domingo, 15 de agosto de 2021

"Mãe" - Poema de Carlos de Assumpção


Elin Danielson-Gambogi, On the Way Home in the Evening Light, 1901
[Also known as Returning Home or Picking Flowers.]
 
 

Mãe


Noite,
Os anos já pintaram de luar os teus cabelos,
No entanto, tudo parece estar acontecendo agora,
Neste instante.

Noite,
Após tantos anos,
Neste momento,
Vejo tudo diante de mim,
Como se estivesse assistindo a um filme
Da infância:

Nós, teus filhos, todos pequenos,
O relógio parado na hora de privações,
Tantos sonhos de asas quebradas pelos cantos
De nossa casa pobre, sem conforto;

Tu, mulher ainda jovem, tão boa, tão calma,
Constelação de esperança e ternura,
Inspirando segurança,
Inspirando fé, amor,
Em meio a tantos vendavais.

Noite,
Tua luta foi para nós teu maior ensinamento
Sofrias (hoje o sei), entretanto,
Em nossa presença, nunca uma lágrima
Rolou pelo teu rosto.

Noite,
Desde criança aprendi a amar-te,
Mas só hoje, adulto, é que vejo, comovido,
As incontáveis estrelas que brilham em teu ser
E que tantos vendavais não conseguiram apagar.

 
(Quilombo, p. 47-48)

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

"A Lenda dos Cisnes" - Poema de António Feijó


Isaac Levitan (Russian landscape painter, 1860-1900), The Quiet Cloister, 1890
 
 
 
 A Lenda dos Cisnes
 (A Júlio Dantas)
 
Gedulde Dich, stilles, hoffendes Herze! Was Dir im Leben versagt ist, weil 
Du es nicht ertragen könntest, giebt Dir der Augenblick Deines Todes.
Herder

Da praia longínqua, na areia dourada,
O Cisne pensava, fitando a Alvorada:

– «Que imensa ventura, na minha mudez,
Se dado me fosse cantar uma vez!

Meu canto seria, na luz do arrebol,
Dos hinos mais altos à glória do Sol...

Não é das gaivotas e gansos do lago
O canto que em sonhos ardentes afago;

É quando nos bosques as aves escuto
Que a inveja confrange minh'alma de luto.

Se a Aurora se lança do cume dos montes,
Até d'alegria murmuram as fontes;

Só eu, passeando o meu tédio supremo,
Nem rio, nem choro, nem canto, nem gemo.

Oh Sol, que já vejo surgindo do Mar,
Tem dó de quem, mudo, não pode cantar!» –

E o Cisne, em silêncio, chorava, escutando
A orquestra das aves que passam em bando.

Das águas rompia a quadriga d'Apolo,
E o pobre a cabeça escondia no colo...

Mas Febo detém-se nas nuvens ao vê-lo,
Com feixes de raios no fulvo cabelo,

E diz-lhe, sorrindo, num halo de fogo:
– «No Olimpo sagrado ouviu-se o teu rogo...» –

E nesse momento a Lira Sem Par
Da mão luminosa deixou resvalar...

O Cisne, orgulhoso da graça divina,
Da Lira d'Apolo as cordas afina,

E rompe cantando... Calaram-se as fontes,
Calaram-se as aves... As urzes dos montes

Tremiam de gozo a ouvi-lo cantar...
E o vento sonhava na espuma do Mar.

O Cisne cantava, tirando da Lira
Um hino que nunca na terra se ouvira;

Não para, nem sente, na sua emoção,
Que a vida lhe foge naquela canção.

Mas quando, entre nuvens, a tarde caía
no enlevo do canto que a essa hora gemia,

E Apolo no seio de Tétis desceu,
O pobre do Cisne, cantando, morreu...

Gemeram as aves; choraram as fontes;
Torceu-se nas hastes a giesta dos montes,

E o mar soluçava na tarde sombria,
Que o manto de luto com astros tecia.

Solícita espera-o, das águas à beira,
Do Cisne, já morto, fiel companheira;

Espera que o Esposo de pronto regresse,
Mas treme e suspira, que a Noite já desce...

As águas luzentes parecem-lhe, ao vê-las,
Um pano d'enterro picado d'estrelas.

Então, no seu luto, sentindo que morre,
Oceanos e praias distantes percorre;

Mergulha nas águas, coleia nas ondas,
Espreita as galeras de velas redondas,

Que ao longe parece que vão a voar...
E o Cisne não volta, não pode voltar!

Chorosa viúva, nas águas desliza,
Levada na fresca salsugem da brisa...

No seu abandono nem sente canseira;
Caminha, caminha, fiel companheira,

Chorando o perdido, desfeito casal...
Tão funda era a mágoa, tão grande o seu mal,

Que o peito sentindo de dor estalar,
– De dor e d'angústia começa a cantar!

E canta com tanta ternura e paixão,
Que a Vida lhe foge naquela canção.

As aves despertam; calaram-se as fontes
Nas hastes tremiam as urzes dos montes;

A Lua escutava; detinha-se a Aurora,
E as vagas gemiam no vento que chora...

Na terra, no espaço, nos astros, no céu,
Mais alta harmonia ninguém concebeu;

E os Deuses recebem, ouvindo-a, a chorar,
A alma do Cisne que expira a cantar...

Desde esse momento, no Olimpo onde entraram,
Em honra dos Cisnes que tanto se amaram,

Das almas que foram leais e sinceras,
se Vénus se mostra, surgindo da bruma,
São eles que tiram, nas altas esferas,
A concha de nácar, cercada de espuma...


António Feijó, in 'Sol de Inverno'
 


Isaac Levitan, Self-portrait, 1880
 
 
Isaak Ilich Levitan (Kybartai (Lituânia), 1860 - Moscou/Moscovo, 1900) foi um pintor russo de origem judaica, que pertenceu ao movimento dos Itinerantes. Expressou nas suas paisagens a beleza da região do Volga
O seu pai Elyashiv Levitán foi um humilde professor de línguas e tradutor que partiu para Moscovo para permitir que o seu filho Isaac estudasse na Academia dessa cidade. Isaac ingressou nessa Academia aos 19 anos e pintou o seu primeiro quadro "Paisagem de Outono" (1880) que foi comprado pelo colecionador Pável Mijáilovich Tretiakov, com quem Isaac travara uma amizade. Tretiakov ofereceu-lhe uma bolsa para estudar em Paris e foi a única vez que Levitán saiu da Rússia. Na sua viagem conheceu as obras do paisagista realista Jean-Baptiste Camille Corot, antecessor do impressionismo e mestre de outro de família judaica: Camille Jacob Pissarro, famoso impressionista francês. Voltou à sua Rússia natal e desenvolveu a sua carreira como pintor. Aos 37 anos foi nomeado membro da Academia de Artes Russa e diretor do departamento de pintura de paisagens.
O pintor e Anton Tchekhov (escritor e dramaturgo) foram amigos e admiradores mútuos.
Isaac Levitan morreu aos 40 anos devido a uma doença pulmonar. O chamado "pintor-poeta" deixou milhares de telas. A sua pintura ao ar livre captou com pincelada ligeira e admirável realismo as subtis gradações da espessa luz solar e as finas camadas de cor das sombras. (Daqui)
 
 
 Obras de Isaac Levitan
Isaac Levitan, Oak, 1880
 
 
Isaac Levitan, Dacha in spring, gouache and watercolour on board (after 1890)


Isaac Levitan, Autumn. A Manor House, 1894 
 

Isaac Levitan, Sunny Day, Spring, 1876



Isaac Levitan, March, 1895
 
 

Isaac Levitan, Spring in Italy1890

 
 “A arte deve ligar-se estreitamente com a vida (como função intensiva desta). 
 Fundir-se com ela ou perecer.”  
 
(Vladimir Maiakovski)
 
Vladímir Vladímirovitch Maiakovski (1893-1930) foi um dos maiores poetas do século XX, sendo ainda dramaturgo e teórico russo, e considerado como o poeta da revolução e do futurismo.

Impressionado pelo movimento revolucionário, ingressou na fação bolchevista do Partido Social-Democrático Operário Russo quando tinha apenas quinze anos. Capturado três vezes, foi libertado por falta de provas em duas dessas ocasiões. No entanto, entre 1909 e 1910, acabou por passar onze meses na prisão.

Entrou na Escola de Belas Artes, onde conheceu David Burliúk, o grande mentor da sua iniciação poética. Os dois amigos fizeram parte do grupo fundador do chamado cubo-futurismo russo, ao lado de Khlébnikov, Kamienski e outros.

Após a Revolução de Outubro, o grupo manifestou o seu apoio ao novo regime. Durante a Guerra Civil, Maiakovski dedicou-se à criação de desenhos e legendas para cartazes propagandistas. Em 1923, fundou a revista LEF (de Liévyi Front, Frente da Esquerda), que reuniu a "esquerda das artes", isto é, os intelectuais (escritores e artistas) que pretendiam aliar a forma revolucionária a um conteúdo de renovação social.

Maiakovski viajou muito pelo país e pelo mundo, divulgando a sua arte e aparecendo diante de vastos auditórios para os quais lia os seus poemas. Entrou repetidamente em conflito com os "burocratas" e com aqueles que pretendiam reduzir a poesia a "fórmulas mais simples", chegando a ser pressionado e perseguido por oficiais, que desejavam instaurar uma literatura "simplista e dita realista".

Homem de grandes paixões, arrebatado e lírico, épico e satírico, Vladímir Maiakovski ter-se-á suicidado em 1930, aos 36 anos, com um tiro no peito. Este facto é, no entanto, disputado por sua filha, Elena Maiakovskaia. (Daqui)
 

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

"Sophia de Mello Breyner Andresen" - Poema de Adelina Barradas de Oliveira


 


Sophia de Mello Breyner Andresen


Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os Homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma
 
2009 
 (Juíza Desembargadora)
 
[Este poema, que se tornou viral, foi falsamente atribuído a Sophia de Mello Breyner Andresen com o título "O mar dos meus olhos". O texto original foi publicado no blogue Cleopatra Moon, onde a juíza Adelina Barradas de Oliveira costuma partilhar os seus escritos.]
 
 
Charles Conder, The hot sands, Mustapha, Algiers, 1891
 
 
Amar é um elo 
entre o azul 
e o amarelo.  
 
Paulo Leminski
(Haikai, Haicai, Haiku)
 
 
Charles Conder, The Beach at Ambleteuse, c. 1900
 

Na ressaca da maré
pequenas conchas brilhantes
matizadas com pétalas de trevo.  
 
 (1644- 1694) 
(Haikai, Haicai, Haiku)
Tradução de Casimiro de Brito
 

domingo, 1 de agosto de 2021

"Passo triste no mundo" - Poema de Armando Côrtes-Rodrigues



Antoine de La Rochefoucauld,
painter (1862-1959), 
by Émile Schuffenecker (1851-1934), c. 1886
Amsterdam, Van Gogh Museum.



Passo triste no mundo
 

Passo triste no mundo, alheio ao mundo.
Passo no mundo alheio, sem o ver,
E místico, ideal e vagabundo,
Sinto erguer-se minh'Alma do profundo
Abismo do seu Ser.

Vivo de Mim, em Mim, e para Mim,
E para Deus em Mim ressuscitado,
Sou Saudade do Longe donde vim,
E sou Ânsia do Longe, em que por fim
Serei transfigurado.

Vivo de Deus, em Deus, e para Deus,
E minh'alma, sonâmbula, esquecida,
Nele fitando os tristes olhos seus,
Passa triste e sozinha, olhando os céus,
No caminho da Vida.

Fui Outro, e, Outro sendo, Outro serei;
Outro vivendo a mística beleza,
Por esta humana forma que encarnei,
Por lágrimas de sangue que chorei
Na terra da tristeza.

Espírito na Dor purificado,
Ser que passa no mundo, sem o ver,
Em esta pobre terra de pecado,
Amor divino em Deus extasiado,
O meu Ser é Não-Ser em Outro-Ser.


Armando César Côrtes-Rodrigues
,
in 'Revista Orpheu'