sábado, 25 de abril de 2020

"A voz do meu pai" - Poema de Manoel de Barros



Carol TamborFather and Son, 1999


A voz do meu pai



Abro os olhos.
Não vejo mais meu pai.
Não ouço mais a voz de meu pai.
Estou só. Estou simples.
Não como essa poderosa voz da terra
com que me estás chamando, pai —
porque as cores se misturam
em teu filho ainda
e a nudez e o despojamento
não se fizeram em seu canto;
mas, simples por só acreditar
que com meus passos incertos
eu governo a manhã
feito os bandos de andorinha
nas frondes do ingazeiro.


Manoel de Barros


quarta-feira, 8 de abril de 2020

"Mãe" - Poema de Miguel Torga


Thomas Eakins (1844–1916),  Mother (Anne Williams Gandy), 1903



Mãe


Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.

Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.

Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim.


Miguel Torga, in 'Diário IV'



Thomas Eakins, Mrs. Edith Mahon, 1904
(To My Friend Edith Mahon / Thomas Eakins)


"Amamos as nossas mães quase sem o saber e só nos damos conta da profundidade das raízes desse amor no momento da derradeira separação."




"A mulher pensa como ama, o homem ama como pensa."

"La donna pensa come ama, l' uomo ama come pensa."
 - Archivio per l'antropologia e l'etnologia, 1871

(Paolo Mantegazza)

Paolo Mantegazza (Monza, 31 de outubro de 1831 — San Terenzo, 28 de agosto de 1910) foi um neurologista, fisiologista e antropólogoitaliano, notável por ter isolado a cocaína da coca, que utilizou em experimentos, investigando seus efeitos anestésicos em humanos. Também é conhecido como escritor de ficção ("O ano 3000: sonho", ed. Port.: Lisboa, Santos e Vieira, 1914). (Daqui)


quarta-feira, 1 de abril de 2020

"O menino que carregava água na peneira" - Poema de Manoel de Barros


Claude Lefèbvre (French, 1632–1675), A Teacher and his Pupil, 1670



O menino que carregava água na peneira


Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!


Manoel de Barros,

Exercícios de ser criança, publicado em 1999.



Claude Lefèbvre, The artist’s oldest daughter brushing her brother’s hair.


Retrato
 

Quando menino encompridava rios.
Andava devagar e escuro – meio formatado em
silêncio.
Queria ser a voz em que uma pedra fale.
Paisagens vadiavam no seu olho.
Seus cantos eram cheios de nascentes.
Pregava-se nas coisas quanto aromas.
 
 em “Concerto a céu aberto para solos de ave”.