunfante 
que o sol nascente derribando ao nada 
muralhas de negrume!... Irás tão alto 
como o pássaro-rei do Novo Mundo!

Ai! doido sonho!... Uma estação passou-se, 
e tantas glórias, tão risonhos planos 
desfizeram-se em pó! O gênio escuro 
abrasou com seu facho ensangüentado 
meus soberbos castelos. A desgraça 
sentou-se em meu solar, e a soberana 
dos sinistros impérios de além-mundo 
com seus dedos reais selou-te a fronte! 
Inda te vejo pelas noites minhas, 
em meus dias sem luz vejo-te ainda, 
creio-te vivo, e morto te pranteio!... 

Ouço o tanger monótono dos sinos, 
e cada vibração contar parece 
as ilusões que murcham-se contigo! 
Escuto em meio de confusas vozes, 
cheias de frases pueris, estultas, 
o linho mortuário que retalham 
para envolver teu corpo! Vejo esparsas 
saudades e perpétuas, sinto o aroma 
do incenso das igrejas, ouço os cantos 
dos ministros de Deus que me repetem 
que não és mais da terra!... E choro embalde!... 
Mas não! Tu dormes no infinito seio 
do criador dos seres! Tu me falas 
na voz dos ventos, no chorar das aves, 
talvez das ondas no respiro flébil! 
Tu me contemplas lá do céu, quem sabe? 
No vulto solitário de uma estrela... 
E são teus raios que meu estro aquecem! 
Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho! 
Brilha e fulgura no azulado manto! 
Mas não te arrojes, lágrima da noite, 
nas ondas nebulosas do ocidente! 
Brilha e fulgura! Quando a morte fria, 
sobre mim sacudir o pó das asas, 
escada de Jacó serão teus raios 
por onde azinha subirá minh'alma. 


em "Cantos e Fantasias", 1865.


Abbott Fuller Graves, From the Terrace (The Boston State House in the Distance)


"Morrer não é acabar, é a suprema manhã."


segunda-feira, 13 de agosto de 2018

"Aprendi a viver com simplicidade, com juízo" - Poema de Anna Akhmátova


Federico Andreotti, The Favorite, 1890



Aprendi a viver com simplicidade, com juízo


Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até a noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.
Enquanto no penhasco murmuram as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.
Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandecente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.
Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta,
é bem possível que eu sequer te ouça.


1912

tradução de Lauro Machado Coelho


sábado, 11 de agosto de 2018

"Dentro da noite" - Poema de Olavo Bilac


Auguste Toulmouche, Dolce Far Niente, 1877



Dentro da noite


Ficas a um canto da sala,
Olhas-me e finges que lês...
Ainda uma vez te ouço a fala,
Olho-te ainda uma vez;
Saio... Silêncio por tudo:
Nem uma folha se agita;
E o firmamento, amplo e mudo,
Cheio de estrelas palpita.
E eu vou sozinho, pensando
Em teu amor, a sonhar,
No ouvido e no olhar levando
Tua voz e teu olhar.

Mas não sei que luz me banha
Todo de um vivo clarão;
Não sei que música estranha
Me sobre do coração.
Como que, em cantos suaves,
Pelo caminho que sigo,
Eu levo todas as aves,
Todos os astros comigo.
E é tanta essa luz, é tanta
Essa música sem par,
Que nem sei se é a luz que canta,
Se é o som que vejo brilhar.

Caminho em êxtase, cheio
Da luz de todos os sóis,
Levando dentro do seio
Um ninho de rouxinóis.
E tanto brilho derramo,
E tanta música espalho,
Que acordo os ninhos e inflamo
As gotas frias do orvalho.
E vou sozinho, pensando
Em teu amor, a sonhar,
No ouvido e no olhar levando
Tua voz e teu olhar.

Caminho. A terra deserta
Anima-se. Aqui e ali,
Por toda parte desperta
Um coração que sorri.
Em tudo palpita um beijo,
Longo, ansioso, apaixonado,
E um delirante desejo
De amar e de ser amado.
E tudo, — o céu que se arqueia
Cheio de estrelas, o mar,
Os troncos negros, a areia,
— Pergunta, ao ver-me passar:

"O Amor, que a teu lado levas,
A que lugar te conduz,
Que entras coberto de trevas,
E sais coberto de luz?
De onde vens? Que firmamento
Correste durante o dia,
Que voltas lançando ao vento
Esta inaudita harmonia?
Que país de maravilhas,
Que Eldorado singular
Tu visitaste, que brilhas
Mais do que a estrela polar?"

E eu continuo a viagem,
Fantasma deslumbrador,
Seguido por tua imagem,
Seguido por teu amor.
Sigo... Dissipo a tristeza
De tudo, por todo o espaço,
E ardo, e canto, e a Natureza
Arde e canta, quando eu passo,
— Só porque passo pensando
Em teu amor, a sonhar,
No ouvido e no olhar levando
Tua voz e teu olhar...




sexta-feira, 10 de agosto de 2018

"Quero ir onde a promessa quebrou" - Poema de Tiago Nené




Quero ir onde a promessa quebrou


Quero ir onde a promessa quebrou, 
ao momento em que as mãos se apagaram. 
Foi breve o acordar na lembrança de outro corpo, 
o regresso do subúrbio da vida 
desviou o coração para a janela etérea 
onde inventarás uma nova derrota, uma bela e simples derrota, 
onde não existirá um sacrifício, uma fuga de vidro. 
E eu falo contigo agora, 
agora que o filme te cobre os olhos, agora 
que o âmago afunda no instinto das pequenas coisas, agora 
que desenho os materiais que resistem 
à tua habituação cintilante e eterna. 
Um dia li a tua mão, escapando-se-me o corpo, 
cresci nessa imagem de astros, suspendi 
os meus recursos de espectador, 
falhei nas fendas da cabeça. E hoje 
volto ao primeiro momento onde a promessa quebrou, 
ao fulgor do primeiro exercício inaugural 
da diferença entre o frio e o quente, 
onde o vento corta as ruas 
e os pássaros cantam o teu nome. 
in 'Este Obscuro Objecto do Desejo'


domingo, 5 de agosto de 2018

"Aos Mesmos" - Poema de Manuel Maria Barbosa du Bocage


Albert Guillaume, Les retardataires, 1914, Musée Carnavalet



Aos Mesmos


De insípida sessão no inútil dia 
Juntou-se do Parnaso a galegage; 
Em frase hirsuta, em gótica linguage, 
Belmiro um ditirambo principia. 

Taful que o português não lhe entendia, 
Nem ao resto da cómica salsage, 
Saca o soneto que lhe fez Bocage, 
E conheceu-se nele a Academia. 

Dos sócios o pior silvou qual cobra, 
Desatou-se em trovões, desfez-se em raios, 
Dando ao triste Bocage o que lhe sobra. 

Fez na calúnia vil cruéis ensaios, 
E jaz com grandes créditos a obra 
Entre mãos de marujos e lacaios. 


in 'Rimas'


sábado, 4 de agosto de 2018

"Insinceridade" - Poema de Vasco Graça Moura


'The Flatiron Building at Night' in a photograph of 1904, taken by Edward Steichen



Insinceridade


Quis-nos aos dois enlaçados 
meu amor ao lusco-fusco 
mas sem saber o que busco: 
há poentes desolados 
e o vento às vezes é brusco 

nem o cheiro a maresia 
a rebate nas marés 
na costa de lés a lés 
mais tempo nos duraria 
do que a espuma a nossos pés 

a vida no sol-poente 
fica assim num triste enleio 
entre melindre e receio 
de que a sombra se acrescente 
e nós perdidos no meio 

sem perdão e sem disfarce, 
sem deixar uma pegada 
por sobre a areia molhada, 
a ver o dia apagar-se 
e a noite feita de nada 

por isso afinal não quero 
ir contigo ao lusco-fusco, 
meu amor, nem é sincero 
fingir eu que assim te espero, 
sem saber bem o que busco. 


in "Antologia dos Sessenta Anos"