sábado, 2 de dezembro de 2023

"Fábrica" - Poema de Joaquim Namorado


Beda Stjernschantz (Finnish symbolist painter, 1867- 1910), Lasinpuhaltajat 
(Sopradores de vidro), 1894, K. H. Renlund art collection.



Fábrica


Oh, a poesia de tudo o que é geométrico
e perfeito,
a beleza nova dos maquinismos,
a força secreta das peças
sob o contacto frio e liso dos metais,
a segura confiança
do saber-se que é assim e assim exatamente,
sem lugar a enganos,
tudo matemático e harmónico,
sem nenhum imprevisto, sem nenhuma ventura
como na cabeça do engenheiro. 

Os operários têm nos músculos, de cor,
os movimentos dia a dia repetidos:
é como se fossem da sua natureza,
longe de toda a vontade e de todo o pensamento;
como se os metais fossem carne do corpo
e as veias se abrissem
àquela vida estranha, dura, implacável
das máquinas.

Os motores de tantos mil cavalos
alinhados e seguros de si,
seguros do seu poder;
as articulações subtis das bielas,
o enlace justo das engrenagens:
a fábrica, todo um imenso corpo de movimentos
concordantes, dependentes, necessários.


Joaquim Namorado, in Aviso à Navegação, 1941
 

 
" Aviso à Navegação": poemas, por Joaquim Namorado
Coimbra: Tip. Atlântica, 1941,
Novo Cancioneiro
 

Aviso à Navegação
 
Livro de Joaquim Namorado editado em 1941 pela coleção Novo Cancioneiro, órgão de afirmação, no início dos anos 40, de uma estética poética neorrealista. 
A primeira série poética da obra, intitulada "Navegação à Vela", contém o poema que dá título à obra, "Aviso à Navegação", que, na sequência de um conjunto de composições construídas a partir da oposição metafórica entre a partida para a aventura e a calma dos portos, se assume como voz de incitamento à revolta: "Aviso à navegação:/ Não espereis de mim a paz!// [...] Que na guerra/ só conheço dois destinos:/ ou vencer - ai dos vencidos! -/ ou morrer sob os escombros/ da luta que alevantei!"
O "aviso" deixado pelo sujeito poético, anunciando o seu compromisso existencial, não é um gesto heroico individual: o poeta é um dos amotinados de uma tripulação que apresenta como "manifesto" a promessa de não desistir, mesmo que o preço seja a vida: "Que não adormeçam os músculos dos nossos braços na modorra das/ calmarias! Que não afrouxe este espírito de guerra que nos trouxe!/ E chegaremos./ Grandes escolhos?!... Grandes Medos?!... Grandes tormentos?!.../ Maior grandeza de sacrifício, maior força de nos excedermos, maior sangue/ frio na manobra! E chegaremos." ("Manifesto à Tripulação"). 
A segunda série, "A guerra e a paz", contém alguns dos poemas mais conhecidos no âmbito de uma primeira fase da estética neorrealista, como representativos de uma poesia de combate, perpassada pelo otimismo e confiança numa vitória que só dependerá da adesão do público aos desafios que lhe são lançados. Por isso as composições preferem o tom apelativo, propondo coordenadas de ação: "Abre as janelas para a rua" ("Manifesto"), "Aguça a tua foice!" ("Segador"), "Ó mocidade, vai para os estádios,/ vai para as oficinas cantando!" ("Exortação"); ao mesmo tempo que apresentam o sujeito enunciativo como modelo de resistência: ele é dos que ficam "até ao fim da batalha" ("Três Poemas de Heroísmo"), aquele que, derrotado, volta "Cem vezes ao combate" ("Vitória"), aquele que oferece em imolação o seu sangue e os seus ossos como "cimento duma outra humanidade" ("Prometeu"). Trata-se, acima de tudo, de contribuir para a criação de uma fraternidade unida num mesmo canto de revolta, de justiça e de liberdade, uma comunidade onde "Eu e tu" serão "carne do mesmo corpo,/ amor do mesmo amor,/ sangue do mesmo sacrifício!..." ("Cantar de Amigo").
As séries seguintes alargam o campo de consciencialização a outros domínios: o do operariado, em "Arquitetura"; o da África colonizada, em "África", enquanto "Romance de Federico" exprime o impacto que a Guerra Civil de Espanha e o assassinato do poeta Federico Garcia Lorca exerceram sobre o poeta. (daqui)
 
 
Joaquim Namorado


Joaquim Namorado
 
Licenciado em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra, desenvolveu atividade docente no ensino secundário e, após o 25 de abril, no ensino superior. 
Sendo um dos iniciadores e teóricos do movimento neorrealista, colaborou nos Cadernos da Juventude, nas revistas Altitude, Seara Nova, Vértice, nos jornais O Diabo e Sol Nascente e editou na coletânea de poesia Novo Cancioneiro a sua primeira obra poética, Aviso à Navegação.
Militante do Partido Comunista desde os anos 30, toda a ação de Joaquim Namorado, poética, ensaística, doutrinária ou cultural, se desenvolve a partir do reconhecimento do papel do intelectual na divulgação da cultura enquanto instrumento de consciencialização do povo, dotando-o de apetrechos para se elevar e, consequentemente, se libertar politicamente. O processo artístico que serviria melhor este processo de transformação ideológica encontra numa arte realista e de intenção social a forma mais apropriada para uma comunicabilidade imediata, contraposta a expressões estéticas consideradas de crise e de confusão de valores, como certos ismos da arte contemporânea, como o futurismo da geração de Orpheu ou o modernismo presencista. A "Arte para o Povo" não se confunde, porém, com uma "arte popular" que vê no folclore uma via de evasão, de pitoresco e de primitivismo, mas corresponde, sob o modelo de Lorca, a uma "poesia de resistência", "meio de conhecer e atingir as verdadeiras raízes do popular, o seu carácter autêntico, a sua conceção da vida e do mundo, os seus anseios e a sua luta" (Namorado, Vértice, n.° 48, 1947).
A criação poética, atenta à natureza e ao Homem, concebida como expressão natural e sincera de uma existência que não é necessário explicar, é para Joaquim Namorado assumida como "necessária", pelo vasto processo de renovação que integra, mas, sobretudo, por aí ressoarem vozes e verdades imanentes: a voz do mundo "ressoando no meu ouvido/ como num búzio um mar perdido" (cit. por PITA, A. P. in Vértice, II, 12.91). (daqui)
 
 
Akseli Gallen-Kallela (Finnish painter, 1865–1931), Rustic Life, 1887
 

Fábula

No tempo em que os animais falavam...
Liberdade!
Igualdade!
Fraternidade!

Akseli Gallen-Kallela, Woman Cooking Whitefish (Woman grilling fish), 1884,
Finnish National Gallery
 
 
Milagre  

Onde o santo punha o pé nasciam rosas
... e o povo lamentava
que não fizesse o mesmo com as batatas.

 

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