domingo, 31 de dezembro de 2023

"Os Girassóis" - Poema de José Tolentino Mendonça

 
 
Aldo Parmigiani (Pintor italiano, n. 1935)



Os Girassóis


Às vezes ouves-me chorar
não é fácil deixar a tua mão

De quarto em quarto
quem espera
o terror de não haver ninguém

As paisagens alteram-se sem resolução
narrativas imortais desaparecem
e os girassóis assim
vulneráveis a desconhecidas ordens

Tu estás tão perto
mas sofro tanto
porque não vejo
como possa falar de ti
entre dois ou três séculos


José Tolentino de Mendonça
,
De Igual para Igual, Assírio & Alvim, 2001.
 

 
José Tolentino de Mendonça, "De Igual para Igual"
Assírio & Alvim, 2001 


Sinopse


“O tempo, a sua irreversibilidade, a sua pavorosa infinitude, é a matéria de que se faz a nova recolha poética de José Tolentino Mendonça, De Igual para Igual. Talvez não a matéria, talvez apenas (e é imenso) o argumento sobre que se constrói esta breve mas intensa declinação da memória, ou dos seus filamentos suspensos do tempo. São como os fios de cabelo de um rapaz, mas estes não se perdem, reencontram-se no exercício necessário, porém insuficiente, das palavras ("um verso é sempre tão pouco / em redor do que se pode observar").

O que diz então a poesia? Duas ou três coisas, a unanimidade do amor, a secreta imanência da verdade, a incomensurabilidade do tempo. E o lugar da poesia nisto tudo, e no mundo, forma frágil e célere (oposta a "essa forma de lentidão: a leitura"), ela própria prisioneira da desolada impotência do seu gesto ("Não uses palavras / se me segredas / aquilo que no fundo das nossas mentiras / se tornou uma verdade sublime"). Porque a poesia pode não ser mais que um exercício de nomeação, de convocação do que ficou, primeiro esquecido, depois recordado, da passagem do tempo, e nisso, ela é um instrumento da mesma contingência temporal que denuncia e combate.

A poesia de José Tolentino Mendonça diz-se insuficiente, mas também necessária, quanto mais não seja para rasgar a via do reconhecimento das meras evidências: "a vida por si mesma não se pode escutar demasiado / a vida é uma questão de tempo", "o tempo era maior / do que se dizia", "tão absolutamente só / o nosso coração bate". Ela é, assim, um resíduo de pureza, de simples reminiscência, de evocação de "coisas que não precisam de nome», porventura porque são realmente inomináveis, meras cintilações alojadas no coração ("de que vale um coração / se não aspira à verdade / soberano").

Há nesta poesia uma tal intensidade, um tal despojamento, que não poucas vezes ela se aventura pelos caminhos arriscados da inocência. Mas a sua força reside precisamente aí, nesse risco assumido de um dizer simples e sem artifício, sem sonoridade nem quase espessura, um grito disfarçado de murmúrio, a romper a noite em que se aventura o coração.

"A verdade que pertence aos gestos / ao menor dos nossos gestos / antes de chegarem palavras que nos socorram / às vezes é a verdade de um amor". Para o dizer, é preciso auscultar o mais fundo de nós mesmos, esse ponto, lá, a que só alguns chegam, por vezes em um só verso, outras vezes na sua obra inteira. É um privilégio, que é mais feito de sofrimento do que de glória – mas poucos o sabem. José Tolentino Mendonça pertence ao grupo dos que buscam, e quase sempre encontram, em cada um dos seus poemas, essa verdade secreta de si mesmo”.

António Mega Ferreira (daqui)

 

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

"Ode ao Inverno" - Poema de Pablo Neruda



Edvard Munch
 (Norwegian painter, 1863–1944), Building Workers in the Snow, 1920.
Óleo sobre tela, 71 x 100 cm, Munch Museum, Oslo, Noruega



Ode ao Inverno 


Inverno, algo entre nós
existe,
colinas sob a chuva,
galopes
no vento,
janelas
onde se amontoaram as tuas vestes,
a tua camisa de ferro,
as tuas calças molhadas,
o teu cinturão de couro transparente. 

Inverno,
para alguns
és neblina
sobre as represas,
clamorosa clâmide,
rosa branca,
corola de neve,
mas para mim, Inverno,
és
um cavalo,
sobe-te do focinho a névoa,
gotas de chuva caem-te
da cauda,
rajadas elétricas
são as tuas crinas,
galopas
desenfreadamente
salpicando de lama
o viandante,
olhamos
e já passaste,
não te vemos a cara,
não sabemos
se são de água de mar
ou de cordilheira
os teus olhos, passaste
como a cabeleira
de um relâmpago,
não ficou ilesa uma árvore sequer,
as folhas
amontoaram-se
no solo,
os ninhos
ficaram esgarçados
no cimo das copas,
enquanto tu galopavas
na luz moribunda do planeta. 

És frio, inverno,
e os teus cachos
de neve negra e água
no telhado
perfuram
as casas
como agulhas,
ferem como facas oxidadas.
Nada te detém. 

Começam
os ataques de tosse, saem as crianças
com os sapatos encharcados,
nas camas a febre
é como
a vela dum navio
incendiada,
a cidade dos pobres
navegando para a morte,
a mina
escorregadia,
a batalha do vento.

Desde então,
inverno, passei a conhecer
a tua esburacada roupa
e o silvo
da tua buzina entre as araucárias
quando clamas
e choras,
cavaca na chuva louca,
desatado trovão
ou coração de neve.

O homem
na areia agigantou-se,
cobriu-se de tormenta,
o sal e o sol vestiram
de seda salpicada
o corpo da nova nadadora. 

Mas
quando chega o inverno
o homem
transforma-se num pequeno novelo
que caminha
com funerário guarda-chuva,
cobre-se
com asas impermeáveis,
torna-se húmido
e mole
como uma papa, refugia-se
nas igrejas,
ou lê notícias necrológicas. 

Entretanto,
em cima,
entre os carvalhos,
na cabeça das nevadas,
no litoral,
tu reinas
com a tua espada,
com o teu gelado violino,
com as plumas que esvoaçam
do teu peito indomável. 

Qualquer dia
encontrar-nos-emos,
quando
a grandeza
da tua formosura
não se abater
sobre o homem,
quando
deixares de perfurar
o teto
do meu irmão,
quando
puder amparar a mais alta
brancura do teu espaço
sem ser mordido,
passarei saudando
a tua majestade desatada. 

Descobrirei a cabeça
sob a mesma chuva
da minha infância
porque confiarei
nas tuas águas:
elas lavam o mundo,
arrastam os papéis,
trituram a pequena
imundice dos dias,
lavam
o rosto da terra,
as tuas mãos lavam,
e descem até ao fundo
lá onde
a primavera
dorme. 

Tu fá-la estremecer, feres
as suas pernas transparentes,
desperta-la, molha-la,
começa a trabalhar,
varre as folhas mortas,
reúne a sua fragrante
mercadoria,
sobe as escadas
das árvores
e de repente vemo-la
no cimo
com o seu novo vestido
e os seus antigos olhos verdes.
 

Pablo Neruda,
in "Odes Elementares", 1954.
Tradução de José Bento
 
 
Edvard Munch, From Saxegårdsgate, c. 1882, oil on canvas, 
Lillehammer Art Museum, Lillehammer 


"Que fogo poderia se igualar a um raio de sol num dia de inverno?"
 
"What fire could ever equal the sunshine of a winter's day [...]"

Henry David Thoreau
, Excursions - Página 115 - Ticknor and Fields, 1863
 

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

"Natal" - Poema de Mauro Mota

 

 
Mark Grantham (Canadian artist, b. 1966), Christmas Eve, 2021
 
 
 
Natal
 

Natal, antes e agora
imutável. Feliz
noite branca sem hora
no pátio da Matriz.

Natal: os mesmos sinos
de repiques iguais.
Brinquedos e meninos,
Natal de outros natais.

A Banda, vozes, passos
da multidão fiel.
Tudo nos seus espaços,
o mundo e o carrossel.

Tudo, menos o andejo
homem que se conclui.
Olho-me, e não me vejo,
não sei para onde fui.


Mauro Mota, in Itinerário 
 

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

"Três no Café" - Poema de Carlos Drummond de Andrade


Albert Anker (Swiss painter and illustrator, 1831-1910), Still life with coffee, 1882.
 

 
Três no Café 

 
No café semideserto
a mosca tenta
pousar no torrão de açúcar sobre o mármore.
Enxoto-a. Insiste. Enxoto-a.
A luz é triste, amarela, desanimada.
Somos dois à espera
de que o garçom, mecânico, nos sirva.
Olho para o companheiro até a altura da gravata.
Não ouso subir ao rosto marcado.
Fixo-me na corrente do relógio
presa ao colete; velhos tempos.
Pouco falamos. O som das xícaras,
quase uma conversa. Tão raro
assim nos encontrarmos frente a frente
mais que por minutos.
Mais raro ainda,
na banalidade do café.
A mosca volta.
Já não a espanto. Queda entre nós,
partícipe de mútuo entendimento.
Então, é este o mesmo homem
de antes de eu nascer
e de amanhã e sempre?
Curvado.
Seu olhar é cansaço de existência,
ou sinto já (nem pensar) a sua morte?
Este estar juntos no café,
não hei de esquecê-lo nunca, de tão seco
e desolado — os três
eu, ele, a mosca —:
imagens de mera circunstância
ou do obscuro
irreparável sentido de viver.


Carlos Drummond de Andrade, Boitempo, 1986

Albert Anker, Still life with coffee, 1877.



Café
 
As primeiras referências ao café, bebida que se obtém após a torrefação e moagem da semente de cafezeiro, surgiram por volta do ano 800 a. C., mas algumas lendas árabes já aludiam a uma misteriosa bebida preta com poderes estimulantes. A planta do café surgiu em África, na região etíope de Kaffa, de onde se espalhou pelo Iémen, Arábia e Egito.

Uma história curiosa, de 1400, fala de um pastor do Iémen que viu umas cabras a comerem umas pequenas cerejas de um arbusto, a semente do cafezeiro, e a ficarem excitadas. Contou tudo a um monge e este, no seu convento, experimentou ferver os grãos torrados e moídos destas bagas e fez uma bebida fortificante que afastava o sono.

Em 1475, surge em Constantinopla a primeira loja de café, produto que para se espalhar pelo Mundo beneficiou, primeiro, da expansão do Islamismo e, numa segunda fase, do desenvolvimento dos negócios proporcionado pelos Descobrimentos.
Por volta de 1570, surgiram na Europa, na cidade italiana de Veneza, porto de entrada para quem vinha pelo Mediterrâneo, os primeiros comerciantes a vender café, introduzindo assim esta nova bebida nos hábitos ocidentais. É em Inglaterra, em 1652, que abre a primeira casa de café do continente europeu, seguindo-se a Itália dois anos depois.

Em 1672, cabe a Paris inaugurar a sua primeira casa de café. É precisamente em França que, pela primeira vez, se adiciona açúcar ao café, o que acontece durante o reinado de Luís XIV, a quem haviam oferecido um cafezeiro em 1713.
O mercado cresceu e exigia mais produto, mas as elevadas taxas cobradas nos portos de origem levaram os comerciantes e os cientistas a tentarem plantar café noutros territórios. Os holandeses optaram pelas suas colónias ultramarinas (Batavia e Java), os franceses investiram na Martinica (1723) e mais tarde nas Antilhas, enquanto os ingleses, os espanhóis e os portugueses tentaram a sua sorte nas zonas tropicais da Ásia e da África.

As primeiras plantações dos portugueses no Brasil foram feitas na zona norte, em 1727, mas as condições climatéricas não eram as melhores e, entre 1800 e 1850, as regiões escolhidas foram o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, onde o sucesso foi total. O negócio do café começou, assim, a desenvolver-se de tal forma que se tornou na mais importante fonte de receitas do Brasil.

O invento da cafeteira, já em finais do século XVIII, por parte do conde de Rumford, deu um grande impulso à proliferação da bebida, ajudada ainda por uma outra cafeteira de 1802, esta da autoria do francês Descroisilles, onde dois recipientes eram separados por um filtro.

Em 1822, uma outra invenção surge em França, a máquina de café expresso, embora ainda não passasse de um protótipo. Em 1855, é apresentada numa exposição, em Paris, uma máquina mais desenvolvida, mas foi em Itália que a aperfeiçoaram. Assim, coube aos italianos, apenas em 1905, comercializar a primeira máquina expresso, precisamente no mesmo ano em que foi inventado um processo que permitia descafeinar o café. Em 1945, logo após o final da Segunda Guerra Mundial, a Itália continua a dar cartas em termos de expressos e Giovanni Gaggia apresenta uma máquina onde a água passa pelo café depois de pressionada por uma bomba de pistão. O sucesso foi notório.

Entretanto, nos finais da década de 30, o Brasil tinha-se visto a braços com um excedente de produção, que foi resolvido com ajuda da Nestlé, quando esta inventou o café instantâneo. Superada essa crise, o Brasil tornou-se o maior produtor mundial de café, embora nos últimos anos tenha de concorrer com outros países da América Latina.

O café é, atualmente, a bebida mais consumida no Mundo. O tipo de café mais comum é o arábica, representando cerca de três quartos da produção mundial, seguido do robusta, que tem o dobro da cafeína contida no primeiro. (daqui)

domingo, 10 de dezembro de 2023

"Suposição teórica" - Poema de Dalila Teles Veras


 1881–1918), Figure, 1913, Amon Carter Museum.

 
 
Suposição teórica

 para guedo gallet

se
de oxigénio, carbono, hidrogénio, azoto, nitrogénio, cálcio, fósforo,
potássio, enxofre, sódio, cloro, magnésio, ferro, cobre, zinco, selénio,
molibdénio, flúor, iodo, manganês, lítio, cobalto, estrôncio, alumínio,
silício, chumbo, arsénio, vanádio e outras partículas químicas
é composto meu corpo
se
recebi todo esse material de um bilhão de estrelas (as identificadas)
se
esta minha complexa, mas minúscula máquina
há setenta invernos
diuturnamente
trabalha e pensa e cria e procria
não devo, não posso ser um mero acidente biológico

quando, estrela ínfima
minha luz pessoal
por fim
explodir
nada acidental, essa poeira
haverá de formar outras
outras
e
outras
dalilas
cósmicas
integradas
intergalácticas


Dalila Teles Veras, in "Tempo em fuga".
 

sábado, 9 de dezembro de 2023

"Telha de vidro" - Poema de Rachel de Queiroz

 

Alfredo Vieira
 (Artista plástico brasileiro, n. 1969), "Entre Folhas", óleo sobre tela, 2023.
 
 

Telha de vidro



Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que - coitados - tão velhos
só hoje é que conhecem a luz doa dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.

Que linda camarinha! Era tão feia!
- Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você na experimenta?
A moça foi tão vem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!


Rachel de Queiroz
 
 
Alfredo Vieira, "Chegada na Roça", óleo sobre tela, 2023.


“O povo bom e simples, suas cores vistosas, pelo campo… Tão Brasil!” 

Carlos Drummond de Andrade, Viola de bolso novamente encordada – p. 67,
 Publicado por J. Olympio, 1955 – 125 páginas 
 

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

"Todas as águas" - Poema de Lya Luft


Thomas Francis Dicksee (British painter, 1819–1895), Distant Thoughts, 1886


 Todas as águas

Quando pensei que estava tudo cumprido,
havia outra surpresa: mais uma curva
do rio, mais riso e mais pranto.

Quando calculei que tudo estava pago,
anunciaram-se novas dívidas e juros,
o amor e o desafio.

Quando achei que estava serena,
os caminhos se espalmaram
como dedos de espanto

em cortinas aflitas. E eu espio,
ainda que o olhar seja grande
e a fresta pequena.


Lya Luft, em "Para não dizer adeus", 2005.
 

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

“Cantiga de Amor” - Poema de Eduarda Chiote


Almada Negreiros (Artista multidisciplinar português, 1893-1970),
Bailarina
, c. 1948. Guache e grafite sobre papel, 53 × 37 cm.



Cantiga de Amor

 
Ó rosa dos sete ventos, por sete ventos
rodada,
defende-me
dos ladrões,
dos espantos doidos,
dos ventos,
e de mim. De mim também
e dos meus ventos
chorados.

Ó rosa dos sete espinhos
e no rochedo
cravados,
limpa o mar de todo o sangue, 
limpa a praia marinheira
das ondas do meu
pecado.

Limpa o coração deserto e a inocência do menino
trespassada pelo vidro da garrafa
arremessada
por veleiro sobre areia
adormecida,
por soltos cabelos
de água.

Ó rosa dos sete espinhos, por sete espinhos
rodada, traz-me o frio do céu limpo,
as nuvens da trovoada,
nos olhos do meu amor
e nas ruínas
abertas
de uma casa destelhada.

Ó rosa dos sete estrelos, por sete estrelos
rodada,
traz contigo todo o luto
desta música
inventada
no seu boné de marujo
ou no corpo não impresso de uma nota
descuidada.

Ó rosa dos sete estrelos, ó silêncio enevoado,
leva contigo
o poema, leva contigo
a palavra.
Leva contigo
o poeta
numa pérola de neve
e pela dor
fustigada
ó rosa clara de morte
ó nome do meu
amado.


Eduarda Chiote
, A Musa ao Espelho: Pathos
Pequena antologia quase inédita de poesia contemporânea portuguesa
(livro+cd), Gailivro, 2007


Descrição

A Musa ao Espelho
apresenta um espetáculo intenso e eclético. Os poemas são interpretados por José Carlos Tinoco, acompanhado por Juca Rocha (piano), Ianina Khmélik (violino), Vanessa Pires (violoncelo) e Fátima Santos (acordeão). Os temas compostos ou adaptados para cada um dos poemas acentuam a ambiência do texto, transportando o espetador através de uma viagem imaginária, visitando diferentes espaços físicos e emocionais. Obra constituída por livro com os poemas, CD audio e DVD do espetáculo em caixa.
Poemas de Ana Luísa Amaral, António Maria Lisboa, Bénedicte Houart, Carlos Poças Falcão, Daniel Jonas, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Eduarda Chiote, Filipa Leal, Helga Moreira, Humberto R., João Luís Barreto Guimarães, João Rios, Manuel António Pina, Rosa Alice Branco e Rui Lage.
 
 
Almada NegreirosSem título, s. d. Grafite e tinta da China sobre papel.
Coleção particular em depósito no Museu Calouste Gulbenkian – 
Coleção Moderna.

 
"Sobre a terra, antes da escrita e da imprensa, existiu a poesia." 
 

domingo, 3 de dezembro de 2023

"Ode ao Pão" - Poema de Pablo Neruda


Albert Anker (Swiss painter and illustrator, 1831-1910), Still-Life with Coffee, 
Bread and Potatoes, c. 1896, Kunstmuseum Bern.
 


Ode ao Pão


Pão,
com farinha
água
e fogo
te levantas.

Espesso e leve,
reclinado e redondo,
repetes
o ventre
da mãe,
equinocial
germinação
terrestre.

Pão,
que fácil
e que profundo tu és:
no tabuleiro branco
da padaria
estendem-se as tuas filas
como utensílios, pratos
ou papéis,
e de súbito a onda
da vida,
a conjunção do germe
e do fogo,
cresces, cresces
de súbito
como
cintura, boca, seios,
colinas da terra,
vidas,
sobre o calor, inunda-te
a plenitude, o vento
da fecundidade,
e então
imobiliza-se a tua cor de oiro,
e quando já estão prenhes
os teus pequenos ventres
a cicatriz escura
deixou sinal de fogo
em todo o teu doirado
sistema de hemisférios.

Agora,
intacto,
és
ação de homem,
milagre repetido,
vontade da vida.

Ó pão de cada boca
não
te imploraremos,
nós, os homens,
não somos
mendigos
de vagos deuses
ou de anjos obscuros:
do mar e da terra
faremos pão,
plantaremos de trigo
a terra e os planetas,
o pão de cada boca
de cada homem,
em cada dia
chegará porque fomos
semeá-lo
e fazê-lo,
não para um homem, mas
para todos,
o pão, o pão
para todos os povos
e com ele o que possui
forma e sabor de pão
repartiremos:
a terra,
a beleza,
o amor,
tudo isso
tem sabor de pão,
forma de pão,
germinação de farinha,
tudo
nasceu para ser compartilhado,
para ser entregue,
para se multiplicar.

Por isso, Pão,
se foges
da casa do homem,
se te escondem,
se te negam,
se o avarento
te prostitui,
se o rico
te armazena,
se o trigo
não procura sulco e terra,
pão,
não rezaremos
pão,
não mendigaremos,
lutaremos por ti com outros homens,
com todos os famintos,
por todos os rios, pelo ar
iremos procurar-te,
a terra toda repartiremos,
para que tu germines,
e connosco
avançará a terra:
a água, o fogo, o homem
lutarão junto a nós,
iremos coroados
de espigas,
conquistando
terra e pão para todos,
e então
também a vida
terá forma de pão,
será simples e profunda,
inumerável e pura.

Todos os seres
terão direito
à terra e à vida,
e assim será o pão de amanhã,
o pão de cada boca,
sagrado,
consagrado,
porque será o produto
da mais longa e dura
luta humana.

Não tem asas
a vitória terrestre:
tem pão sobre os seus ombros,
e voa corajosa
libertando a terra
como uma padeira
levada pelo vento.


Pablo Neruda
, in "Antologia Breve".
Publicações Dom Quixote, Lisboa. 1974.
Tradução e seleção de Fernando Assis Pacheco



Albert Anke, Still Life: Wine and Bread, 1896, oil on canvas, 
 Private Collection.
 

"Todas as formas de governo caem diante da necessidade por pão. Para o homem com uma família faminta, o pão passa em primeiro lugar - antes de seu sindicato, de sua pátria, de sua religião".
 
"All forms of government fall when it comes up to the question of bread — bread for the family, something to eat. Bread to a man with a hungry family comes first— before his union, before his citizenship, before his church affiliation. Bread!"

John L. Lewis
(1880 –1969), lider trabalhista norte-americano, citado em Federal Food Programs. (daqui)
 

sábado, 2 de dezembro de 2023

"Fábrica" - Poema de Joaquim Namorado


Beda Stjernschantz (Finnish symbolist painter, 1867- 1910), Lasinpuhaltajat 
(Sopradores de vidro), 1894, K. H. Renlund art collection.



Fábrica


Oh, a poesia de tudo o que é geométrico
e perfeito,
a beleza nova dos maquinismos,
a força secreta das peças
sob o contacto frio e liso dos metais,
a segura confiança
do saber-se que é assim e assim exatamente,
sem lugar a enganos,
tudo matemático e harmónico,
sem nenhum imprevisto, sem nenhuma ventura
como na cabeça do engenheiro. 

Os operários têm nos músculos, de cor,
os movimentos dia a dia repetidos:
é como se fossem da sua natureza,
longe de toda a vontade e de todo o pensamento;
como se os metais fossem carne do corpo
e as veias se abrissem
àquela vida estranha, dura, implacável
das máquinas.

Os motores de tantos mil cavalos
alinhados e seguros de si,
seguros do seu poder;
as articulações subtis das bielas,
o enlace justo das engrenagens:
a fábrica, todo um imenso corpo de movimentos
concordantes, dependentes, necessários.


Joaquim Namorado, in Aviso à Navegação, 1941
 

 
" Aviso à Navegação": poemas, por Joaquim Namorado
Coimbra: Tip. Atlântica, 1941,
Novo Cancioneiro
 

Aviso à Navegação
 
Livro de Joaquim Namorado editado em 1941 pela coleção Novo Cancioneiro, órgão de afirmação, no início dos anos 40, de uma estética poética neorrealista. 
A primeira série poética da obra, intitulada "Navegação à Vela", contém o poema que dá título à obra, "Aviso à Navegação", que, na sequência de um conjunto de composições construídas a partir da oposição metafórica entre a partida para a aventura e a calma dos portos, se assume como voz de incitamento à revolta: "Aviso à navegação:/ Não espereis de mim a paz!// [...] Que na guerra/ só conheço dois destinos:/ ou vencer - ai dos vencidos! -/ ou morrer sob os escombros/ da luta que alevantei!"
O "aviso" deixado pelo sujeito poético, anunciando o seu compromisso existencial, não é um gesto heroico individual: o poeta é um dos amotinados de uma tripulação que apresenta como "manifesto" a promessa de não desistir, mesmo que o preço seja a vida: "Que não adormeçam os músculos dos nossos braços na modorra das/ calmarias! Que não afrouxe este espírito de guerra que nos trouxe!/ E chegaremos./ Grandes escolhos?!... Grandes Medos?!... Grandes tormentos?!.../ Maior grandeza de sacrifício, maior força de nos excedermos, maior sangue/ frio na manobra! E chegaremos." ("Manifesto à Tripulação"). 
A segunda série, "A guerra e a paz", contém alguns dos poemas mais conhecidos no âmbito de uma primeira fase da estética neorrealista, como representativos de uma poesia de combate, perpassada pelo otimismo e confiança numa vitória que só dependerá da adesão do público aos desafios que lhe são lançados. Por isso as composições preferem o tom apelativo, propondo coordenadas de ação: "Abre as janelas para a rua" ("Manifesto"), "Aguça a tua foice!" ("Segador"), "Ó mocidade, vai para os estádios,/ vai para as oficinas cantando!" ("Exortação"); ao mesmo tempo que apresentam o sujeito enunciativo como modelo de resistência: ele é dos que ficam "até ao fim da batalha" ("Três Poemas de Heroísmo"), aquele que, derrotado, volta "Cem vezes ao combate" ("Vitória"), aquele que oferece em imolação o seu sangue e os seus ossos como "cimento duma outra humanidade" ("Prometeu"). Trata-se, acima de tudo, de contribuir para a criação de uma fraternidade unida num mesmo canto de revolta, de justiça e de liberdade, uma comunidade onde "Eu e tu" serão "carne do mesmo corpo,/ amor do mesmo amor,/ sangue do mesmo sacrifício!..." ("Cantar de Amigo").
As séries seguintes alargam o campo de consciencialização a outros domínios: o do operariado, em "Arquitetura"; o da África colonizada, em "África", enquanto "Romance de Federico" exprime o impacto que a Guerra Civil de Espanha e o assassinato do poeta Federico Garcia Lorca exerceram sobre o poeta. (daqui)
 
 
Joaquim Namorado


Joaquim Namorado
 
Licenciado em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra, desenvolveu atividade docente no ensino secundário e, após o 25 de abril, no ensino superior. 
Sendo um dos iniciadores e teóricos do movimento neorrealista, colaborou nos Cadernos da Juventude, nas revistas Altitude, Seara Nova, Vértice, nos jornais O Diabo e Sol Nascente e editou na coletânea de poesia Novo Cancioneiro a sua primeira obra poética, Aviso à Navegação.
Militante do Partido Comunista desde os anos 30, toda a ação de Joaquim Namorado, poética, ensaística, doutrinária ou cultural, se desenvolve a partir do reconhecimento do papel do intelectual na divulgação da cultura enquanto instrumento de consciencialização do povo, dotando-o de apetrechos para se elevar e, consequentemente, se libertar politicamente. O processo artístico que serviria melhor este processo de transformação ideológica encontra numa arte realista e de intenção social a forma mais apropriada para uma comunicabilidade imediata, contraposta a expressões estéticas consideradas de crise e de confusão de valores, como certos ismos da arte contemporânea, como o futurismo da geração de Orpheu ou o modernismo presencista. A "Arte para o Povo" não se confunde, porém, com uma "arte popular" que vê no folclore uma via de evasão, de pitoresco e de primitivismo, mas corresponde, sob o modelo de Lorca, a uma "poesia de resistência", "meio de conhecer e atingir as verdadeiras raízes do popular, o seu carácter autêntico, a sua conceção da vida e do mundo, os seus anseios e a sua luta" (Namorado, Vértice, n.° 48, 1947).
A criação poética, atenta à natureza e ao Homem, concebida como expressão natural e sincera de uma existência que não é necessário explicar, é para Joaquim Namorado assumida como "necessária", pelo vasto processo de renovação que integra, mas, sobretudo, por aí ressoarem vozes e verdades imanentes: a voz do mundo "ressoando no meu ouvido/ como num búzio um mar perdido" (cit. por PITA, A. P. in Vértice, II, 12.91). (daqui)
 
 
Akseli Gallen-Kallela (Finnish painter, 1865–1931), Rustic Life, 1887
 

Fábula

No tempo em que os animais falavam...
Liberdade!
Igualdade!
Fraternidade!

Akseli Gallen-Kallela, Woman Cooking Whitefish (Woman grilling fish), 1884,
Finnish National Gallery
 
 
Milagre  

Onde o santo punha o pé nasciam rosas
... e o povo lamentava
que não fizesse o mesmo com as batatas.

 

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

"Aprendizagens" - Poema de Ana Luísa Amaral


George Hughes (American illustrator, 1907-1990), Learning to Ride a Bike, 1954 



Aprendizagens


Era cromada e preta a bicicleta,
trazia um laço largo no volante circulando
o Natal e rodas generosas
como parecia o mundo.

Eu, na manhã seguinte,
sem saber sustentar a rota nivelada,
o meu pai a meu lado, segurando o assento,
a sua mão: aceso fio de prumo,
em acesa confiança.

Depois, era-lhe a voz entrecortada
pelo puro cansaço de correr,
tentando harmonizar a bicicleta.

Hoje, muitos anos depois de gestos paralelos,
a minha filha sobre outras estradas,
a minha mão corrigindo o desvio de mais modernas rodas,
entendo finalmente que era emoção o que se ouvia
na voz interrompida do meu pai:

o medo que eu caísse,
mesmo sabendo que eram curtas as quedas,
mas sobretudo a ternura de me ver ali,
a entrar no mundo dos crescidos,
em equilíbrio débil,
rente à saída circular da infância.


Ana Luísa Amaral
 (1956–2022), What’s in a name?,
Assírio & Alvim, 2017


Ana Luísa Amaral, What’s in a name?
Edição/reimpressão: 04-2017
Editor: Assírio & Alvim 
 

SINOPSE
 
«What’s in a Name» - A estranheza do inglês no título expressa a ambivalência da relação, de que sempre a poesia viveu, entre a coisa (nossa, do mundo) e a sua nomeação, apontando para a multiplicidade de sentidos que há neste livro. Nele se cruzam, em cumplicidade, o quotidiano e o cósmico, o poético e o político, a comoção e a ironia, o espanto e a indignação - em suma, a palavra e a vida. (daqui)
 

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

"Casa Velha" - Poema de Fernanda de Castro



 Moreira Aguiar (Pintor português, n. 1947), Óbidos, 70x50cm.
 


Casa Velha


Deixem a casa velha! Que os pedreiros
não lhe tirem as rugas nem as gelhas.
Que não limpem de urtigas os canteiros,
que lhe deixem ficar as velhas telhas.

Deixem a casa velha! Que a não sujem
com óleos e com tintas os pintores.
Que lhe deixem as nódoas de ferrugem,
os velhos musgos, as cansadas flores.

Que não fiquem debaixo do cimento
mais de cem anos de alegria e dor.
Não lhe pintem a chuva, o sol, o vento,
que a cor do tempo é assim: vaga e incolor.

Que tudo fique assim, parado e absorto,
no tempo sem limites, sempre igual.
Ah, não, por Deus! Como se faz a um morto,
não a sepultem sob terra e cal!

Não fechem as janelas mal fechadas,
ouçam da brisa o tímido lamento,
deixem que a vida e a morte, de mãos dadas,
vão com seu passo refletido e lento.

Não endireitem as paredes tortas
nem desatem, da aranha, os finos laços.
Abram ao vento as desmanchadas portas,
ouçam do tempo os invisíveis passos.

Deixem que durma, quieta, ao sol do Outono,
velada pela flor, o vento, a asa.
Será talvez o derradeiro sono…
Que importa? Morra em paz a velha casa.


Fernanda de Castro
, in "Asa no Espaço", 1955
 
 
 

"Trata de saborear a vida; e fica sabendo, que a pior filosofia é a do choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas. O ofício delas é não parar nunca; acomoda-te com a lei, e trata de aproveitá-la."



quarta-feira, 29 de novembro de 2023

"Logo que te deixo" - Poema de Cruzeiro Seixas


Cruzeiro Seixas (Poeta e pintor surrealista português, 1920-2020), "A fábrica dos Espelhos", 2009.


 
Logo que te deixo
 

Logo que te deixo
há um rio que corre ao teu lado veemente
e da outra margem
os diabos com as suas lanternas
falam da infância submersa
no além.

Daqui até à linha do horizonte
as marés embalam maternalmente os mortos
e o seu canto
arrasta as góticas catedrais até ao mar
onde flutuam e vão
com cornos de ouro
e hélices que espadanam mil diamantes.

Por toda a parte há sonhos
a empurrar outros sonhos
para o abismo.

A magia do espelho quebrado
é uma longuíssima viagem
sem regresso. 


Cruzeiro Seixas, Obra poética
Edições Quasi
 

domingo, 26 de novembro de 2023

"Viajar? Para viajar basta existir" - Texto de Bernardo Soares / Fernando Pessoa


Paul Klee (Swiss-born German artist, 1879 –1940), Insula dulcamara, 1938,
Zentrum Paul Klee, Berne
 


Viajar? Para viajar basta existir

 
Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.

Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.

“Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até ao fim do mundo”. Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Polos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações?

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.


Bernardo Soares (Heterónimo de Fernando Pessoa),
in Livro do Desassossego, fragmento 451, ed. Richard Zenith, Assírio & Alvim, 11ª ed.
 

Paul Klee, Nach der Überschwemmung, 1936, Beyeler Foundation



Abstracionismo
 
 
O entendimento da arte como ato criativo situado para além da mera perceção visual do mundo sensível constitui o ponto de partida principal do abstracionismo. Nascida na segunda década do século XX, a arte abstrata tem origem nas diversas reações ao Impressionismo e desenvolve-se entre 1913 e 1933.
A primeira obra totalmente abstrata foi pintada por Kandinsky, uma das figuras históricas do abstracionismo, em 1913. Paralelamente à atividade pictórica, Kandinsky converteu-se no teorizador dos fundamentos do abstracionismo lírico, cujas linhas fundamentais são a liberdade da cor e do traço, enquadradas num entendimento filosófico e orgânico da pintura. Nas telas e aguarelas deste pintor alemão, as massas cromáticas, às quais o artista atribui um significado simbólico, enunciam uma plasticidade sem forma e uma nova sensibilidade. Cada obra é fruto de uma pesquisa controlada e metódica, de uma experiência espontânea vivida pelo autor, à qual não é estranha a exploração incessante das suas emoções e sensações perante o real.
Em França, o fauvismo e os primórdios do cubismo influenciam outros autores que enveredam pelo caminho da não figuração, como Delaunay, Kupka e Picabia.
Noutros países são experimentadas outras vias da abstração, de cariz mais geométrico: o Raionismo, o Suprematismo e o construtivismo na Rússia, e o Neoplasticismo da Holanda. Os fundamentos deste último movimento, igualmente conhecido por De Stijl, são definidos essencialmente por Piet Mondrian, cuja obra se define através de uma gramática geométrica clara e objetiva, na qual a harmonia é obtida através de um equilíbrio entre a forma e a cor. (daqui)
 

sábado, 25 de novembro de 2023

"O rio do tempo" - Poema de Lya Luft


Harald Slott-Møller (Danish painter and ceramist, 1864–1937), Morning Coffee, c. 1910


O rio do tempo

O tempo não existe,
nem dentro nem fora.
Esses peixes de opala
são nomes que nadam na memória:
são rostos, são risos, são prantos,
são as horas felizes.

O tempo não existe,
pois tudo continua aqui, e cresce
como se arredonda uma árvore
pesada de frutos que são peixes,
que são nomes de nomes, são rostos
com máscaras.

O tempo não existe. Sou apenas
o aqui e o presente, e o atrás disso,
como um rio que corre mas não passa
— pois ele é sempre, em mim, agora.
 
 
 Lya Luft, em "Para não dizer adeus", 2005.